sábado, setembro 6

último desejo

 

Andando pelas ruas antigas do Centro, sinto-me como se percorrendo as entranhas de um organismo em irreversível decadência. Resistem, ocupando o térreo dos pardieiros deixados ao deus dará, algumas poucas lojas cuja clientela é formada por funcionários de repartições municipais. Entristece-me a transferência da antiga efervescência para os shoppings, estas caixas de vidro e aço batizadas em outro idioma, como se tivéssemos vergonha do nosso.

Exceto pelos turistas, bandos coloridos com suas máquinas fotográficas, são poucos os transeuntes e quase todos vão cabisbaixos. Não vejo os olhos deles, e não os vendo é como se não existissem, não os vejo sorrindo, e é como se não fossem humanos, não ouço as suas vozes, e é como se fossem fantasmas vagando a esmo.

Mas como não me apetece ficar todo o tempo confinado em meu pequeno quarto fechado para o sol, nem percorrer os anódinos corredores de mármore das caixas comerciais, diariamente desço à rua e sito até o Pelourinho que, com seus sobrados restaurados e coloridos, dá-me a impressão de que me movimento num cenário. Mas é menos mal que o abandono.

Hoje tomei uma mesa posta na ladeira sobre as pedras irregulares do calçamento, mas não havia café, me advertiu o garçom com peruca de tranças e modo mariolado, pedi uma água gasosa para aquietar o cansaço, recobrar o fôlego. Lamentei não ter um livro no qual me alheasse desta realidade que fere a minha convicção na possibilidade de um progresso que não seja erigido sobre os escombros da tradição.

Não faz muito tempo, li um conto de Adonias Filho e fui até o Largo da Palma com esperança de encontrar “A Casa dos Pãezinhos de Queijo”. É evidentemente grande a possibilidade de que nunca tenha existido, exceto na imaginação do escritor, mas já não existiria se tivesse sido um dia realidade.

Na mesa ao lado um gringo apalpou uma criança prostituída e fui invadido por uma desagradável sensação de impotência para enfrentar o ultraje, que de tão corriqueiro foi aceito com naturalidade pelos demais. Deixei sob a garrafa uma cédula de cinco. A angústia para escafeder-me dali era maior que a necessidade do troco, conquanto me possa fazer falta até que seja creditado o parco provento da aposentadoria.

Estive economizando para comprar um chapéu novo, mas já está difícil encontrar chapéus decentes por um preço razoável, chapéu agora é uma anomalia disponível apenas para velhos endinheirados, fiquei com o velho panamá de fibras esgarçadas e torrei os cobres em livros no Sebo Brandão. Há muito vinha namorando um volume das Obras Completas de Federico Garcia Lorca, de quem conhecia uns poucos poemas traduzidos por Manuel Bandeira. Agora, depois de velho, dedico as longas e solitárias tardes ao esforço de decifrar suas metáforas flamencas e tenho o sono invadido por sons gitanos e pelo sangue andaluz tingindo o crepúsculo.

Já não são mais que lembranças os dias em que me vestia a rigor, de linho alvo, e freqüentava os salões de dança e o cassino do Palace Hotel. Noites de farra e de lubricidade, encerradas nos melhores bordéis da cidade. Eventualmente assalta-me um desejo, mas não soube fazer um pé-de-meia e não sou suficientemente tolo para supor que alguma mulher possa se interessar em dividir a cama comigo apenas pelos meus belos olhos. Durmo cedo e acordo antes que cante o galo.

Nunca me casei nem mantive qualquer relacionamento duradouro. A família que me resta são alguns sobrinhos, filhos do meu único e falecido irmão, mas não sei o paradeiro deles, e, ainda que soubesse, não é da minha natureza querer que se apiedem de mim.

Aqui, neste cortiço, há gente de toda a espécie. Tratam-me amiúde com respeito e é o quanto me basta. Eventualmente um vizinho passa para um dedo de prosa, côo um café ralo, que sirvo amargo pretextando miséria: é sábio exibir indigência onde a vida não vale um tostão. Quando me mudei para este quarto vendi toda a mobília do antigo apartamento e deixei paga a sepultura no Campo Santo, trouxe apenas alguns livros, pouca roupa e um aparelho de televisão, não levou uma semana para ter a porta arrombada. Como não levaram livros nem roupas não fiz estardalhaço e tenho vivido em paz e sem tv.

Com a idade descobri que Deus é uma necessidade, nenhuma outra força é capaz de nos dar proteção maior. Muita gente se abstém de enveredar no submundo criminoso pelo temor dos supostos castigos após a morte. Pus uma gravura da Santa Ceia sobre a cabeceira da cama e tenho orado com fé para que seja preservada a credulidade humana. Tendo escrito isto, recordei-me de uns versos de Fernando Pessoa, ditos pelo heterônimo Ricardo Reis: “Só os deuses socorrem / Com seu exemplo aqueles / Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas”. É assim que me sinto agora, como se me fosse suficiente ir no rio das coisas.

Quando eu era jovem arriscava escrever versos, mas não eram bons. Fui educado em escola pública, no tempo em que as escolas públicas eram melhores do que as particulares. Naquele tempo a poesia era popular e quase todo mundo sabia recitar de cor poemas de Castro Alves, de Olavo Bilac, de Camões. Eu era particularmente afeiçoado pelos sonetos de Camões. Somente nos anos sessenta foi que conheci a poesia de Fernando Pessoa e dos seus heterônimos, foi como descobrir no firmamento uma nova constelação.

A única ambição que ainda tenho é a de mudar para um quarto com janela para a rua, ainda que não seja possível ver nenhuma tabacaria, mas poderei ter um pouco de luz solar e de luar e será possível cultivar alguma flor e esperar a visita de pássaros.

 

Fred Matos

Conto publicado em “Melhor que a encomenda” – Coleção Selo Letras da Bahia – FUNCEB, EGBA – 2006.

 

 

 

 

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