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terça-feira, agosto 10

confissão


Ilustração: Van Gogh


Entre o que sinto e o que traço
o que penso ser e o que pareço,
sou o aflito que disfarço.

Minha vida foi perdida. Padeço
da covardia, atávica e mórbida
dos que se amoldam ao contexto.

Minha alma foi fraudada. Ardo
de anseios postergados. Tardo
em dar cabo aos meus medos.


Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

terça-feira, agosto 3

horizontes - primeiro poema


Para Lenaide e Walter Luna



Foto: Fred Matos


nem todos os horizontes são horizontais.
o meu é o muro, vil, vertical, bruto,
barrando os de lá, do lado de fora,
paisagens que os poetas namoram,
e que ardem, quando findam as tardes.

há, sei, os que são metas, metáforas,
povoados de ambições e lubricidade,
mas são ilusões, e são,
se lhes queremos alcançar, cansaço.

o meu horizonte é substantivo próprio.
é O muro. um muro alto, caiado, sóbrio.
mais que barreira física, moral.

os portões ficam fechados,
mas os guardas facilitam fugas
a troco de alguns trocados.

o que posso querer do outro lado?
liberdade? qual liberdade?
liberdade para ouvir que não há vagas?
ou que estou velho para o trabalho?
liberdade para ouvir:
-- Vá trabalhar vagabundo.
quando tudo que peço são migalhas?
liberdade para chorar
pelas crianças prostituídas?
liberdade para roubar, matar,
ser preso, torturado, extorquido?

não, não há liberdade lá ou cá.
horizontes e liberdade são miragens,
estão onde não se pode alcançar,
são sonhos guardados na lembrança,
são esperanças que não tenho mais.


Fred Matos

publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999
e na Antologia Horizontes
Editora Poesia Diária
Setembro/1999

sábado, julho 31

horizontes - segundo poema



não sei quem é o autor da ilustração



sobre o mar,
desponta no horizonte,
a primeira lua do outono;
última azul do milênio,
segunda deste ano.

tapete no oceano,
imã do meu olhar,
o manto de prata se estende
do ocidente ao oriente,
do tangível ao abstrato.

faço um leito com argaços,
para esperar o nascente
cingindo-te nos braços.

que o horizonte seja a moldura,
onde são suas pernas compasso.




Fred Matos


publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999
e na Antologia Horizontes
Editora Poesia Diária
Setembro/1999

quarta-feira, julho 28

horizontes - terceiro poema




Foto: Fred Matos




ao horizonte parto agora,
na minha última jornada.
as mãos vão vazias,
e na alma, destroçada,
vãs são as lembranças
duma vida esperdiçada.

da sinfonia divina,
um só acorde acorda,
fechando a tarde morna,
minha vil melancolia,
que a lua, essa madrasta,
escande na noite fria.

soberana da noite,
velha rameira;
meu óbolo,
já paguei ao barqueiro.


tardo em ir,
mas vou inteiro.



publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999
e na Antologia Horizontes
Editora Poesia Diária
Setembro/1999

segunda-feira, julho 26

horizontes - quarto poema



Foto: Fred Matos



meus olhos buscam um horizonte etéreo,
no aparente caos da arquitetura celeste,
e fitam, além dele, além do leste e do oeste,
onde deus engendra os seus mistérios.

vejo-o, ele brinca, não é um homem velho
como vi retratado nos versos de dante.
tem ao lado, magoado, a presença constante
de um poeta pândego, que se pretende sério.

reconheço-o. sou eu mesmo, neste espelho,
que as mazelas humanas reflete.
revolta-me ver que sou um marionete,
que ele manipula sem amor ou zelo.

meus olhos voltam rápidos ao horizonte,
que desta verdade me quero distante.




Fred Matos

publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999
e na Antologia Horizontes
Editora Poesia Diária
Setembro/1999

segunda-feira, junho 28

desvelamento



ilustração: Waterhouse, Awakening of Adonis


ama, em mim, apenas
o que é de ti reflexo:
sou somente espelho
do que vivo em versos.

como espelho sou,
os sinais estão trocados:
te amo onde me vejo,
te vejo se me regalo.

perdi meu coração
num desvelamento da alma,
na clareira ali aberta
só a lascívia se instala.



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999


quinta-feira, abril 1

haicai




não sei quem é o autor da imagem



Santo no andor
com cheiro de alecrim.
Sexta da paixão




Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

quarta-feira, dezembro 23

meu calendário




para Lota





foto: Mark Vincent Muller
The Flame Of The Forest




no natal
não me encanto:
ensimesmo-me.

não festejo
a alvorada
do primeiro
de janeiro.

espero o frevo,
fevereiro.

só então
meu calendário
novo ano revela

e revelo-me inteiro.


Fred Matos


poema publicado com o título "fevereiro" em "Eu, Meu Outro" Maio/1999

sábado, dezembro 12

dois microgramas esotéricos



Ilustração: Philip Peynerdjiev
Alone In The Fog


Flor de sangue, fogo
coral, dos campos de Java,
que Shiva fecunda.


Ascendo as sendas
das verdes colinas mágicas
do ádito púrpuro.




Fred Matos
publicados em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

quinta-feira, dezembro 10

eu, narciso


para Lídice


ilustração: "Eco e Narciso"
John William Waterhouse


o espelho
águ
as calmas
guarda
doce
a imagem refletida
e o segredo do amor que me consagro.

voluptuosamente abraço-me líquido
concrecionando-me onde meus braços estendo.

somente eu posso amar-me absolutamente
e dedicar-me completa exclusividade.

quem
senão eu
pode permear meus mais íntimos anseios
sem quedar-se em melancólica perplexidade?

minha voz é música de divina sonoridade
para ouvi-la os pássaros silenciam
e
na cascata
a água adquire imobilidade.

sou feliz no bastar-me infinitamente
amando o que guardo em cada ruga do rosto:
sou velho
jovem
e eterno
enquanto houver humanidade



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

quarta-feira, dezembro 9

nada é, se não existe



foto: Sven Fennema - "no future"

não fique triste, menina,
chorar assim, é pecado.
tudo é efêmero e fado.

cumpre-nos gozar a sina

da vida que nos foi dada.

o sofrimento é baldado.


nada é se não existe,

ou é, em memória, guardado.

não há o tempo por vir,

todo o tempo é passado

e o passado só resiste

se por alguém recordado.


não fique triste, menina,

chorar assim é pecado.

se o futuro não existe

e é apagado o passado,

viva somente o momento

que é agora ao meu lado.



Fred Matos

publicado em "Eu, Meu Outro"

Maio 1999

quinta-feira, dezembro 3

em sombra e luz



foto: "Ania", de LeHu



em sombra e luz
teu corpo me é revelado
em equilíbrio perfeito
como se inanimado

e nada mais direi
para não ser censurado



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Maio 1999


terça-feira, dezembro 1

desconcatenado



foto: Mário Cravo Neto


cato palavras no aurélio
e faço versos como muros...
nunca ouvi cantar as musas,
nem tenho sentimentos puros.

não tenho a visão dos místicos,
nem sei concatenar o abstrato...
não importa o que penso ou sinto:
tudo o que escrevo é retrato.

não quero lhes impingir pilhérias
dizendo de coisas que não vivi,
nem quero expor minhas misérias.

não há nada essencial de que eu faça,
[o sonho é pessoal, a vida fatal]
a trama deste drama banal.



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Maio / 1999

segunda-feira, novembro 30

duas paisagens *


para Armindo J. C. Bião

ilustração: Paulo Ito
Cidade Vermelha
encontrada no bog do autor



a primeira paisagem
cheira a pólvora
o absurdo dança frenético
na atmosfera vermelha
chaminés esfumam o espaço
luzem prédios de vidro e aço
roncam motores
soam buzinas
silvam projéteis
a boca da arma fuma
um peito sangra
o sangue escorre
se mistura
ao pó progresso
desce a calçada
inunda o asfalto

forma vermelha abstrata
nova plasticidade
moderna arte das esquinas




ilustração: Van Gogh
Trees and Undergrowth



a segunda paisagem
é verde de todos os tons
inclusive os tons jobins
o vento dança e lança além
o cheiro verde do mato úmido
cheiro de flores
cheiro de frutos maduros
e sons de grilos e de sapos
sons de pássaros e de cavalos
sons de todos os bichos
e do homem que sonha
à sombra de árvore frondosa

sonha e ronca
raízes saindo pelos olhos
tronco pela boca elástica



Fred Matos

* poemas publicados em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

reescritos em 30/11/2009





domingo, novembro 29

fado antigo


para marina

não sei quem é o autor da foto

ouço, se não me traem os sentidos,
soando das cordilheiras líquidas do mar,
cordas de aço cantando um fado antigo.

ouço mulheres chorando a saudade dos filhos,
dos amantes, dos maridos:
marinheiros que nunca vão voltar.

na esperança de que voltem,
trocam as flores secas das grinaldas
as noivas que nunca vão casar.

são vozes gregas, fenícias, portuguesas...
que em comum toam, com a mesma melancolia,
a dor de quem vive só. só por esperar.




Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

quarta-feira, novembro 25

alternativas


Para Mariana


ilustração: Magritte - The False Mirror


Perde a vida quem a ata a laço,
crédulo numa verdade definitiva,
quando tantas são as alternativas,
quanto astros há, no infinito espaço.

E, no perdê-la, a faz cativa
do traçá-la, traço a traço,
forjando, a régua e compasso,
as cadeias em que a escraviza.

Quem à ambição de glória ou ouro
empenha a existência, renuncia
ao seu único e verdadeiro tesouro.

Mas quem, ao sabor do acaso,
vive intensamente cada dia,
fada-se à insídia do fracasso.



Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

segunda-feira, outubro 19

contrição



foto: Mário Cravo Neto


Insidiosamente virá.
A morte virá infalível.
Bem aventurados os
que não sofrem com isso.

Eu a espero contrito.
Tenho sido seu aliado,
néscio nos cuidados
que devia ter comigo.

Cedo ou tarde virá
usando qualquer artifício
para o seu abraço fatal.

Absolutamente morto,
infinitamente findo,
serei objeto, abjeto, ábdito.




Fred Matos
publicado em "Eu, Meu Outro"
Editora Poesia Diária
Maio/1999

domingo, setembro 27

micrograma


Ilary Blasi
não sei quem é o fotógrafo


o cio das moças
exala perfume raro
como flor em cacto




Fred Matos
em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

quinta-feira, setembro 17

micrograma



não sei quem é o autor da foto



hermética música
há no silêncio da lágrima
que salga o mar





Fred Matos
em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

sábado, setembro 12

micrograma


foto: Arno Bani


teu azul profundo,
nos olhos de cristal tímido,
cintila o mundo.



Fred Matos
em "Eu, Meu Outro"
Maio/1999

pesquisar nas horas e horas e meias