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sexta-feira, abril 2

na noite das barricas bentas – parte 1





ilustração: Jan Saudek

The Reader of Dostoievsky, 2000



Nem rastro ficou. Só a notícia do estrago que nem se sabe se é lenda ou é fato de fato, conquanto aqui ninguém duvide, e contradição não se revele entre os relatos de uns e de outros que nem testemunhas foram, tanto tempo já passado, mas que nada omitem, contando tudo tintim por tintim. Maria Cachaça, cuja alcunha dispensa explicações e justifica o fétido bafo, como quem a tudo tivesse visto, arregala os olhos miúdos e confirma, atribuindo ao capeta o inusitado. A ciência não explica, nem se sabe se há relação de causa e efeito, mas se diz que aconteceu no dia em que o sol não nasceu, os relógios pararam e que, portanto, não consta do calendário daquele dezembro de 1900, vésperas de um novo século que se anunciava e de cuja ferocidade e desventuras não se podia então prever e é matéria de que aqui não tratarei.


Dia igual nunca houvera e não se sabe de viva alma que tenha tido coragem de pôr os pés além da porta. É bom que se diga que o fenômeno solar, apesar de circunscrito àquele povoado, já foi aceito pela comunidade científica, após exaustivos estudos, entretanto não conclusivos, mas referendado com base em depoimentos de alguns viajantes, que, tendo por lá passado, afiançaram o ocorrido, negando peremptoriamente a hipótese de coletiva alucinação, com o que concordam os peritos em anomalias psicológicas, em vista de que não estavam os forasteiros todos juntos, nem tampouco fora o mesmo o horário das suas chegadas a Poço Fundo, este fim de mundo onde agora me vejo estabelecido por transferência discricionária, imposta por perseguição política, para servir no posto de benefícios local. Vida de funcionário público tem dessas coisas, mas isto é também uma outra história.


Era um grito pavoroso, um grito humano, vindo de todo lugar e de lugar algum, um grito continuado como canto de cigarra e pungente como cio de gata, mas humano na sonoridade. Ecoava nas paredes o grito, único som audível capaz de romper a escuridão. Candeeiros eram inúteis. Velas, fósforo, nenhum lume, como se oxigênio não houvesse para nutrir as chamas. Inúteis também eram as palavras: nenhum som soava, exceto o grito absurdo vindo do nada. Homens, mulheres, crianças, choravam sem ruído, sem soluço, sem lágrimas. As orações, súplicas, arrependimentos, calavam nas almas beatas. É o fim do mundo, o purgatório, estamos mortos. Soube-se depois, quase todos pensaram. Até mesmo os bichos domesticados, os depoimentos relatam, sofreram conseqüências. Os cães, rabo entre as pernas, imóveis sob as camas. Os gatos, estes dormiram todo o tempo, nenhuma novidade. Dos pássaros, nenhum pio, imóveis nos poleiros das gaiolas. Os galos só cantaram quando no dia seguinte raiou a aurora e o sino anunciou a primeira missa do século novo. Nunca antes um culto congregara tanta gente em Poço Fundo, ocasião propícia e bem aproveitada pelo pároco para a conversão dos ateus e coleta de fundos para a reforma do templo. Pintura nova, novo telhado, paramentos limpos e engomados.


Os primeiros dias passaram, a rotina começava a se restabelecer, outros assuntos ocupando paulatinamente as prosas das comadres, foi quando as mulheres, absolutamente todas as mulheres, mesmo aquelas tidas como estéreis e as virgens, inclusive a carola que servia ao padre, Dona Mocinha, cabaço acima de qualquer suspeita, descobriram-se grávidas. Inconformado e ainda sem saber ser fenômeno coletivo, Amadeu, tio avô de Maria Cachaça, passou a esposa na faca e com ela o fruto do imponderável. A paixão tem seus desatinos. Sorte dele que o júri popular, todos os jurados também vítimas do inusitado, inocentou-o, mas não escapou da loucura, por divina condenação, e, desde então, maltrapilho, viveu perambulando as vilas da comarca.



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na noite das barricas bentas – parte 2


Grávidas todas as mulheres, quem irá aparar tantas crianças, se, como é bem possível, nasçam todas no mesmo dia, na mesma hora, tal qual foram concebidas? Nicolau Miranda, o alcaide, imaginando a previsível barafunda, convocou reunião da Câmara Municipal para debater o possível caos. Levar o problema à esfera estadual, pedir ajuda ao Governador, foi a primeira sugestão descartada. Seremos motivo para chacota. Terra de cornos, dirão, e o riso forasteiro será nosso infortúnio. Foi decisão quase unânime, e, dela decorrente, a formação de uma subcomissão parlamentar extraordinária de antipropaganda, destinada a abafar o caso, missão que não se cumpriu a contento, como talvez vejamos adiante, se adiante eu ainda me lembrar do assunto acessório. Tantas outras idéias estapafúrdias descartadas, entre as quais a de um certo Adolfo que ousou propor aborto coletivo, por convencimento ou na porrada, os edis fixaram-se naquela que lhes pareceu a mais simples, sigilosa e eficaz: treinar os homens para o parto das esposas e filhas. As mulheres deliciaram-se: veremos se são mesmo machos, se não irão se desmilingüir ao primeiro sangue.

A primeira defecção veio, como sói de ser, de onde menos se esperava. Despachou o prefeito a primeira-dama, dona Filomena, para a capital. Vais para a casa da tua irmã até o parto. Sou lá eu homem de aparar criança? Melhor que o expila, seja lá o que for que trazes no ventre, em um bom hospital. Aqui ao acessório retorno por propício esclarecer: nem mesmo o ter jurado sobre a Bíblia conseguiu conter a língua de dona Filomena. Também, coitada, como explicar à irmã a extemporânea gravidez, ela que dos sessenta já passara? E como imaginar que a irmã, sangue do seu sangue, carne da sua carne, guardiã, também juramentada, do transcendental segredo, o comentaria com o esposo, seu cunhado, deputado, homem público, que, como se costuma acreditar e verdade deve ser, faz de notícia prestígio, de fagulha braseiro e da palavra empenhada esquecimento?

A noticia ganhou manchete no “A Tribuna do Norte”, se espalhando pelo país e além das nacionais fronteiras. Até do Rio de Janeiro repórteres vieram a Poço Fundo. Apolônio Pitomba, líder da oposição, famoso na região pelos discursos inflamados, retórica empolada, vazia de conteúdo, foi estrepitosamente aplaudido quando pediu o impeachment do prefeito, apontando-o como o responsável direto pelo vazamento da notícia “que, além de tudo, concidadãos, afronta e desmoraliza a nossa comuna, que unanimemente deliberou pelo completo sigilo do nosso desditoso infortúnio. É crime de traição. Crime de lesa-pátria. Crime imperdoável.”. Está nos empoeirados anais da casa, bem como estão os registros dos debates que mobilizaram Poço Fundo nos dias seguintes. Safou-se o prefeito quando o líder da maioria fez ver ao plenário e ao populacho irrequieto, que dona Filomena, não obstante ter sido a primeira, não foi a única prenhe a retirar-se da cidade. Quase todas as que tinham família alhures e alguns contos de réis seguiram-lhe o exemplo. “Inclusive, nobre vereador Apolônio, a sua esposa. Como então, com que direito, com quais provas, acusa-se dona Filomena, escol da nossa sociedade, do deslize que nos acomete?”. Aplausos. Talvez, mas não há certeza, tenha sido a primeira CPI cuja pizza tenha sido assada antes da implantação.



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na noite das barricas bentas – parte 3


Aqueles que conhecem o significado da palavra gratidão hão de entender esta breve interrupção.

Antes que eu me esqueça e porque creio oportuno que aqui o faça, peço-lhes vênia para registrar minha gratidão a Bartolomeu Borges, o poeta de Poço Fundo, titular da sua Secretaria de Educação e Cultura, guardião da memória escrita da cidade, por me haver franqueado acesso aos arquivos públicos. Insisto, querido editor: este é o local apropriado, não em uma nota ao pé da página ou mesmo na página das dedicatórias que só é lida pelos que lá têm o nome grafado.

Afastada a ameaça de cassação do seu mandato, quase todos os homens já instruídos para o procedimento obstetrício, Nicolau Miranda informou ao governador que seria bastante mandar a Poço Fundo uma pequena equipe médica para atender os casos mais complicados

Enquanto os homens se ocupavam das providências óbvias, do ramerrame, do comensurável, as mulheres conjeturavam o insondável. Lembremos-nos que naquela época a ciência ainda não desenvolvera técnica capaz de predizer qualquer característica de um nascituro. Deus nos livre de parir demônios. Diziam-se, umas às outras, primeiro à boca pequena, depois, movidas pelo medo, boca no mundo, lágrimas nos olhos. De todas esta seria a maior calamidade. Pensou Nicolau quando lhe chegou aos ouvidos o terrível vaticínio e convocou reunião secreta dos mais doutos e íntimos confrades. Não me quiseram ouvir, bradou Adolfo, ouçam-me agora, matemo-los todos. Naquele instante nem o padre José protestou e um profundo silêncio paralisou-os constrangidos. Silêncio rompido por Genésio Brito, o boticário, que com um fio hesitante de voz materializou a dúvida nos demais adormecida: E que cara tem o demônio? Será possível identificá-lo pela aparência? Todos os interrogativos olhares fuzilaram o padre José, apenas ele, somente ele, exclusivamente ele poderia entre todos esclarecer a teológica questão. Terei que recorrer ao bispo diocesano, talvez seja assunto da alçada do Sumo Pontífice. Não sei, nada posso lhes dizer agora, peço-lhes serenidade

Hoje os imagino, mais de cem anos passados, aptos a quaisquer ânimos, menos à serenidade. Porém, prisioneiros de sentimentos inconciliáveis, resolveram dar ao padre um prazo de dois meses para solucionar o problema. Tempo maior impossível porque outros dois meses seriam necessários para a formação de uma comissão executiva de extermínio que se encarregaria de planejar e coordenar todas as ações necessárias para salvar o mundo das hostes demoníacas. Das mulheres os buchos avolumavam

Foram dias terríveis aqueles de dúvida, e outras questões os sobressaltavam: Deveriam trazer de volta as esposas e filhas que mandaram parir em outras cidades? Assunto de tamanha gravidade poderia ser decidido na província? E se mais uma vez a notícia vazasse, como lidar com a opinião pública, com as autoridades judiciárias, com a imprensa? As mulheres aceitariam ver mortos os filhos, sobretudo se aparentemente normais? O diário do prefeito é talvez o documento mais angustiante escrito em toda a história da humanidade, mas demonstra quão ladino pode ser um homem público: “Estou decidido, não vou segurar sozinho a batata quente. Amanhã chamarei o Pitomba para conversar a sós e oferecerei ao salafrário a presidência executiva da comissão municipal de extermínio. Se ao cabo tudo correr a contento ele tentará capitalizar para si o sucesso do empreendimento, mas pior será se tudo isto der em merda e eu não tiver a quem atribuir a desgraça.”. E, anotado na noite seguinte: “O Pitomba caiu como um patinho. É tão estúpido que me pediu para mandar à câmara mensagem propondo a criação de uma secretaria extraordinária para assuntos extraordinários, para a qual o nomearei titular . Amanhã segue a mensagem que será aprovada por aclamação.


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na noite das barricas bentas – parte 4



Em metade do tempo que lhe fora concedido, o padre José trouxe a resposta da Igreja, comunicada a todas as autoridades de Poço Fundo, em reunião que se pretendia secreta, realizada no salão nobre da Câmara Municipal. Infelizmente não é possível, senhores, reconhecer Satanás por sua aparência. O nosso bispo foi enfático e me pediu que os lembrasse que Lúcifer foi o primeiro dos querubins, que permanecia na presença do grande Criador, e os incessantes raios de glória que cercavam o eterno Deus, repousavam sobre ele. Recomendou-me também que lhes lesse Ezequiel 28:12 a 15: “Assim diz o Senhor Jeová: Tu és o aferidor da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; toda a pedra preciosa era a tua cobertura… Tu eras querubim ungido para proteger, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti.”. Os senhores entenderam? Está suficientemente claro?

Matemos-os. Matemos-os todos. Era a voz tonitruante de Adolfo rompendo o silêncio sepulcral que se estabelecera e ecoando entre os santos da nave, arrancando entusiasmados aplausos de uns e discretos apupos de outros.


Acalmem-se, senhores. Ouviu-se peremptório o vozeirão de Apolônio Pitomba, investido da autoridade do pomposo cargo de Secretário Extraordinário Para Assuntos Extraordinário. Deixemos que o padre José conclua a sua douta alocução.


Obrigado Dr. Apolônio. Retomou a palavra o pároco. Não, Sr. Adolfo, não é tão simples assim. Primeiro porque não poderíamos tomar medida tão radical sem certeza absoluta, depois, e mais importante, porque a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana já não é aquela da Inquisição. Somente a Deus, Sr. Adolfo, é dado o poder de vida e de morte. Se Deus, onipotente, onisciente e onipresente permitiu a Lúcifer o Reino das Trevas, não o exterminou simplesmente, ele tinha os seus motivos. São insondáveis os desígnios divinos, Sr. Adolfo. Da mesma forma devemos considerar os acontecimentos que nos têm inquietado.


Um fio anônimo de voz interrogou: - E não faremos nada?


Contudo, senhores, a Igreja não lavará as mãos como Pilatos. O bispo comprometeu-se a arregimentar centenas, milhares de padres que virão acompanhar os partos e batizar as crianças no exato momento em que nascerem. A prefeitura recenseara todas as grávidas e se incumbirá de providenciar uma barrica para cada, de modo que os padres possam mergulhar as crianças em água previamente benta.


Aqui preciso interromper o diálogo para lhes dizer que imagino o brilho no olhar de Apolônio Pitomba, o titular da SEPAE − Secretaria Extraordinária Para Assuntos Extraordinários, pois, enfim, sua entidade teria uma tarefa a cumprir e, mais importante, motivo relevante para solicitar uma boa suplementação orçamentária, afinal, além das barricas, pensou, será necessário acomodar e nutrir toda a leva de sacerdotes, além de jornalistas e outros curiosos. Não posso provar, nada há documentado, mas é de se supor que tenha rolado uma boa comissão de toda esta dinheirama. Os valores eram vultosos, o município pobre, socorreu-o o governo do estado em cujo ralo uma parte deve ter escoado, mas isto é um mero, corriqueiro e insignificante detalhe que não vem ao caso.


Agora ouço a voz de Adolfo exultando: Isto sim, isto sim, nós os afogaremos.


- Pelo amor de Deus, Sr. Adolfo. Não os afogaremos, será apenas um batizado coletivo, se alguns morrerem será por desígnio divino e não por nossas mãos. Retrucou o padre José.


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na noite das barricas bentas – final





Não vou encher linguiça, nem as suas paciências, relatando pormenorizadamente os insignificantes eventos que transcorreram nos meses seguintes até aquele que ficou conhecido como “O dia do parto”.

Naquele dia Poço Fundo foi o assunto de todas as manchetes nacionais e precariamente abrigava trinta vezes mais almas do que a sua população. Eram tantos padres quantos os há no Vaticano e de tantas nacionalidades quantas há na ONU. Tantos jornalistas quanto havia jornais. Os maiores contingentes, porém, eram os formados por malucos, místicos, profetas, camelôs e punguistas.

Apolônio Pitomba, coitado, não dava conta de atender a tanta demanda. Meses de planejamento mostraram-se inúteis. Nas suas anotações lê-se que esperava que a população dobrasse naqueles dias e, homem prevenido e ganancioso, encomendara suprimento para o dobro do dobro, não somente para engordar a comissão, como também para apropriar-se das sobras, suponho. Um fulminante infarto do miocárdio viria a calhar para eliminar desta história um personagem tão desagradável, mas esta é uma estranha história na qual até agora só se registra um único óbito e se aguardam milhares de nascimentos. Apolônio era do tipo que transformava crises em oportunidades. Com público estardalhaço renunciou ao cargo acusando o prefeito de não lhe ter dado apoio suficiente e deixando subliminarmente entender que a máxima autoridade municipal desviara considerável soma dos recursos enviada pelo Estado ao município. Só não transcrevo aqui as anotações do diário do prefeito Nicolau Miranda alusivas ao fato porque não quero que o meu relato fira suscetibilidades e vá para o índex dos moralistas de plantão.

Batata quente nas mãos, Nicolau decidiu que era melhor ir acompanhar o parto de Dona Filomena e deixou acéfala a cidade. Mas com tantas novas cabecinhas prontas para apontar, não fazia, nem fez, como mais adiante se verá, nenhuma diferença. O caos estava formado, não havia mais nada que se pudesse fazer. Não havia comida para todos. O problema da água se agravou com a necessidade de encherem-se milhares de barricas e porque o povaréu emporcalhou a nascente do riacho com urina e fezes, na falta de lugar decente para cumprir as fisiológicas necessidades. Não havia um centímetro quadrado disponível sob qualquer teto para acomodar mais gente, e gente não parava de chegar.

Quem é do sertão sabe que não há coisa pior que a falta d’água. Nestas ocasiões é como se diz na roça: “filho chora e mãe não ouve”. Sendo assim deu-se o inevitável: o povaréu sedento e desesperado apoderou-se das barricas de água benta. Entre a água de benzer e a água de beber “quem há de negar que esta lhe é superior?”. Revelou-se, assim, também inútil o planejamento episcopal para o monumental batismo, quiçá afogamento, como desejava o Adolfo.

“De repente, não mais que de repente” “a cidade quedou paralisada”. Sem qualquer anúncio caiu sobre Poço Fundo um silêncio de sepulcro e fez-se noite ao meio-dia. Dia igual houvera apenas aquele, nove meses atrás, e o fenômeno in-solar testemunhas a dar de pau, conquanto, mais uma vez, a ciência não tenha sido capaz de uma explicação plausível. E, vindo de todo lugar e de lugar nenhum, ecoou um grito pavoroso, um grito continuado como canto de cigarra e pungente como cio de gata, mas humano na sonoridade. Ecoava nas paredes o grito, único som audível capaz de romper a escuridão. Candeeiros eram inúteis. Velas, fósforo, nenhum lume, como se oxigênio não houvesse para nutrir as chamas. Inúteis eram as palavras, nenhum som soava, exceto o grito absurdo vindo do nada. Homens, mulheres, crianças, choravam sem ruído, sem soluço, sem lágrimas. As orações, súplicas, arrependimentos, calavam nas almas beatas. É o fim do mundo, o purgatório, estamos mortos. Soube-se depois, quase todos pensaram. Até mesmo os bichos domesticados, os depoimentos relatam, sofreram consequências. Os cães, rabo entre as pernas, imóveis sob as camas. Os gatos, estes dormiram todo o tempo, nenhuma novidade. Dos pássaros, nenhum pio, imóveis nos poleiros das gaiolas.

Encerrado o encantamento as mulheres descobriram-se ocas, tal qual esta história dos que foram sem terem sido.



Fred Matos

segunda-feira, março 22

a garota do terceiro andar



ilustração: Luana Piovani, foto promocional

para Gerana Damulakis


Decidiu quando acordou que aquele seria um dia diferente, encheu de café a garrafa térmica, muniu-se do adoçante, de uma xícara, arrumou os papéis, pôs ordem na mesa, ajustou a cadeira, ligou o computador. A luz da manhã, mesmo filtrada pelo vitral psicodélico da porta da varanda, incidia sobre a tela. Levantou-se, improvisou uma cortina. Hoje nada de Internet, nem me ocuparei com jogos. Abriu o editor de texto, escolheu a formatação para parágrafos e fonte. Lá estava, alva, a tela que deveria receber a sua obra prima, a obra para a qual se sentia preparado após longos cinqüenta anos de leituras, dos clássicos da antiguidade até os vanguardistas contemporâneos. O primeiro cafezinho. Acendeu um cigarro. Não tinha história pronta ou iniciada na cabeça, mas isso não o preocupava. É tudo uma questão de começar, depois palavras virão puxando outras e será como na conversa de dois amigos que se reencontram após longos anos de separação: ao mutismo, à falta de assunto inicial, uma qualquer lembrança será a pequena chama que acende o pavio. É inevitável a explosão e as suas conseqüências, páginas e mais páginas de boa prosa, um lugar na Academia de Letras, o nome nos jornais, convites para palestras, viagens, coquetéis, noites de autógrafos, o sucesso, o Prêmio Nobel, o assédio das fãs. Mãos à obra. Preocupa-o agora definir um estilo. Podia optar, mas não se sentia atraído pela prosa arrastada e detalhista de Proust, nem pela complexidade do Joyce de Ulisses. Pensou na pontuação subversiva de Saramago, mas não queria que a sua obra-prima fosse recebida e citada pela crítica como um pastiche. Imperioso, portanto, afastar a tentação de beber nas fontes de Guimarães Rosa. A tela ainda branca, serviu-se de outro café, outro cigarro. Levantou-se, reajustou a altura da cadeira, caminhou pela sala. Será o meu próprio estilo, uma mistura de todos os estilos que conheço. Preferia romances novelas e contos com começo meio e fim, comparava-os a uma estrada reta e ensolarada, cujo previsível destino é, aqui e ali, interrompido por incursões em pequenas veredas acidentadas que ao cabo retornavam ao fio escorreito da narrativa, mas algo assim não terá o impacto que desejo, cairá na vala comum do esquecimento, devo tratar de montar um quebra-cabeça, contudo sem deixar a possibilidade de que se pense ter imitado o Cortázar. Terei fôlego para um romance? Veremos, não devemos antecipar dúvidas quando sequer se tem um começo.

Lembrou-se na moça do prédio defronte. Todos os dias, das segundas às sextas-feiras, pontualmente às 19 horas, ela abre as cortinas e a janela do quarto, põe pra tocar uma música que ele não ouve, despe-se e dança. Nos primeiros dias envergonhou-se por invadir a privacidade da moça e retirou-se, depois não resistiu. Ela há de me ver aqui, é tão próximo, que feche as cortinas. Mas vendo-o, ele tem certeza que ela o vê, não demonstra pudor. Exibe-se para mim. É bela e jovem, cerca de vinte anos. Depois de dançar nua alguns minutos, ela penteia cuidadosamente os cabelos longos castanhos escuros, veste-se, unta os lábios com batom vermelho, dança mais alguns minutos em frente a um espelho que há na porta do guarda-roupa, fecha a janela, as cortinas e sai. Ele continua na varanda, espera que alcance a rua e a acompanha com o olhar até que desapareça na esquina. Sabe que o espetáculo de strip-tease se repetirá às dez da noite, hora que ela chega, sabe-se lá de onde. Posso criar uma história a partir disto. Mas estava decidido a não se permitir fantasiar com aquela ou com qualquer outra moça, achava que não tinha mais idade para aventuras. Já é bastante que me inflame, não devo me envolver com ela, sequer literariamente.

Sentou-se. Outra vez a tela alva, outro café, outro cigarro. Desligou o rádio. As vozes, as músicas estavam interferindo. Impossível obter silêncio, da rua chegam freios, motores, vozes, latidos e há o barulho monótono e redondo do cooler ventilando o processador do micro. Já sei, preciso escolher uma boa citação, tomá-la talvez como mote, fio condutor. Levantou-se. Foi à estante, tantos livros, gavetas atulhadas de anotações. O mais inteligente é escolher algo que permita mil e uma interpretações, algo indefinido que eu e o leitor possamos preencher com a nossa imaginação. Abriu ao acaso Fernando Pessoa nas “Ficções do Interlúdio” de Álvaro de Campos. Lá estava, perfeita:

“No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...”

Agora sim, três versos na tela, parágrafo alinhado à direita, fonte em itálico e negrito em corpo 10. Café, Cigarro. Uma hora gasta deste dia que se prometia diferente de todos os outros, e nenhuma palavra realmente minha, deve ser a ansiedade, talvez o excesso de luz e de ruídos, ou a ausência de lembranças, o temor de criar personagens à minha imagem e semelhança, personagens acanhados. Venceu a vontade de jogar contra o computador uma partida de dominó ou de gamão. Não me renderei aos passatempos inúteis. Venceu a vontade de ler as mensagens dos amigos, gastaria muito tempo respondendo-as. Preciso de uma idéia. Lembrou-se que muitos autores fizeram fama e fortuna recontando fábulas antigas, pareceu um caminho fácil e óbvio. Não é o que farei. Talvez no jornal haja algo. Levantou-se, trocou o pijama por um short, foi à banca da esquina, comprou o jornal, tantas páginas, milhares de palavras, nada, nenhuma notícia realmente nova, nada inusitado, nenhum humor que pudesse usar, vestir com a sua verve. Duas horas, tantas xícaras de café, inúmeros cigarros, e tudo o que havia eram três versos de outrem. Limpou o cinzeiro. No fim de tudo dormir. No fim de quê? Devo me concentrar nestes versos, não necessariamente entender, deixar que eles me tomem, despersonalizar-me. No fim de quê? No fim do que tudo parece ser. E o que é que tudo me parece ser? Um vazio cheio de pequenos momentos vazios. Mas aquilo que me parece não essencialmente o é. Sacudiu a cabeça como para afastar a melancolia daquelas reflexões. Não há que se servir ao leitor um prato frio de angústias existenciais, isso é coisa que todos têm de sobra, é preciso dar ilusões, a possibilidade de identificação com um dos personagens, comovê-los. Não foi uma boa escolha a citação. Apagou-a. Não levantou, o livro de Pessoa estava ao alcance da mão, abriu-o, página 158, Caeiro: “... Que me importam a mim os homens. E o que sofrem ou supõem que sofrem?” Não, esta não me serve. A mim os homens importam muito e o que sofrem e sentem deve ser a essência de qualquer boa obra. Lembrou-se, não precisou procurar no livro, da Tabacaria: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Fechou o livro. Quatro gotas de adoçante na xícara. Dois dedos de café morno. Outro cigarro. A tela alva refletindo seu rosto.

Sentiu fome, e, como se sabe, o estômago precede a literatura, as necessidades básicas da sobrevivência ao prazer estético. Esquentou o resto de feijão que sobrara da véspera, fritou dois bifes, bebeu cerveja. Sei que me dará sono, melhor assim, durmo o resto do dia. Adiou para a noite uma nova tentativa. Na cama, a cabeça cheia de idéias, o sono não veio. Voltar ou não ao micro? Melhor ter primeiro a trama bem concebida e, mais importante, por onde começar. Nunca fora um observador arguto, desses que retêm cada aspecto da paisagem, da indumentária das pessoas, dos gestos, das inflexões vocálicas que podem variar de uma região para outra, dos aromas, principalmente dos aromas que tanto contribuem para enriquecer os textos, da vegetação, ele que mal sabe distinguir entre uma rosa e um hibisco. Ligou a televisão. Em todos os canais o mesmo péssimo programa. Desligou. Bebeu outra cerveja, a cada dois copos um cigarro. Francamente, estou convencido que não tenho um grama de imaginação. Decidiu sepultar definitivamente o projeto de escrever obras-primas, ligou o rádio, Caetano Veloso cantava “Outras Palavras”. Eu não as tenho. Nenhuma palavra. Nenhuma história que valha a pena contar. Fechou o editor de texto. Desligou o computador. Desmanchou a cortina improvisada e foi tomar sol na varanda. O sol se pondo atrás das montanhas, o céu tinto de todos os tons que se pode obter na mistura do amarelo com o vermelho, um pequeno avião decolando. Hoje é sábado, não esperava que houvesse strip-tease, mas lá estava ela, ainda mais bela à luz do crepúsculo e hoje, diferente dos outros dias, ela não se contentou com a dança voluptuosa, masturbou-se em pé, no meio do quarto, o único local de onde podia se exibir inteira. Não restou dúvida, ela o via e sentia prazer em ser admirada, em provocar a libido dele. Quando escureceu, o computador continuou desligado e o candidato a escritor, completamente esquecido dos seus projetos literários, conjeturava se valia ou não a pena tentar uma aproximação com a garota do terceiro andar.

Fred Matos


quarta-feira, fevereiro 17

sinceras condolências



Não sei quem é o autor da ilustração
cujo crédito vai para "nidhin.com"



Dr. Olavo,

Para ser honesto devo confessar que não é fácil a tarefa de relatar os episódios que resultaram no desenlace fatal de sua querida irmã. O Mário, que me contratou em seu nome, sabe que tenho dificuldade com as palavras, apesar da experiência adquirida em 35 anos de investigações criminais. Por isso contratei para redigir o texto, e assessorar-me na investigação, um jornalista aposentado de minha absoluta confiança.

Muito prazer Dr. Olavo, meu nome é José Abreu, o senhor fique tranqüilo, me comprometo a manter o sigilo imposto ao detetive Raimundo, a quem retorno a palavra.

Isso não lhe custará, Dr. Olavo, nenhum centavo a mais que o valor acertado através do Mário: contratei o José às minhas custas. Recebi, do Mário, a título de adiantamento, a importância de 10 mil dólares, e o endereço da caixa postal, em Paris, para onde enviarei este relatório.

Em trabalhos como este, não é usual que as conclusões precedam o relato das informações coletadas, contudo ouso afirmar que não encontrei nada que corrobore a tese de suicídio que me parece firmar-se nos meios policiais de Salvador. Acredito em homicídio e que, lamentavelmente, o seu cunhado foi o autor do crime.

Dr. Olavo, agora é o José quem fala para dizer que acha precipitada a opinião do Raimundo, sobretudo no que tange a concluir que o seu cunhado é autor do possível crime. É a minha opinião pessoal, apesar do respeito que tenho pelo “faro” do Raimundo, comprovado em investigações tão ou mais complexas quanto esta a que nos dedicamos agora. Entretanto, tendo como repórter policial acompanhado centenas de casos do mesmo jaez, posso asseverar que nem sempre o que parece evidente se confirma como fato.

Entrevistamos o Sr. João na porta do apartamento, pois ele não nos permitiu entrar, e o que dele conseguimos pode resumir-se nestas poucas palavras:

− “É o dom divino”. Foi o que ela disse esfregando no avental as mãos sujas de massa. Desinteressado da conversa, a seu pedido abri o forno onde coloquei a assadeira com uma fornada de pão. Voltei para o quarto para ver o jogo na televisão. Tudo o que tinha a declarar já o fiz na delegacia, os senhores, por favor, me deixem em paz.

Homem estranho o seu cunhado, não lhe notei traços de emoção.

O delegado franqueou-nos cópia do depoimento, do qual pinçamos o que nos pareceu mais importante e que relatamos mais adiante. Além disso, nos disse da conversa que tiveram após o depoimento propriamente dito.

Não, nada mais a declarar, disse ao delegado: tudo o que sei é o que contei. “É o dom divino”, foram essas, precisamente essas, as últimas palavras que ela me disse, não sei realmente sobre o que falava, não dei atenção e somente essas palavras ficaram na minha memória. Mas que importância tem isso? O doutor é casado? Sendo, sabe que mulher é assim mesmo, passa o dia falando a respeito de tudo e de nada e quase sempre está falando consigo mesma. Não dei importância. O forno estava aceso, coloquei a assadeira com os pães, ela ficou abrindo massa para outra formada. Posso fumar?

É proibido senhor, fumar em recinto público fechado, mas o senhor só precisa assinar o depoimento e pode ir embora, mas me comunique caso pretenda sair da cidade.

São os seguintes os trechos pinçados do depoimento do Sr. João Álvaro Moreira Neto:

Perguntado em que circunstância encontrou o corpo da esposa, respondeu que estava no quarto vendo um jogo de futebol na televisão quando sentiu cheiro de queimado, sabendo que a esposa assava pães não deu maior importância. Porém, constatando que após alguns minutos o cheiro de queimado se agravava fui ver o que estava acontecendo. Já na sala, à medida que se aproximava da cozinha, intui que algo de terrível ocorrera. “Nunca vi nada mais apavorante na vida, o forno estava aberto, ela com a cabeça enfiada, fedor de carne e cabelo queimado, o tronco sobre a tampa do forno, o resto do corpo no chão, tudo como a policia encontrou e fotografou. Desliguei o forno, senti enjôo, vomitei, liguei para a policia, não toquei em mais nada, saí do apartamento, tranquei a porta e só entrei novamente com os policiais que demoraram quase duas horas para chegar”.

Perguntado se encontrou alguma carta ou bilhete deixado pela esposa, respondeu que não encontrou nada.

Perguntado se sabe o motivo, ou se tem opinião para justificar um possível suicídio da esposa, respondeu que não. “Eu a acreditava uma mulher, se não feliz, pelo menos conformada. Tínhamos uma vida financeira equilibrada, sexualmente ela vinha mostrando algum desinteresse já há alguns anos, mas considero isso normal após 26 anos de casamento. Não tivemos nenhuma discussão, nenhum desentendimento. O único filho que tivemos morreu ainda criança. Ademais não acredito em suicídio, pois não me parece provável que uma pessoa seja capaz de queimar-se até a morte, poderia até tentar, mas ao sentir o calor... não, não acredito. Acho que foi morta ou que sofreu algum acidente ainda inexplicável”.

Perguntado se ouviu gritos ou qualquer outro barulho no tempo decorrido entre o momento em que a viu viva pela última vez e o em que a encontrou morta, respondeu: “como eu já disse, estava no quarto assistindo o jogo na televisão e com o volume alto, pensei ter ouvido a campainha da porta, mas isso não me preocupou, pois, estando ela na cozinha era natural que atendesse. Não ouvi nenhum grito ou barulho, o que é muito estranho, pois não compreendo como uma pessoa possa queimar-se sem gritar”.

Perguntado se sentiu falta de alguma coisa, respondeu que não, que nada de valor está faltando.

Perguntado se foi ele que matou a esposa, respondeu que não, mas que se estivesse investigando teria muita dificuldade em acreditar na sua inocência.

Como o pode ver, Dr. Olavo, tudo aponta para o seu cunhado.

Dr. Olavo, agora é o José, novamente, para dizer que acredita na possibilidade de uma terceira pessoa ter entrado no apartamento e narcotizado a sua irmã antes de enfiá-la forno adentro. Note-se que o seu cunhado pensou ouvir a campainha da porta, e que não há no depoimento referencia a se a porta estava trancada ou destrancada. Fiz esta pergunta ao seu cunhado e ele disse que não tinham o costume de trancar a porta por dentro, porque é do tipo de porta que só abre por fora com uso da chave. Ou seja, uma fechadura comum de porta da rua com maçaneta externa fixa, dessas que serve apenas para puxar e como elemento de decoração.

Retorno ao Raimundo.

Sendo assim, Dr. Olavo, solicito que autorize o Sr. Mário a pagar-me a segunda parcela contratada. A terceira, e última, espero receber quando enviar o resultado final da investigação.

Com as nossas sinceras condolências

Raimundo Pacheco e José Abreu

sexta-feira, fevereiro 12

beleza pura



conto carnavalesco para cantar


Foto: Jotafreitas


Não me amarra dinheiro não, mas formosura. Este ano, Colombina, não vai ser igual àquele, já detonou o som na praça. O caminhão eletrificado, milhares de watts, decibéis à beça, todas as bocas troando um baiano frevo, balança o chão da praça Castro Alves, não pára, arrasta a multidão pipoca subindo, lentamente, a Carlos Gomes, tem pé na dança. Dinheiro não, a pele escura. No mete o cotovelo vai abrindo caminho, atrás só não vai quem já morreu ou fica esperando outro, que já vem, que já vem, que já vem, umazinha, alemã deve ser, xenhenhém úmido decerto, pendurada no pescoço do negrão filho de Gandhi de sorriso sonso e intenção humana como a minha que transo todas sem perder o tom. Dinheiro não, a carne dura. Um grupo, abadas amarelos pintalgados de tons vermelhos, desce a ladeira de São Bento chacoalhando pandeiros, batendo agogôs, tambores, latas. A chuva bem-vinda pé-d’água desaba refresca e passa. Nessa cidade todo mundo é de Oxum, não se esqueça de mim, não desapareça, Colombina, homem, menino, menina, mulher. Poucos são ainda dominós, pierrôs, arlequins, havaianas, tuaregues, mascarados, nesta multidão com pouca roupa graças a deus. Dinheiro não, moça preta do Curuzu, não me leva a mal, vou beijar-te agora, beleza pura, hoje é carnaval, não faça como aquela que bebeu, bebeu, bebeu e depois se misturou à turba, fugiu. Se a canoa não virar virão marinheiros, índios, cangaceiros e baianas. Quando essa preta começa a tratar do cabelo é de se olhar. No tabuleiro da baiana tem vatapá, caruru e do seu tacho, flor do dendê, recende o aroma saboroso do acarajé fritando. Peço um, só com pimenta, melhor acompanhamento não há para uma cerveja gelada, não à estupidez, no ponto em que se formem dois cremosos dedos de espuma. Toda a trama da trança a transa do cabelo. Você me puxa, me leva pela mão para o meio da rua, conchas do mar ela manda buscar pra botar no cabelo, a praça fica pra trás, subimos a Chile, à esquerda o Elevador Lacerda, lá embaixo, azul esverdeado, Todos os Santos, o mar da baía onde bóia redondo o Forte de São Marcelo, no horizonte a ilha de Itaparica, toda minúcia, toda delícia, vamos em frente, Misericórdia, Praça da Sé, Terreiro de Jesus de tantas igrejas, não me amarra dinheiro não, mas elegância e agora o Pelourinho para ver ouvir o carnaval de outrora nas fantasias, das bandinhas, dos violões e bandolins do Paroano sai Milhó, não me amarra dinheiro não, mas a cultura: Quem é você, diga logo que eu quero saber o seu jogo, dinheiro não, a carne dura. A tarde cai e da sacada do velho reformado sobrado uma avozinha acena e dança, acena e dança, acena e dança, ao redor crianças jogam confetes atiram serpentinas, beleza pura. Moço lindo do Badauê, beleza pura. Se eu deixar de sofrer como é que vai ser para me acostumar, beleza pura? Do ilê aiyê, beleza pura. Na Baixa dos Sapateiros, dinheiro yeah, beleza pura, sentado neste improvisado botequim, longe o som dos trios, tontura de sons, cores, aromas, a filha da Chiquita Bacana, morena mais dengosa da Bahia, dentro daquele turbante do filho de Ghandi, pede a saideira, é o que há, tudo é chique demais, tudo é muito elegante, beleza pura. Antevendo horas de gozo, minutos que sejam são serão suficientes, manda botar palha da costa e que tudo se transe, sequer percebo, todos os búzios, todos os ócios, que acabou o nosso carnaval nas cinzas de uma quarta-feira.

Não me amarra dinheiro não, mas os mistérios.

Fred Matos

quinta-feira, outubro 8

Lafite Rothschild 66





Esperava na porta da escola.
- Fez boa prova, filhinho?
- Normal.
- Normal?
- É. Normal.
- E isto é bom ou ruim?
- É normal, mãe. Vamos logo, tá todo mundo olhando.
- Todo mundo olhando o quê?
- Você.
- Todo mundo quem?
- Meus colegas, mãe. Vamos logo.
Arrancou o carro.
- Você tem vergonha de mim?
- Não, mãe.
- Por que estou gorda?
- Não, mãe.
- Feia? Velha?
- Não, mãe.
- Então o quê?
- Eu pedi que não me buscasse.
- Não tinha nada pra fazer, que mal faz?
- Amanhã ficam gozando: “o filhinho da mamãe”.
- Os outros não têm mãe, também? Não amam as suas mães? Têm vergonha delas?
- Você não entende mesmo.
- Não, não entendo.
- Não sou mais criança, prefiro ir de ônibus com a turma.
- Vamos passar no Shopping?
- Só se me comprar um tênis novo.
- Outro? Seu pai não lhe deu um tênis outro dia?
- Muito vagabundo aquele.
- Um bom tênis e muito bonito.
- Mas não é Timberland, nem Oakley, nem Nike, é um marca de pobre...
- Bobagem, só porque não é de marca famosa.
- Sabe o Paulinho? Ele ganhou da mãe um Nike Shox TL, custa uns mil reais.
- Paulinho da Vilma, do 808?
- É, ele mesmo.
- Eles estão com três cotas do condomínio atrasadas, metade da correspondência que recebem é cobrança. Só pode ser pra me humilhar.
- É porque ela gosta mais dele do que você de mim.
- Que bobagem, meu filho, nenhuma mãe gosta tanto de um filho quanto eu de você. Está bem, eu compro o tênis, mas você não diz a seu pai, ele vai ficar furioso se souber que eu paguei mil reais por um tênis.
- Só porque é pra mim.
- Não diga isso, seu pai também ama muito você, é que mil reais é muito dinheiro por um tênis.
- Eu não acho. Acho que muito caro é pagar mais de dois mil por uma garrafa de vinho igual àquela que papai comprou.
- Foi uma pechincha, filhinho. Aquela safra de 66 do Lafite Rothschild foi excepcional, vale mais que o dobro.
- Não achei nada demais.
- Você bebeu?
- Papai me deu um gole pra experimentar.
- Ele sabe que não deve lhe dar bebida alcoólica. Você é muito novo pra beber.
- Já fiz quinze anos, lembra?
- Mesmo assim, não quero que você acabe alcoólatra.
- Você está mudando de assunto, mãe. Você acha caro mil reais por um tênis que dura uma cara e acha barato uma garrafa de vinho de dois mil que você beberam em um jantar.
- Dura uma o quê?
- Uma cara.
- Isso é quanto tempo?
- Muito tempo.

Entregou o carro ao manobrista do shopping.
- Larga da minha mão, mãe.
- Por quê?
- Pega mal. Vai que encontramos algum amigo, depois fica dizendo: “o Juca parece um bobão, mãos dadas com a mãe”. Eu não sou mais criança.
- Está bem, vamos comprar o tênis, depois você vai tomar um lanche enquanto faço as unhas.

De noite, em casa.
- Meu bem, vou pra um spa, preciso perder pelo menos dez quilos, depois vou fazer uma lipo na barriga, um face-lift ou aplicações de Botox. Preciso dar uma recauchutada.
- Como é que é?
- Estou gorda e velha.
- Que bobagem, você está linda e no peso ideal pra sua altura. Quem está enfiando esta bobagem na sua cabeça.
- O Juca...
- O Juca? Mas que tolice.
- Ele tem vergonha de mim.
- Vergonha de você?
- Não quer mais que o apanhe no colégio, no Shopping caminha adiante como se não me conhecesse...
- Mas isto é normal na idade dele. Deixe de bobagem.
- Você só está dizendo isso pra não ter que gastar comigo.
- Gastaria com prazer se fosse necessário, mas não se pode melhorar o que está perfeito.
- Claro que é necessário. Eu estou gorda e feia.
- É muito dinheiro pra gastar à-toa, como se estivesse mudando o corte do cabelo.
- Muito dinheiro porque é pra gastar comigo, caro foi gastar dois mil em uma garrafa de vinho.
- Meu bem, você sabe que foi uma pechincha aquela garrafa de Lafite Rothschild e foi para comemorar o nosso aniversário de casamento. Quando eu comprei você não reclamou, nem falou nada na hora de beber, por que isto agora?
- Você por acaso me perguntou se eu preferia o vinho a uma recauchutada geral no meu visual? Não, não me perguntou nada.
- Mas não se trata disto, não se trata de uma coisa ou outra. O vinho foi uma pequena extravagância, o que você está querendo é ridículo.

Emburrou a cara, foi para a cama.
- Chegue pra lá, não estou a fim hoje.
- Ainda zangada?
- Claro, você não me ama, só quer me usar.
- Você está sendo injusta, sabe que te amo.
- Se fosse verdade não se incomodava em pagar pelo menos uns dias num spa.
- Se você faz tanta questão.
- E se eu ficar cheia de pelanca, posso fazer a lipo?
- Pode.
- Você é um amor, venha cá meu gatão.

Meia hora depois.
- Posso lhe pedir outra coisa.
- O quê?
- Depois do spa, da lipo e do botox você compra outro Lafite Rothschild?


Fred Matos

segunda-feira, julho 6

tempestade


foto: Fred Matos

1.

Aqui, umbigo do mundo, qualquer ínfimo pedaço de coisa tem nome, como se fosse gente de carne e osso. Ou bicho, que tem sentimento, compreende e atende.

Antes, a praia era a praia, ela inteira, cada palmo, de ponta a ponta, do mar à mata, cada pingo d’água, cada grão de areia. O homem chegou, especulou, retalhou, desandou a nomear cada pedaço, qual não fosse um todo indivisível. Sem ofensa, é até caso de perguntar: este grão de areia aqui, seu moço, é da Praia do cajueiro ou é da Praia da canoa-velha? E aquela onda que vem lá, imensa, rolando, se aproximando, agora quebrando, espalhando espuma de ponta a ponta, é da Praia da morena nua ou da Praia da pedra preta? E a onda também tem nome? Ou tinha e não tem mais, porque já se desfez em água e agora só tem vida na lembrança de quem viu?

Tem gente que acha melhor assim, “mais fácil pra marcar encontro”. Outros sentem poesia nos nomes. Todos fazem questão de contar que a Praia da morena nua tem este nome porque “em uma noite de lua cheia...” Lenda. Todos repetem a mesma lengalenda, com mínimas diferenças nos falsos detalhes.

Diferentemente, para mim a praia é a praia, a mata é a mata, e se há poesia nas palavras, ela não é páreo para a beleza da água verde-azulada, ou para a da areia fina e alva, nem para a do azul e todas as cores que tintura o céu, dias e noites, desde antes de haver homens e palavras.

E foi assim, assim mesmo, tal qual lhes conto agora, matutando estes pensamentos, que quase não percebi vir correndo ao meu encontro o moleque caçula do Tonico. Coração na boca, chegou me trazendo recado urgente urgentíssimo: que fosse correndo à vila apartar da faca e, mais difícil, da garrafa de pinga, o compadre Ludovico. "A segunda ou terceira do dia", arfou o menino.

2.

Compadre Ludovico, cujo, se diz, já nasceu com a barba branca, é manso como um bom cordeiro quando está na sua razão, mas quando se embriaga fica tal qual um possuído entoando interminável melopéia de lamúrias e cominações, como se reivindicando para si o indesejável epíteto de arauto de tempestades, que, frise-se, não lhe cabe quando sóbrio.

A nossa é uma amizade de muitíssimo tempo. De antes, muitíssimo antes dessa mania de se inventar nomes diferentes para o que é uma só coisa só. Não seríamos tão unha e carne se fossemos irmãos, e não sei se a razão foi nascermos no mesmo exato dia, em casas vizinhas, com poucas horas de diferença.

Por uma ou outra coisa, que logo se explicará, ou que talvez não tenha cabal explicação, por se tratar de fato que nestes tempos atuais não desassossega a mais senhor ninguém, compadre Ludovico, que nos idos não tocava álcool, se afeiçoou da cachaça, pois, como se sabe, o tempo às vezes dá saltos, às vezes caminha delicado, imperceptível, e as coisas vão mudando, umas pra melhor, outras pra pior, e as tantas mais restantes para igual.

Certo é que as diferenças entre os hábitos das pessoas dependem da maneira pela qual provêm as suas subsistências. Os daqui, a maior parte da vida passamos no mar, de onde tiramos o sustento.

Deu-se que, entretanto, um certo dia, o compadre entonteceu na pescaria. Apagado, caiu do saveiro, e teria se afogado se não tivéssemos notado a sua sem reação. Nos dias seguintes a tontura durava. Em terra e no mar. Sentado, deitado ou em pé. Labirintite. Desde então foi condenado à vida em terra, na Colônia, remendando rede, sedentário.

Mesmo que se pudesse pressentir qualquer outro iminente infortúnio, não se pensaria que aconteceria imediatamente. Mas a desdita não vem aos pedaços quando chega, surge inteira. Assim, nas idas e vindas para o médico e exames, na cidade, compadre Ludovico conheceu e se apaixonou por uma prostituta, uma tal de Vera.

3.

Quando cheguei na vila, a caminho do boteco, onde o compadre fanfarreava, topei com Marcílio, filho do finado Sandoval. Que Deus o tenha.

Marcílio, afilhado do compadre Ludovico, é um moço de uns trinta anos, baixo e troncudo, que chama a atenção pela expressão desatenta dos olhos miúdos e negros, afundados nas órbitas, que confere-lhe um ilusório aspecto parvo.

¾ Venha comigo, Marcílio. Vamos acudir seu padrinho.

¾ Ele me fura, Seu Ramalho. Jurou me matar. Enfiou na cabeça que me deitei com Vera, aquela lá. Apressa o passo, Seu Ramalho, só o senhor pode amansar o padrinho.

¾ E tem fundamento isso: você e Vera?

¾ Todo mundo tem seu inferno, Seu Ramalho.

¾ Não desvia a prosa, Marcilio. Isso é sim ou é não?

¾ É talvez, Seu Ramalho. É não sei. Pela alma de pai, Seu Ramalho, juro que não sei.

¾ Que façanha é essa, Marcilio?

¾ É história comprida, Seu Ramalho. É melhor o senhor ir logo ver o padrinho, antes que aconteça alguma desgraça. Depois eu conto. Prometo que conto.

¾ Se é você que ele quer furar e você está aqui comigo, não está lá, não vejo a pressa. Desembuche logo que é melhor.

4.

Com excesso de detalhes: a cor da chita, a placa do táxi que os transportara da Estação Rodoviária ao centro da cidade, a altura dos prédios, o aroma de um charuto, a fedentina de um canal de esgoto correndo a céu aberto até a praia, pormenores demais para se contar uma história assaz verdadeira, Marcilio falava e falava, atingindo de quando em quando o máximo de refinamento na arte da lorota. Foi o que pensei. Foi o que disse atalhando a dilatada narrativa. De antemão, é bom que se diga que foi ele, de fato, quem acompanhou, umas tantas vezes, o compadre Ludovico à cidade, para levá-lo ao médico e para os exames. E também se sabe que arrastou o padrinho para a zona. Para o castelo onde conheceram Vera.

¾ Eu juro, Seu Ramalho. Eu estava bêbado, dançando com uma de nome Michele. O padrinho desceu do quarto. Estava bêbado também. Me puxou pelo braço, me levou. Vera estava nua na cama. O padrinho me mandou foder ela. Ela ria e arreliava porque o padrinho broxou. Se tivesse um buraco pra me esconder, eu me enfiava dentro, Seu Ramalho. Deitei e apaguei. Acho que não aconteceu nada. Quando acordei, o dia mal clareara, estávamos os três nus na cama, Vera no meio. Me vesti e desci. O castelo estava vazio, deitei num sofá do salão e lá fiquei cochilando até o padrinho descer. Ele não falou nada do ocorrido, como se não lembrasse de nada. Calado também fiquei e nunca antes contei a ninguém o sucedido naquela noite. Das outras vezes o padrinho sempre ficava com a Vera, eu com qualquer outra, com ela não, com ela nunca, que, apesar de mulher-dama, era para mim como se fosse mulher do padrinho.

¾ Mas então...

¾ Então, ontem, o padrinho foi sozinho pra cidade. Hoje, quando chegou, do ônibus foi direto pra o boteco. Bastou me ver, transtornou. Só não me furou porque caiu e eu corri. Acho que a tal Vera contou a ele coisa inventada, ou esta mesmo que contei e é o que eu sei. Só pode ser. Que mais pode ser?

5.

Entrei no boteco pisando manso, mansinho, como se de nada soubesse e, naquele jeito de proceder, pudesse me apoderar de um fio sutil de prosa que me tornasse capaz de apaziguar qualquer vã desavença. Atrás do balcão, Machado, dono da birosca, não disfarçou o alívio que nele causou a minha chegada.

¾ Felizmente o senhor chegou. Seu compadre está igual ao de antes, senão pior.

Na única mesa o compadre estava só.

Sorriu um sorriso melancólico quando me viu e chamou:

¾ Venha cá meu compadre. Tome umazinha aqui comigo.

¾ Estou só de passagem, compadre.

¾ Me faça companhia, compadre. Você é o único homem decente neste inferno.

¾ Não diga isso, Ludovico. O Machado é um bom homem e outros tantos bons há aqui e em todos lugares.

¾ O compadre não viu por acaso o meu afilhado Marcílio?

¾ Desde ontem que não vejo. É bem capaz que esteja pescando.

¾ Não. Estava aqui neste instantinho.

¾ Se estava aqui, por que o compadre me pergunta?

¾ Queria saber se o compadre proseu com ele.

¾ Pára de arrodeio, compadre. Hoje eu não vi o Marcílio e não estou sabendo onde é que o amigo está querendo chegar?

¾ Senta, compadre. Só um tiquinho. Só uma dose.

¾ Sento, se o compadre prometer me acompanhar depois para uma sopa de peixe, lá em casa.

¾ Eu vou, compadre, mas se sente aqui. Traga um copo pro meu compadre, Machado.

6.

Do havido ou desavido, dessabido ou descabido, nada se falou. Eu me fazendo de desentendido e o compadre talvez envergonhado de falar comigo acerca de tal assunto, ou seja, da prosopopéia que Marcilio me contou. Deste modo a nossa conversa no boteco tomou outra direção, conquanto me causasse uma opressão angustiosa aquela situação ambígua que jamais houvera antes entre nós. Em suma, aquela nossa conversa, aparentemente amena, me pareceu vazia, triste e, principalmente, desonesta.

Frise-se que eu não premeditara e não sei por qual sortilégio menti e, fazendo-o, submergi num poço de culpa e remorso.

O compadre notou a minha alteração de animo e quis saber que mágoas afligiam meu coração, mas eu nunca aprendi a dar ré nas minhas ações, e sequer me passou pela cabeça pedir desculpas e dizer que mentira e que sim, que me encontrei com Marcilio, que havíamos conversado e que ele me contou o episódio que me contou. Desconversei. Disse que não era nada sério. Mudei de assunto.

Machado acendeu o lampião. Lá fora o crepúsculo anunciava a noite, ocasião propícia para que os desejos dos deleites sobreponham-se aos freios da probidade. Talvez por isso, antes que eu pensasse, como se minha boca e língua tivessem vontade própria, ouvi-me pedindo ao compadre para que me falasse sobre Vera.

7.

Sob as espessas sobrancelhas, vi brilharem os olhos do compadre e o seu rosto expressou uma beatitude tão cândida e inocente como a de uma criança. Expressão que me pareceu a reafirmação de que o amor, mesmo quando não é desinteressado, atua como um poderoso elixir da juventude, fazendo emanar um indefinível encanto que explica a capacidade de sedução que se observa em alguns homens maduros.

O luar iluminava as palmas dos coqueiros e vinha da rua uma aragem morna que trazia o brando barulho do mar e o bater de tamancos nos paralelepípedos.

Como se falasse para si, e buscasse inspiração nas imagens de recordações que, suponho, lhe apareciam através de brumas, o compadre descreveu-a como uma jovem morena de olhos sedutores, "verdes como esmeraldas", emoldurados por pálpebras arqueadas, cabelos negros ondulados, que quando soltos pendem quase até a cintura, mas que ela costumava usar presos em coque, às vezes trançados.

¾ Vejo-a nitidamente ¾ rematou ¾ como na primeira noite: a pele lisa e macia, os seios bem proporcionados, o corpo escultural, usando um vestido estampado de pequenas flores azuis, verdes e vermelhas sobre um fundo alaranjado. Veste-se diferente das outras e sem excesso de maquiagem. Fora daquele lugar não há quem possa dizer que é mulher-dama.

Compadre Ludovico é daquele tipo de pessoa que vive pondo as esperanças no futuro e que encara cada dia como preparatório para um amanhã que jamais será alcançado. Após a doença, contudo, operara-se uma transformação que me causava embaraço, como se nele já não existisse aquele meu amigo, dotado de certa vivacidade, sim, mas de quem não se esperava pensamentos livrescos e abstrações poéticas.

Cobrei a promessa e convidei-o a acompanhar-me. O que me apetecia agora era uma espessa sopa de robalo, depois um doce de caju e, após o cafezinho, uma caminhada até o cais.

8.

Naquela noite sonhei que encontrava o compadre Ludovico em companhia de Vera, da misteriosa e encantadora Vera, com a qual ele imaginava viver o resto dos seus dias.

¾ Ela vai largar daquela vida, compadre ¾ ele me dissera ¾ Vai largar daquela vida. A minha agonia é que eu sei que não poderei trazê-la pra cá. Aqui todo mundo sabe, e mesmo que todos a respeitassem eu viveria na eterna desconfiança e talvez não fosse capaz de tolerar nem mesmo que olhassem pra ela. Mas onde mais poderei viver se não aqui, compadre? Principalmente agora que não posso mais pescar e vivo escorado na caridade dos amigos? Como poderei sustentá-la, compadre?

Tais pensamentos quase enlouqueciam o meu amigo. Preferi o silêncio a manifestar meus contraditórios sentimentos que, então, se constituíam em verdadeiro martírio.

Sentindo-me culpado de uma falta que não cometera, e influenciado pelo sonho, decidi não sair para pescar. Atendia assim também ao conselho da minha mulher, pois a chuva, que iniciara fina naquela madrugada, tornava-se cada vez mais grossa, encapelando o mar, anunciando tempestade.

Resolvi procurar o compadre e abrir o meu coração. Diria que o apoiaria incondicionalmente, apesar da aversão que tinha sentido, a princípio, com a idéia de vê-lo unido a uma prostituta. Diria que ele precisaria lutar contra o ciúme, pois mesmo que houvesse um outro lugar para onde ele pudesse ir viver com Vera, a dúvida o acompanharia sempre, exceto se ele fosse capaz de vencer a sua própria insegurança, ou se pudesse compartilhar da idéia de que as pessoas devem ser livres para disporem de si mesmas.

Enquanto caminhava sob a chuva para a casa do compadre, eu podia antever brilharem lágrimas de felicidade nos seus olhos e todo o seu semblante iluminado por uma alegria arrebatadora.

9.

Embora eu gozasse de boa saúde, os abusos na mocidade debilitaram-me o ânimo e há muito tempo eu já não sentia qualquer paixão pelas sandices da mocidade, mas, enquanto caminhava lentamente sob a chuva, eu me perguntava porque complicamos tanto certas coisas que poderiam ser bem simples, o sexo entre elas, como bem nos demonstram os animais. No que consiste o bem e o mal? O que é certo? O que é errado? O que há de extraordinário em um velho doente e desdentado se deixar iludir pelas promessas vãs de uma prostituta?

As palmas dos coqueiros brilhavam um verde úmido sob a pálida luz da manhã e eu estava tão absorto nas minhas reflexões que quase não percebi que já estava na porta da casa do compadre Ludovico. Bati e não houve resposta. A porta estava apenas encostada. Entrei. A pequena sala estava tão silenciosa que se ouvia distintamente o tique-taque do relógio. Chamei pelo compadre. Não houve resposta. A casa estava vazia.

No cais reinava grande azáfama. Soprava um vento úmido e violento. Antes mesmo que alguém me dissesse qualquer coisa, eu pressenti que o compadre havia saído para o mar. Desesperado, Marcilio tentava reunir uma tripulação para procurar o padrinho. Em poucos minutos o meu saveiro singrava as mais violentas ondas que eu jamais enfrentara. Era uma loucura. Mesmo que soubéssemos a direção que deveríamos seguir, não tínhamos controle. O mar nos devolveu para a praia com o mastro quebrado.

Hoje, a estranha beleza dos suaves reflexos azulados do entardecer, trouxe-me a lembrança daquele dia. Nunca se soube o verdadeiro destino do compadre Ludovico. Nunca encontramos o corpo, nem destroços do barco no qual atirou-se ao mar.

Uns dizem que se suicidou. Eu penso que ele queria provar a si mesmo que era ainda capaz de pescar, de buscar sustento para si e para Vera. Marcilio, coitado, afirma que o padrinho ainda está vivo, principalmente porque Vera teria desaparecido misteriosamente naquela mesma madrugada. É paradoxal que apesar de ser a coisa mais certa de todas coisas, a morte continue assombrando-nos mais do que outro evento qualquer.

Fred Matos

Maceió

Julho/2009

pesquisar nas horas e horas e meias