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sexta-feira, dezembro 18

Cerimônia de Casamento


Para Sonia Sant’Anna


Ilustração: Modelo Malena, da La Sposa
http://sposabellanoivas.wordpress.com/2008/01/03/malena-la-sposa-2008/



O vestido era o mesmo que não usou há vinte anos quando um infarto fulminante lhe matou o noivo nas vésperas do casamento. Todo esse tempo ficara protegido das traças e do tempo por bolotas de naftalina, guardado em uma caixa de papelão. Ainda no dia do enterro decidira que nova boda seria questão de tempo. Chorara mais a não consecução dos seus projetos do que pela vida de Miguel, perdida tão cedo.

Agora, a caminho da igreja, com meia hora de atraso como convém, se recorda de todas as trapaças que a sorte lhe pregou: aquele infarto que tardando alguns dias a teria tornado viúva, uma condição bem mais adequada às suas expectativas. O namoro com Rodrigo, sua única paixão, que lhe custou dez longos anos de adiamento do sonho, marcando e remarcando a data ao sabor de uma miríade de circunstâncias racionalmente defensáveis. Até o dia em que ele a trocou irracionalmente por uma colega de trabalho que o levou ao altar como quem vai ao cinema.

A Rodrigo se seguiu uma fase de namoros breves, pois resolvera não conceder a mais ninguém prazo maior que três meses para a decisão pelo enlace. Foram tantos os namorados que de muitos não consegue se lembrar. Um dia entendeu o conselho de Margarida, sua melhor amiga, que lhe havia dito que casamento é um investimento de longo prazo, como o de ações na Bolsa de Valores, e concluiu que talvez a sua ansiedade para recolher os dividendos fosse a causa do seu insucesso, afinal, excluindo o fato da morte prematura de Miguel e a canalhice de Rodrigo, fora sua a responsabilidade pelos malogros seguintes.

Analisando suas atitudes e resolvida a tratar o assunto com a lógica do mercado, Helena comprou e leu com afinco alguns compêndios de marketing e traçou seu plano estratégico focando seus esforços sobre um “target” formado por homens solitários na faixa etária dos 40 aos 50 anos, com boa educação e condições financeiras estáveis. Inteligente que é, investiu em um microcomputador conectado na Internet e foi à caça nas salas virtuais dedicadas ao seu público-alvo. Durante quase um ano dedicou diariamente quatro horas das suas noites teclando com desconhecidos. Marcou encontro com alguns e, tantas as decepções sofridas, já estava pra jogar a tolha quando conheceu Arthur, que preenchia todos os requisitos.

A igreja estava linda. À sua entrada os músicos iniciaram a valsa nupcial. Esperando-a no altar Arthur, cuja inacreditável timidez era responsável por uma cinqüentenária castidade. Ao seu lado, ainda firme, apesar de já beirar os oitenta anos, caminhava Raul, seu pai, vindo do interior para cumprir o ritual de entrega da filha ao noivo. A cerimônia decorreu sem surpresas. O casal retirou-se da festa à francesa para a lua de mel e o vestido voltou à caixa de papelão.

Naquele mesmo dia, enquanto o avião decolava para Miami, decidiu que nova boda seria questão de tempo: é um desperdício que um vestido tão lindo seja usado somente uma vez. A técnica para conseguir noivos já está dominada. Agora Helena quer aprender a se livrar de esposos.



Fred Matos
publicado em "Melhor Que A Encomenda"
Coleção "Selo Editorial Letras da Bahia"
Fundação Cultural do Estado da Bahia
2006

sexta-feira, maio 29

um dia rotineiro


não sei quem é o autor da ilustração


Uns vão direto para casa, outros para o bar no fim do expediente. Aqueles uns para evitar zanga caseira ou mesmo por outros motivos que podem ser tantos e não são do meu tento. Atenhamo-nos aos que vão para o bar. Há solteiros, casados, alegres, tristes. Solitários alguns, outros não. Há os que vão por falta de coisa melhor pra fazer, outros pra fazer hora até a hora da coisa melhor, quando tomam de um só gole a última dose e saem à francesa. E há os que vão porque após se amoldarem a uma rotina cumprem-na simplesmente tomando-a como compromisso. José Antônio é um destes. No dia seguinte ao da sua demissão esperou os ex-colegas na porta da empresa, como fazia quando tirava férias. Não deu importância nem à compaixão de uns nem ao desprezo dos que até a véspera o lisonjeava. Quando, no bar, naquele dia, o chefe do departamento visivelmente escabreado tentou justificar a dispensa atribuindo-a a ordem superior, José Antônio sorriu e disse que estava tudo bem, que entendia e ergueu um brinde à firma. O chefe suspirou aliviado. José Antônio se orgulha de ser o único do grupo que nunca faltou ao compromisso. 

José Antônio para não alarmar a família, esposa e filhos, não os comunicou que estava desempregado. Estava convencido de que uma outra ocupação era questão de poucas semanas. Como Isolda nunca telefonava para o escritório, preferindo quando necessário alcançá-lo pelo celular, não havia como ter o seu segredo revelado. Manteve a rotina diária de sair cedo para o trabalho e retornar após o happy hour. Ocupava os dias oferecendo os seus serviços em outras empresas, mas desde que estivesse livre a tempo de se reunir no fim da tarde aos ex-colegas. Os meses foram passando sem que conseguisse um novo emprego, já dilapidara todo o saldo da poupança, endividara-se com amigos e agiotas, mas era o primeiro a sacar a carteira na hora de dividir a despesa. Perguntado onde estava trabalhando mentiu. Pego um serviço aqui, outro ali, vai dando pra o gasto e é uma vida mais sossegada que a de empregado regular, sem hora pra entrar ou sair.

Certa manhã, cedinho ainda, antes de todos os outros como lhe era característico, João Antônio foi para a firma, cumprimentou o porteiro que o conhecendo de muitos anos não fez óbice à sua entrada, tomou o elevador, na sala ainda vazia se sentou na escrivaninha que um dia fora sua, retirou das gavetas todos os papéis, os examinou e vendo que lhe eram estranhos atirou-os na lixeira, recostou-se na poltrona, pôs os pés sobre a mesa, acendeu um cigarro, tragou duas baforadas, e morreu tossindo.



Fred Matos
Conto publicado em “Melhor que a encomenda” 
Coleção Selo Letras da Bahia 
FUNCEB, EGBA – 2006.

terça-feira, maio 19

o mestre


foto: Mário Cravo Neto


Imerso na sombra da noite é preciso chegar próximo para ver o homem deitado na fenda da pedra negra onde o respingo das ondas só alcança quando é maré alta. Buscou abrigo naquele pedaço ermo da praia de Itapuã quando os homens e máquinas da prefeitura cumpriram a ordem de reintegração de posse demolindo os barracos da favela Bela Vista. Mas isso faz muito tempo, tanto tempo que ele já não sente desconforto quando o corpo calejado se amolda na aridez da pedra úmida, portanto é assunto de que não se ocupa quando encontra quem o ouça, o que não é raro, apesar da sua indigência. Um saco plástico com alguns trapos e uma cuia de queijo Palmira que usa como prato são os seus únicos pertences, é o quanto lhe basta, pois não tem ambição maior que forrar o estômago e manter a pele vestida. Antes que surjam os primeiros raios de sol ele caminha até a porta da padaria onde sempre encontra uma alma caridosa que lhe ofereça um pão. Dinheiro não aceita, vai bem um copo de leite pingado, se não for pedir muito. Alimentado, segue apressado até o coqueiral de Piatã onde se reúne a crianças e adolescentes criados na rua ao deus dará, que para ouvi-lo abdicam por algumas horas das brincadeiras, da mendicância e dos pequenos furtos.

Eu trabalhava em uma matéria sobre loucos urbanos, um calhau para ser usado em edição dominical, e já entrevistara dezenas de figuras estranhas que perambulam pelo centro da cidade quando me falaram do Professor. Imaginei que seria apenas mais um que nada acrescentaria à matéria, mas apetecia-me naquela manhã respirar o ar marinho e fui pra Piatã onde o encontrei sem dificuldade, pois à distância já se podia ver o grupo reunido. Mantive-me afastado enquanto durou a aula, mas próximo o suficiente para ouvir a lição do dia. Percebendo que se tratava de indivíduo culto e com discurso articulado liguei o micro-gravador, contudo o ruído das ondas arrebentando na praia tornou inaudível a gravação e apenas na memória está registrado o conteúdo daquela palestra.

Esperei que o grupo se dispersasse para abordar o Professor, me apresentei e expliquei-lhe o motivo pelo qual o procurara, ele sorriu:

- O moço diz excêntrico, um eufemismo para maluco. Considerando que é tênue o liame entre a loucura e a sanidade eu posso perfeitamente ser considerado louco, apesar de que, do meu ponto de vista, loucos são os que se amoldam a este sistema cuja lógica é a acumulação para um amanhã que nunca virá.

- Vejo que o senhor é muito culto.

- Seria mais correto dizer que absorvi ao longo da vida mais informação do que a média da população, mas a cultura não é grande coisa, ela é apenas uma soma. Creio que mais importante que o conhecimento é a capacidade de reflexão, que no meu caso resultou em abdicar do conforto para desfrutar a liberdade.

- O senhor é professor realmente?

- O que é realidade, meu jovem?

- Talvez eu tenha me expressado mal, o que eu quero saber é se o senhor tem curso superior, se já lecionou.

- Sim, formei-me em filosofia e fui professor universitário, mas não acho que isso tenha alguma importância, exceto, talvez, para acentuar na sua reportagem a minha loucura.

- É que eu não compreendo: o senhor ao que tudo indica gosta de ensinar, poderia estar sendo remunerado para fazer o que gosta e não me parece que tivesse necessidade de abdicar de um mínimo de conforto para desfrutar a liberdade, pois não creio que a tenha em grau maior do que a de professores universitários que eu conheço.

- Ah! Você é um rapaz inteligente, talvez me entenda melhor se eu fizer um breve resumo da minha trajetória: fui afastado da universidade pela ditadura militar, caí na clandestinidade quando fui informado que a minha prisão era uma questão de dias ou de horas. Deixei o apartamento que alugava levando somente uma sacola de roupas e o que sobrara do último salário. Consegui documentos falsos e fui aceito como professor de curso primário em uma escola da periferia, onde a remuneração mal cobria as despesas com alimentação e o aluguel de um barraco na favela Bela Vista, de onde fui expulso quando a favela foi demolida.

- O senhor poderia ter encontrado outro lugar pra morar.

- É verdade, mas eu já cogitava em romper definitivamente com a civilização e tomei aquele evento como um sinal.

- Mas por que romper com a civilização se o senhor fazia o que gosta de fazer?

- Eu gosto de ensinar, é verdade, mas não considero que ensinar seja apenas transmitir uma miríade de informações que “entram por um ouvido e saem pelo outro”, como diziam os alunos. Ensinar é também ajudar a desenvolver os processos de concatenação destas informações, é promover o embate das idéias sem a imposição de paradigmas, é permitir o amplo contraditório. Somente aqui tenho a liberdade de exercer a educação como a concebo.

- Eu acho que na universidade o senhor poderia fazê-lo. Tantos outros mestres que foram vítimas da ditadura hoje estão reintegrados à vida acadêmica.

- Talvez pudesse, não tenho certeza, mas seria justo e ético reintegrar-me ao sistema quando o que desejo é a sua ruína?

- Como assim?

- A educação, como a conhecemos, destina-se exclusivamente à formação de peças para a engrenagem social fundada no princípio de desempenho, cuja lógica é a competição onde deveria haver a colaboração. Assim temos uma sociedade que é dividida entre um pequeno grupo de vitoriosos e uma enorme massa de derrotados, que não vivem sua própria vida, desempenham funções preestabelecidas que lhes permitem quando muito sobreviver.

- Se o estou compreendendo o senhor prega o comunismo, mas isto não seria uma contradição para quem, como senhor, preza tanto a liberdade?

- Não entendo que o cerceamento da liberdade seja um pilar do comunismo. O fato de que assim tenha sido nas nações que o adotaram me sinaliza que a sociedade não estava preparada, ou seja, que para a sua adoção é necessário que primeiro haja uma evolução na humanidade, que ela alcance um patamar superior de conscientização onde os valores impostos pela sociedade de consumo sejam soterrados por valores éticos. 

- Quando os homens se tornarem santos?

- Sim, talvez. Mas prefiro dizer: quando os homens se tornarem íntegros.

- Supondo que a humanidade alcance tal estágio, o senhor acredita que isto iria abolir a necessidade do trabalho, ou seja, que as pessoas deixariam de ser meras peças da engrenagem social?

- Esta é uma boa pergunta. Eu sinceramente acredito que nesta hipotética sociedade, abolida a propriedade privada, adotada a máxima de Marx: “De cada um conforme a sua aptidão, a cada um conforme a sua necessidade”, o trabalho deixaria de ser uma obrigação tornando-se uma atividade lúdica, pois os indivíduos naturalmente se dedicariam às tarefas que lhes são prazerosas e não àquelas que são melhores remuneradas pelo mercado. Sendo assim não há que se dizer que os homens continuariam a ser autômatos, nem tampouco que a grande maioria optasse pela vagabundagem. 

- O senhor conhece as teorias do sociólogo italiano Domenico de Masi?

- Não conheço profundamente, mas li algumas entrevistas dele em revistas recolhidas no lixo.

- O que o senhor pensa desta teoria do ócio?

- É difícil analisar uma teoria que conheço apenas superficialmente, mas tomando como fidedignas as reportagens que li, eu penso que esta teoria serve ao atual sistema, não é uma ruptura, é um avanço cujos principais objetivos são: reduzir os níveis de desemprego a índices toleráveis e diminuir o tempo dedicado pelo indivíduo ao sistema.

- E isto não é bom?

- É melhor para o sistema que para o indivíduo, mas indiscutivelmente é um avanço.

- Por que o senhor acredita que é melhor para o sistema que para o indivíduo?

- Para o indivíduo, fazendo uma analogia, seria como para um condenado ter a sua pena reduzida. Para o sistema é um novo mecanismo que objetiva a sua perenização. Mudar para que tudo permaneça, tem sido, ao longo da história, uma estratégia do sistema de desempenho para manter o indivíduo submisso e alienado.

- Por qual motivo, então, esta teoria não tem ainda ampla aceitação pelas elites econômicas?

- Porque as elites só estarão dispostas a adotar uma drástica redução na carga horária de trabalho quando, com o aumento da produtividade, isto não resultar na redução da sua margem de lucro. Ressalvada a hipótese de ser obrigada a isto por algum movimento de força, seja ele oriundo da própria massa ou decorrente de legislação. Mas tenha em mente que o sistema não é uma instituição com sede e comando centralizado, muito possivelmente ele é mais evidente a quem o serve do que aos que são por ele servidos. Estes atribuem, quase sempre, à graça divina ou a mérito próprio os dividendos que acumulam.

- Quero agradecer-lhe, professor. Poderíamos gravar horas e horas, mas acho que já tenho material suficiente para o melhor trabalho que jamais fiz.

- Talvez meu jovem, talvez. Mas não se surpreenda se não quiserem publicar nada do que eu disse. Se for assim, invente qualquer coisa mais leve e pitoresca.

O sol já ia a pino, convidei o professor para almoçar. Ele sugeriu e eu aceitei, uma moqueca em uma barraca no mercado de Itapuã, estava divina. Voltei eufórico para a redação e garanti a Abreu, o chefe de reportagem, que tinha um material fantástico. Não sei por qual motivo a matéria nunca foi aproveitada.


Fred Matos

Conto publicado em “Melhor que a encomenda” 

Coleção Selo Letras da Bahia 

FUNCEB, EGBA – 2006.

terça-feira, março 10

melhor que a encomenda


não se quem é o autor da foto


Poucos dias após a nossa lua-de-mel, eu assumi a comarca do recém criado município Ari Barroso, uma justa homenagem ao ilustre compositor que cantou a Baixa dos Sapateiros, um tradicional logradouro comercial de Salvador, como se baiano fora. Não sei se é verdade, mas me contaram que originariamente cogitou-se homenagear Dorival Caymmi, mas que o baiano ilustre, a quem a nossa música tanto deve, fez saber que, estando vivo, consideraria aquilo uma ofensa, um prematuro atestado de óbito.

Para quem não conhece, é útil esclarecer que a cidade de Ari Barroso está situada no litoral norte do Estado da Bahia, próxima à foz do Rio Itapicuru. Como na época não havia sido construída a estrada do coco, o acesso para a sede da comarca era quase uma aventura. Normalmente uma cidadezinha como aquela não seria sede de município e muito menos de comarca. Acontece que é a terra natal de um influente político que empenhara todo o seu prestígio junto aos governos estadual e federal, e os preciosos votos do seu curral eleitoral, para a concretização do seu sonho emancipacionista. Só foi vencido, se é verdade o que o povo diz, na intenção de dar ao município o nome do finado pai, um pescador analfabeto como tantos outros e cuja grande contribuição ao Estado e à Nação fora a paternidade do prócer governista.

É de praxe que aos novos magistrados sejam entregues as menores comarcas. Além de justo, em qualquer acepção que tem o vocábulo, isso proporciona o aprendizado prático, já que teoricamente os juizes deparam-se, nas pequenas comarcas, com toda espécie de situações que mais tarde irão encontrar nas maiores, com a conveniência de que nas pequenas as coisas são resolvidas com maior facilidade, pois todos se conhecem e, não havendo imprensa, é menor a pressão da opinião pública.

O caso mais complicado que tive para julgar foi uma disputa entre vizinhos, um que criava galinhas e outro que tinha em casa um cachorro feroz. Uma galinha passou a cerca que separava os quintais e foi morta pelo cão. O dono da galinha reclamava indenização. O dono do cão negava-se a isso argumentando que o dono da galinha comera-a depois de morta, e que, portanto não houvera prejuízo. Não acrescentou, como poderia ter feito, que o cão agiu em legítima defesa da propriedade que houvera sido invadida pela ave. O dono da galinha, por sua vez, argumentava que aquela fora, entre todas, a sua melhor poedeira e não uma galinha velha destinada ao abate. Como o dono do cão não argüiu a invasão de domicílio e a conseqüente defesa da propriedade, decidi que o dono do cão indenizasse o queixoso comprando-lhe uma nova poedeira e que, em contrapartida, o dono da galinha desse ao dono do cachorro um frango ou uma galinha velha. Contentaram-se ambos, felizes, com o meu veredicto salomônico e me convidaram para celebrar a paz com uma estupenda galinha ao molho pardo, iguaria que em Ari Barroso é conhecida como galinha de cabidela.

Ocupamos uma casa nova, cheirando a tinta, construída na única praça da cidade, quase defronte ao prédio do fórum, novo também. Era um simpático bangalô com o exterior pintado em verde cana, uma grande varanda, jardim, quintal, todos os cômodos com piso cerâmico, sala de visitas e outra para as refeições, cozinha, dois banheiros e quatro quartos, um dos quais transformei em meu gabinete. Ivana me parecia feliz quando nos instalamos: passava o dia em banhos de mar, plantando flores no nosso jardim e supervisionando o plantio de uma horta no amplo quintal. Em maio me revelou que suspeitava estar grávida, suspeita confirmada em junho.

Em agosto, no quinto mês de gravidez, notei que Ivana estava tristonha, desinteressada do jardim, da horta, e mesmo de preparar o enxoval para o nosso filho. Eu já temia que ela, sempre tão ativa, logo se aborrecesse com a quietude do lugar, mas confiava que a gravidez ocupasse-a. A princípio ela não queria aceitar, mas acabou concordando em ficar em Salvador, na casa dos pais, até o parto, previsto para acontecer entre o final de dezembro e os primeiros dias de janeiro.

Quando nos instalamos em Ari Barroso, contratamos Jussara, por indicação de dona Iolanda, a primeira dama do município, para ajudar Ivana nos serviços domésticos.

– É uma mulatinha bonitinha e asseada, moça de confiança, filha mais velha de Dione, a nossa cozinheira. Não cozinha tão bem como a mãe, mas não vai fazer feio principalmente no trivial. O doutor juiz vai ficar satisfeito.

Romeu, o prefeito, piscou os olhos para mim e acrescentou:

– Só tem dezessete anos a moça. Não é, Iolanda?

– Quase dezoito.

– A senhora pede, então, que ela me procure amanhã de manhã, dona Iolanda — Ivana pediu.

No dia seguinte, quando cheguei do fórum, ela já estava a serviço de Ivana, que me comunicou:

– Amor eu consegui convencer a Jussara a ficar morando aqui conosco. Ela mora com o pai, a mãe e mais uns oito parentes em uma choupana apertadinha na beira da praia. Aqui tem quarto sobrando. Você se importa?

– Não, querida, faça como achar melhor.

– Vou chamar ela pra lhe apresentar. — E chamou a moça.

Tomei um susto quando vi chegar na sala, vestindo um short apertadíssimo e uma blusa curta empinada pelos seios rijos, aquele monumento à raça negra. Levantei-me para lhe apertar a mão e fui brindado com um sorriso ambíguo.

– Muito prazer doutor Ronaldo. Estou à sua disposição — Ela me cumprimentou curvando-se um pouco como se eu fosse, talvez, um monarca.

Por cima do decote da blusa, que era frouxa e de tecido leve, divisei-lhe, inteiros, os seios de pequenas auréolas negras e pontiagudas.

– O prazer é meu. Como é mesmo o seu nome? — Realmente eu não me lembrava.

– Jussara, doutor juiz.

Ivana pediu que ela nos trouxesse cafezinho. Hipnotizados, meus olhos seguiram as belas nádegas que sumiram rebolando pelo corredor. Temi que Ivana tivesse notado o meu excesso de atenção, o olhar continuado, é mais exato dizer assim. Para ser sincero, não fantasiei nenhuma relação com Jussara, apenas quedara-me a admirar a sua beleza. Se Ivana fosse ciumenta, como sou, não a teria aceito, muito menos a convidaria para morar conosco, além do mais, instalando-a, não nas dependências para empregados, que as havia no fundo do quintal, mas em um dos quartos da casa.

Jussara insinuava-se desde o primeiro dia. Ivana comprou-lhe roupas e um biquíni, que ela continuava usando dentro de casa, quando retornava da praia, aonde ia acompanhando minha esposa. Desfilava, rebolando quando me via, naquele traje sumário, como se me quisesse enlouquecer. E Ivana parecia cega, mas mantive a compostura. Contudo, com a sua ida para Salvador, não consegui mais resistir: no terceiro dia após o meu retorno da capital, onde fora para levar minha esposa, ela já estava na minha cama. De todas as mulheres com que trepei na minha tumultuosa vida, não houve nenhuma mais fogosa que ela. Compreendi na nossa primeira noite de gozos a piscadela de Romeu e perguntei a Jussara:

– Você já foi pra cama com o prefeito?

– Já, seu doutor. — Ela respondeu com a cara mais sonsa do mundo.

– Com quem mais?

– Com o padre Brito, com seu Zeca da farmácia e com Ramon, um cabeludo da cidade que morou aqui uns tempos e foi quem tirou o meu cabaço.

– Você toma anticoncepcional?

– Tomo. É seu Zeca que me dá.

– De agora em diante você só vai pra cama comigo Jussara. E ninguém pode saber entendeu? Principalmente dona Ivana.

– Mas se eu não der pra seu Zeca ele não me dá mais os remédios pro povo lá de casa e nem as pílulas pra não emprenhar.

– Quando você precisar de remédio você manda botar na minha conta. Não, melhor. Você me diz o que quer e eu mesmo mando alguém do fórum comprar.

– E seu Romeu? Se eu não der pra ele, ele manda mãinha embora e o meu povo morre de fome. Meu pai é pescador, a gente não pode viver só de comer peixe e aqui só no verão tem quem compre.

– Você fique tranqüila que o prefeito não manda sua mãezinha embora não. Você o ameaça de contar tudo a dona Iolanda.

– Ela sabe.

– Sabe? E não se importa?

– Eu acho que não. Ele me disse que ela já fechou o baú faz tempo.

– Então você deixe que eu converso com ele.

– E o padre Brito?

– O que é que tem o padre Brito?

– Se eu não der pra ele eu não entro no céu quando eu morrer.

– Foi ele quem lhe disse isso?

– Foi.

– Pois ele está mentindo, o velho safado. Deus não quer que padre tenha mulher. Ele vai é pra o inferno e você também, se continuar dando pra ele.

– E eu não vou poder nem me confessar?

– Confessar pode. Só não pode dar pra ele, nem dizer a ninguém, nem na confissão, que está dando pra mim.

– Então tá bom. É o doutor juiz que manda na polícia e se alguém fizer maldade pra mim e pra meu povo o doutor juiz manda prender. Não manda?

– Mando. Mando prender todo mundo e mando jogar a chave da cadeia no fundo do mar.

No outro dia fui na prefeitura conversar com Romeu e fi-lo entender, através de analogias, que “uma mão lava a outra”. Eu disse que eu não era um juiz corrupto, mas que também não era santo, e que a Lei sempre dá ao juiz margem a interpretações. Ele não teria dificuldades em arranjar uma outra concubina.

– Porra, doutor Ronaldo, não precisa tanto lero-lero, o doutor não quer dividir a menina, não tem importância, eu já estou comendo a irmã dela de dezesseis que é tão gostosa e fogosa quanto ela.

– Não se trata de dividir ou não dividir Romeu. Eu não tenho nenhuma intimidade com a garota. Aliás, nem foi por intermédio dela que fiquei sabendo da relação de vocês.

– Não me diga que Iolanda contou a dona Ivana. Eu avisei a ela pra não tocar nesse assunto.

– Não. Não creio que Ivana saiba. Foi outra pessoa quem me contou. Essa pessoa me pediu que a deixasse incógnita, e eu sempre honro a minha palavra. Por sinal, não quero que Ivana saiba de nada. Você me entende? Ela poderia pensar coisas e a moça seria prejudicada.

– É, Jussara agora tá na vida que pediu a Deus, dormindo em cama macia, comendo do bom e do melhor. Fique tranqüilo doutor. Por mim ou por Iolanda, dona Ivana não vai saber de nada. É um pitéu a menina. É ou não é?

– Não sei, Romeu. Sei que é uma garota menor de idade, com a qual minha esposa simpatizou, e que farei o que for preciso para que doravante tenha as oportunidades que a vida lhe tem negado. Não há de se tornar uma prostituta, se depender de mim.

Pretextei a necessidade de estudar um processo no fórum e acho que deixei uma dúvida razoável na cabeça do prefeito. Era em nome da moralidade e da integridade do meu lar o pedido que houvera feito.

Carlos Eduardo, o meu primeiro filho, nasceu no dia 31 de dezembro de 1978. Eu estava em Salvador para passar com Ivana o Natal e o Reveillon. Aquele foi um dos poucos anos que não rompi o ano novo na Boa Viagem, mas na manhã do dia primeiro de janeiro, antes de ir à maternidade, fui ver a procissão marítima chegar e agradeci ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Conceição a ventura que me concedera na véspera.

Não creio que possa haver maior alegria que a do nascimento de um filho, principalmente a do primogênito. Mas à alegria eu somava o sentimento de culpa decorrente do meu relacionamento com Jussara e o medo com a possibilidade de Ivana descobrir essa relação. Medo não apenas porque não concebia a possibilidade de não poder criar o meu filho, se Ivana, descobrindo o meu relacionamento com Jussara, resolvesse por nossa separação, mas também e fundamentalmente porque eu amo Ivana e perdê-la seria perder a razão da minha vida. Por Jussara era somente um enorme tesão o que sentia.

Alguma coisa estava estampada na minha cara. Ivana achou que era medo pela responsabilidade de ter e criar um filho. Ela perguntou:

– Está preocupado, amor?

– Não. Estou muito feliz.

– Está preocupado, sim. Está preocupado porque agora tem o Carlinhos. Antes éramos somente nós dois, agora há esse principezinho lindo que é a cara do pai.

Era uma brecha para manter Ivana em Salvador. Brecha que eu não podia perder. Eu aproveitei dizendo:

– É verdade, estou mesmo preocupado. Lá em Ari Barroso não temos condições adequadas de saúde para criá-lo, tão pequeno, tão frágil ainda.

– Mas meu bem, quantos lá nasceram e se criaram?

– Nenhum filho nosso. Você tem idéia do índice de mortalidade infantil de lá? Lá uma simples caganeira pode matar por desidratação. Não há médico residente. O Dr. Luiz só dá plantão um dia por semana e eu não tenho confiança nele.

– E o que você acha que devemos fazer?

– Acho que vocês devem ficar aqui pelo menos uns seis meses, que é a fase mais crítica.

– Se você não me quer ao seu lado...

– Ah! Amor, não é nada disso. É pelo bem do Carlinhos, prefiro que ele não corra um risco desnecessário.

– Pelo meu gosto ficávamos aqui por só mais um ou dois meses, desde que nos casamos temos vivido mais tempo separados do que juntos, mas não vou teimar. Eu fico. 

Foi um alívio, eu ganhara seis meses para resolver o imbróglio que criara. Foram seis meses de tensão, mas também de inenarráveis lubricidades com Jussara. Eu vivi esse período, me desculpem o clichê, “entre a cruz e a espada”. A situação ideal seria poder ter concomitantemente as duas. Outra hipótese era conseguir uma transferência para outra comarca, de preferência próxima a Salvador, onde eu pudesse reunir a família. O inconveniente dessa segunda hipótese era ter que me livrar de Jussara, me privando do enorme prazer que ela me propiciava. Mas eu sabia que seria um risco muito grande conviver com as duas sob o mesmo teto. Mesmo que Jussara não falasse nada, mesmo que nenhuma fofoca caísse nos ouvidos de Ivana, eu tinha certeza que eu mesmo me denunciaria, não conseguiria agir com naturalidade. Renunciar a Jussara era, pois, inevitável, a não ser que Ivana aceitasse me dividir com ela, coisa muito improvável. Nos meus devaneios cheguei a pensar nisso, a pensar em contar tudo a Ivana, a lhe pedir que aceitasse aquela situação. Mas quem aceitaria? Isso é coisa que só acontece na literatura, na vida real somente por loucura ou por falta de opção. E Ivana não era louca e tão pouco uma desamparada pronta para aceitar os meus caprichos, e mesmo que fosse eu não teria coragem de propor, e em tendo, de perder o seu amor e o seu respeito.

Resolvi reivindicar uma transferência. Aceitaria ir pra qualquer lugar para salvar o meu casamento e decidi que Ivana não voltaria a Ari Barroso. Em busca de apoio ao meu requerimento oficial, apelei a muitos desembargadores fazendo-os ver que seria desumano submeter minha esposa e filho, uma criança com poucos meses de vida, a residirem em local tão inóspito. Disse do risco de desagregação da minha família. Tornei-me um chato.

Tive sorte, havia um colega em uma comarca no sertão que estava querendo transferir-se para outra no litoral, qualquer uma à beira mar, o tribunal aceitou que permutássemos.

Esse colega, que estava separado da esposa, foi a única pessoa a quem confidenciei sobre Jussara, não omitindo nenhum detalhe. Ele me garantiu que manteria o segredo e disse que eu ficasse tranqüilo, ele ficaria com Jussara, dando-lhe o mesmo tratamento que eu:

– Está melhor que a encomenda. — Marcos, exultou.

    


Fred Matos

Conto publicado em “Melhor que a encomenda”  

Coleção Selo Letras da Bahia  

FUNCEB, EGBA – 2006.

sexta-feira, março 6

Transe


Conto classificado entre os dez melhores do 14o Concurso Nacional de Contos Luiz Velela, referente ao ano de 2004, publicado em 2006 pela Fundação Cultural de Ituiutaba (MG).



ilustração: Jan Saudeck


Sim, reinava uma grande calma naquela rotina metódica que me permitia ocultar a beatitude jamais exteriorizada, jamais evidenciada, jamais tornada algo concreto a olhos alheios, uma bem-aventurança para consumo próprio, cujos únicos sinais perceptíveis poderiam ser confundidos com aqueles que revelam uma alma sóbria, metódica, dessas que se escondem sob trajes elegantes e que nos faz parecer que a vida se justifica somente no cumprimento dos rituais sociais, rituais aos quais eu comparecia amiúde usando o meu melhor sorriso, de sorte que todos me consideravam um homem feliz, um homem sem preocupações, um homem capaz de encontrar uma frase de consolo nas ocasiões pesarosas, um chiste para descontrair um ambiente tenso, um galanteio para levantar o astral de uma mulher mal-amada, uma citação apropriada para pacificar ou trazer de volta ao cerne uma polêmica intérmina, dessas que enveredam para aspectos secundários e destes para outras quaisquer questões impertinentes ao caso. Em suma, um porreta. Afável, prestativo, sempre disponível para assumir as tarefas mais ásperas e desgastantes: síndico do prédio, secretário do clube, tesoureiro do partido, tudo isso sem a afetação característica dos iluminados, sem procurar impor as próprias convicções, antes buscando a mediação. Mas ela, a beatitude, imperceptível, íntima, me acompanhava sempre; domada, contudo, por uma determinação férrea de quem, dono de uma razão que somente aos absolutamente bem-aventurados é concedida, não permitiria nunca que viesse à tona enodoar-se com a mediocridade humana, exceto agora, na hora própria. 

Quando eu era criança ela já estava comigo, mas, então, não eram necessários cuidados para a dissimulação, pois a bem-aventurança é inerente a todas as crianças que, contudo, contaminadas pelo ambiente adulto, perdem-na lentamente sufocando-a inconscientemente durante o processo de embrutecimento considerado necessário para “enfrentar a vida”, como se a vida fosse um adversário a ser vencido. Eu, diferente das outras crianças, havia-a percebido, e percebera nos meus irmãos mais velhos a transformação que, sob a aparência de um natural amadurecimento, escondia a incubação do vírus mortal da tristeza. Vírus responsável pela mais avassaladora epidemia humana e cujo inevitável contágio só encontra barreiras, raras infelizmente, em alguns indivíduos premiados por um certo tipo de alienação mental e entre os bem-aventurados. Paradoxalmente, os sintomas da infecção são festejados pelo corpo social contaminado. Tal percepção, “estalo”, “insight”, “peak experience”, chamem com quiserem, me ocorreu, eu tinha entre cinco e seis anos, em uma fazenda onde fui passar as férias. Sentado na margem de uma lagoa fui inundado por uma sensação de plenitude que fluía do céu, da água, da terra, das pedras, das plantas, dos animais, do vento, do sol e de mim mesmo, tudo pulsando no mesmo ritmo, no ritmo da vida. Senti a minha mente se abrir como uma flor para beber a luz e o conhecimento, senti os meus pés criando raízes, as minhas mãos transformadas em cântaros de onde nasciam os rios, os meus olhos em faróis de onde jorravam arcos-íris e estrelas, meu coração tornado um tambor cujo som marca ainda a cadência da vida. Naquele momento a Natureza me segredou que para preservar eternamente aquele estado de êxtase seria necessário manter a infantil beatitude, e que, para mantê-la, deveria ocultá-la, fingindo maturidade. Interpretei o papel com tal sucesso que, caçula, passei a ser considerado o mais maduro rebento da família. Embriagado com a interpretação, eu corri o risco de me transformar na máscara construída, o que implicaria em perder a bem-aventurança e, perdendo-a, perder o gozo que só é dado aos poucos que sabem manter incólume e firme a ponte entre os universos antagônicos. Felizmente a própria beatitude é dotada dos mecanismos de que necessito para não me deixar levar pelas aparências e, assim, a embriaguez de cega se tornou em um refinamento da estratégia de camuflagem, agora desnecessária porque é preciso que eu a exerça em algum momento, no momento certo, este momento, agora, e, exercendo-a, inundar o mundo com a sua graça e beleza. 

Conquanto considerasse rematadas asneiras quase todas as coisas que me eram ensinadas, fiz-me um aluno aplicado, primeiro em todas as classes, poliglota, graduado com louvor e ria-me gostosamente em silêncio imaginando as retas paralelas que se encontram no infinito. Um conceito estúpido de quem, escravo do tempo e do espaço, não é capaz de conceber o infinito e lhe concede uma finitude onde as paralelas devam se encontrar. Algumas vezes tive que engolir com um sorriso sarcástico tais exercícios de ignorância que acometem aos que perderam a beatitude e procuram explicações no mundo material para coisas que pertencem àquele outro mundo subjetivo das impossibilidades matemáticas. As palavras permitem tudo, desde que habilmente manejadas, permitem inclusive o logro travestido de ciência exata, mas são pálidas, em qualquer idioma, para descrever o absoluto conhecimento que só a bem-aventurança permite. Os senhores não estão entendendo nada. É compreensível. Como eu lhes poderia explicar o sabor de uma manga tirada no pé? Impossível com uma sentença matemática, impossível com uma fórmula química, impossível com palavras que mais não lhes diriam que é doce o seu sumo e duro o seu caroço. Como a manga, lhes dei o meu sumo, agora lhes dou a semente. Adubem-na, reguem-na, fartem-se e sejam capazes de compreender além da ilusão. Se, contudo, não são capazes de semear, saiam do meu caminho para que eu possa continuar. Ainda há muito por fazer.

É obvio que enfrentei dificuldades. Houve um período no qual cheguei a duvidar de mim mesmo, não me parecia razoável que uma criança pudesse engendrar tamanhas artimanhas de simulação e estive a ponto de me convencer que aquilo era somente uma fantasia implantada na minha memória pela beatitude, mas tais conjeturas eram acompanhadas de outras, ainda mais estapafúrdias, entre as quais aquela fantasia de que tudo no mundo era fruto da minha imaginação, inclusive eu mesmo. É perfeitamente natural que um adolescente alimente ilusões, sobretudo se, como eu, à torrente de hormônios soma a curiosidade intelectual pela filosofia, esse exercício de especulações, geralmente mórbidas, normalmente exercido por indivíduos que não conseguiram romper completamente o cordão umbilical com a beatitude, não obstante disso não tendo consciência, o que os atola em uma espécie de limbo pantanoso, região limítrofe entre a onisciência e a estupidez absoluta. Não há situação pior. E há a solidão. Não aquela solidão que acomete aos que não têm companhia e afeto, mas a solidão que se sofre quando se torna evidente que quem é amado, querido, admirado, é a personagem, não aquele que você é e não pode expor. 
Mas vejam, senhores, é preciso completa atenção para tudo. Os senhores não perceberam? É claro que não. Não têm a lucidez da bem-aventurança e aceitaram inconteste essa lamúria da solidão. Não a aceitem, é uma falácia. Determinem que não se insira nos autos nenhuma referência à solidão, pois se ela é concebível no personagem picaresco que envergo, não o é no indivíduo cuja beatitude dotou de integridade. O íntegro não precisa que se lhe adule, que se lhe admire, que se lhe ame; ele é completo e se basta, não vive no limiar das coisas, é parte indissolúvel do âmago. Não. Não os quis confundir, não foi proposital, compreendam que esta é a primeira vez desde a infância que me exprimo a seres humanos sem a mediação do personagem e é natural, dado o longo tempo que o utilizo, que às vezes ele se manifeste. Não o devo permitir, nem aos seus sentimentos mesquinhos, neste momento que é exclusivamente meu. Se eu o permitisse poderia lhes servir um astucioso discurso aparentemente coerente, e sem muito esforço poderia emocionar-lhes, enternecer-lhes. Mas não quero que sintam sequer simpatia e, certo da impossibilidade de lhes fazer ver as coisas que faz muito tempo esqueceram e que agora deixo exalar sutilmente como a um perfume exótico, contentar-me-ei em lhes causar incômodo. O máximo de incômodo possível. 

Não fui movido por nenhum prazer, nenhum lucro, nenhuma paixão, para executar aquilo que se convencionou denominar de “o crime” e, no entanto, não admito que se diga tratar-se de um ato gratuito. Nada no mundo é gratuito, nada acontece por acaso, tudo obedece a um projeto meticulosamente planejado. O meu personagem ficaria pasmo por tamanha obtusidade vinda de homens tão pretensamente ilustres. Não eu. Eu não. Embora muito pouco me custasse, não me aprofundarei na explicação dos detalhes, os senhores ficariam ainda mais cegos, porque não têm olhos de ver auroras perfeitas. Por quem me tomam? Os senhores se enganam pensando que a minha bem-aventurança é uma estratégia de defesa. É óbvio que não, pelo simples fato de que não preciso defender-me. Sou eu quem os acusa. Acuso-os da tentativa de usurparem a prerrogativa de me julgar, prerrogativa que não lhes conferi e que é só minha. Agi, como de resto tenho agido ao longo da vida, com justiça, não em nome da justiça como os senhores pensam estar fazendo. Atenham-se ao papel que lhes reservei, o de platéia privilegiada, sob pena de que eu os apague da minha história. Esta história na qual os senhores coadjuvam anonimamente apenas e tão somente na medida que eu considere pertinente. 

Não, eu não a conhecia. Propositadamente este foi o único detalhe que deixei ao acaso, tudo o mais, inclusive este julgamento eu o determinei. Até mesmo a sentença que será proferida é obra minha e o meu poder é tanto que ainda posso alterar todo o script, os senhores não passam de fantoches que eu manipulo como um escritor faz com os personagens da sua ficção. Foram, senhores, longos e bem vividos anos de planejamento, neles sim, é que estava o prazer, o lucro, a paixão, não no ato cruel de roubar uma “vida inocente”. Ridículo dizer que roubei uma vida inocente. Ridículo porque não roubei vida alguma, apenas antecipei um evento inexorável; e ridículo porque não há inocentes, exceto entre as crianças, os loucos e os bem-aventurados. Cheguei a cogitar a hipótese de não o executar, de me limitar à beleza da concepção intelectual, seria, pensei, o crime perfeito, aquele que não resulta objetivamente porque realizado apenas mentalmente, mas isso seria ceder a um impulso sentimentalista, impulso típico do meu personagem, impulso que eu sabia necessário sufocar para permitir a execução da segunda fase do projeto: a prisão, o inquérito, o julgamento, este momento inolvidável onde determinei será revelada a suprema beleza da beatitude.

Deixei a escolha da vítima ao acaso porque o ato de determinar uma ou outra qualquer pessoa implicaria em juízo de valor. Eu tenderia, certamente, a conceder esta honra ao meu personagem e ele, coerente com a personalidade que lhe dei, optaria por alguém cuja morte causasse menos dano, menos dor. Até alegria e alívio para muitos se elegesse um facínora, um estuprador de crianças. Mas tal ato, coerente para ele, não para mim, implicaria sem dúvida em atribuir demasiada importância à vida humana e a vida humana, como a vejo, não tem importância maior do que a de um grão de areia. É evidente que há vidas mais preciosas que outras, nem mesmo eu o nego. A vida dos grandes artistas, por exemplo, indivíduos que são capazes de criar beleza. Vidas, porém, que são preciosas por aquilo que criam e não por aquilo que são efetivamente, alguns deles donos de uma tão colossal estupidez que se supõem imortais, ou imortalizados, coisa que a rigor não se pode afirmar nem mesmo deste pequeno planeta que um dia será engolido pelo sol ou pulverizado por uma chuva de corpos celestes. Se bem que os senhores acreditem que não, o fato é que dão à vida humana a mesma importância que eu. Sejamos francos: os mortos que os senhores pranteiam são aqueles que lhes farão falta, carne da sua carne, sangue do seu sangue. Choram não por eles, mas por si mesmos. O que nos diferencia neste aspecto é que eu não sou um hipócrita. Sendo assim, fica cristalino que este atributo não está arraigado à bem-aventurança, o que me leva, agora, a levantar a hipótese de que, minimamente que seja, eu me tenha deixado contaminar pelo vírus da tristeza e que somente a ele se deve atribuir o desamor à vida alheia, ao semelhante desconhecido. Porque é assim, mesmo eu não estou completo. Alcançar este estágio supremo é o verdadeiro e único motivo deste processo que não estaria ocorrendo se eu me deixasse levar por pieguices extemporâneas.

São rematados imbecis os que me imaginam um exibicionista que tenha atraído os holofotes pela celebridade fugaz, pelos meus quinze minutos de fama. Cito aqui a frase cunhada pelo Andy Warhol como uma homenagem a quem conseguiu iludir a vanguarda intelectual da sua época impingindo-lhes merdas fotomontadas como se fossem obras de arte. Cunhou-a, porém, para justificar o logro, e partindo do princípio de que obras de arte prescindem de justificativas, ela, a frase, é a verdadeira obra-prima que produziu, conquanto milhares de mentecaptos citem-na como se ele prognosticasse que a cada e qualquer indivíduo, e não apenas aos produtos pseudoartísticos, estava reservada a fama, ainda que por meros quinze minutos. Não. Fugaz ou duradoura não é propósito meu a notoriedade, não obstante necessária como mais uma peça desta engrenagem da qual este momento é culminante e à qual ela serve, como de resto servem todas as outras pequenas peças. Convoquei a mídia para presenciar o “crime” para que o grande público pudesse conhecer cada etapa deste caso, única maneira de assegurar-lhes capacidade de cognição para o que virá. Estavam lá os jornalistas, as câmeras das emissoras de televisão, os radialistas, fotógrafos, curiosos, uma malta a quem deixei a liberdade para intervir, para me tomar o punhal, para impedir o golpe fatal, poupando a “vítima inocente”, no entanto, tanto quanto aos senhores e a mim, aquela morte lhes era necessária. Necessária para a mídia porque ela se especializou em servir ao público o seu mais nutritivo alimento, o sangue alheio. Necessária para os senhores porque são episódios como aquele que justificam este picadeiro. E necessário para o meu projeto de lhes incomodar e a toda a humanidade atirando-lhes na cara sem subterfúgios aquilo no que se transformam os indivíduos da espécie humana após a contaminação com o vírus da tristeza, do utilitarismo, da racionalidade. É verdade, sim, que fui regiamente remunerado para conceder entrevista exclusiva a uma grande emissora de televisão e que recebi um polpudo adiantamento de uma editora multinacional que publicará a minha história com lançamento simultâneo no mundo inteiro, mas isso não significa que eu seja motivado pelo dinheiro, aceitei as propostas porque esse interesse do mercado é emblemático da nossa civilização que, desde tempos imemoriais, faz da violência circo, entretenimento. 

Os senhores entreolham-se, cochicham, estrebucham-se, esboçam amarelos sorrisos, como se estas atitudes pudessem lhes eximir. Não querem vestir a carapuça, mas, mesmo que inconscientemente, sabem que ela lhes cabe, não como uma luva, como a própria pele. Eu posso entender que seja assim porque sei que a moléstia é insidiosa e que, concomitante à sua ação deletéria de endurecimento “para enfrentar a vida”, produz obnublação e hipocinésia mental. Mas a beatitude, senhores, é muito poderosa e resiste a todos os esforços do vírus para aniquilá-la. Sorrateiramente ela deixa intactas no inconsciente as suas sementes que ainda podem germinar. Lá, mesmo naqueles onde o superego tenha tiranizado completamente o indivíduo, ela aguarda uma ocasião propícia para florescer. É isto o que venho oferecer à humanidade: uma oportunidade para reconstruir a ponte restituindo-lhes a possibilidade de transitar soberanamente entre os universos psíquicos, anulando no ego as influencias do superego ou do id, tornado-os indivíduos íntegros, indivíduos forros da falsa moral que lhes impingiram milhares de anos de aculturação, preconceitos travestidos de ética e superstições. Supondo que a semente florescia, festejei nos anos cinqüenta o advento dos beatniks e nos sessenta dos hippies, pensei que enfim a humanidade enveredaria por outras rotas, mas, apesar da contribuição dessas tribos para uma pequena evolução, elas foram cooptadas pela máquina social, os seus símbolos transformados em mercadorias e os valores que eu vislumbrava corromperam-se. Deixaram, para uma pequena parte dos indivíduos, uma nova visão das relações sexuais, raciais e com a natureza, mas não o suficiente para melhorar as coisas da margem material, e absolutamente nada para iluminar os caminhos da outra margem.

Jamais pensei ou disse ou quis fazer crer que sou Deus. Nem mesmo direi, como Jung, que não preciso crer em Deus porque O conheço. Considero o supra-sumo da tolice discutir se Deus existe ou não existe, se há um só Deus ou vários Deuses. É tal qual discutir o infinito onde as paralelas se encontram ou se quem surgiu primeiro foi o ovo ou a galinha. Contudo, não me nego a discutir religião, coisa que não se deve confundir com fé. As religiões têm mil e uma utilidades, mas, como qualquer remédio, tem os seus efeitos colaterais, entre os quais se destaca o fanatismo responsável por oceanos de sangue. Pouco me importa, também, que alguns espertalhões fundem igrejas com o único objetivo de vender ilusão, não tenho que tomar conta do dinheiro de ninguém e não é relevante saber se o remédio é um mero placebo. Joaquim, dono de uma oficina mecânica instalada na minha rua, curou-se de tabagismo e de alcoolismo depois que começou a freqüentar uma certa igreja cuja má fama é notória. É bem verdade que está apresentando déficit auditivo por conta do barulho. Surdez que, além de ser mal menor que o vício, pode, às vezes, revelar-se uma vantagem. Seria desmesurada crueldade, se é que isso é possível, convencê-lo que Jesus não teve nada com isso. Por falar em Deus, fui informado que quase todas as emissoras de televisão alteraram as suas programações normais para transmitir na íntegra este julgamento, mas que uma delas teria negociado com este tribunal uma interrupção para que possa exibir o capítulo de uma telenovela. Aviso-os desde já que não aceitarei um único minuto de pausa enquanto dure o meu pronunciamento. Se eles quiserem arriscar ver a audiência da rede despencar até o traço, podem suspender a transmissão, as emissoras concorrentes festejarão se o fizerem. Não o farão. Você, que no aconchego do seu lar me assiste agora, prefere ver o capítulo na novela? Sempre há quem possa preferir, mas como quem manda é a audiência, vai ficar chupando o dedo. Isso aqui não é jogo de futebol que eles empurram para o horário que querem, é o meu espetáculo e nele sou eu quem dá as cartas.

Fez-me rir aquele néscio freudiano que foi ter comigo. O coitado, orgulhoso do pomposo título de doutor em psicologia forense, sobraçando um questionário ridículo, que suponho ser aplicado a quantos os senhores consideram alienados, suava em bicas na infrutífera tentativa de me classificar. Não sei o que lhe haviam dito sobre mim, mas não tive dúvida que chegou com a idéia preconcebida de que encontraria um psicopata, um candidato a Serial Killer cuja carreira se frustrara após a primeira investida. O senhor sabe de alguma dificuldade ocorrida no seu parto? O senhor sofreu algum acidente na infância que possa ter resultado em lesão cerebral? O senhor tinha na infância dificuldade no relacionamento com outras crianças? E com adultos? O senhor tem fantasias? Considera-se uma espécie de Deus, dono do destino da sua vítima? Sentiu prazer ao cometer o crime? O pretensioso se sentia o próprio Alexander Bukanovsky analisando o seu Andrei Romanovich Chikatilo. Vestido com o meu personagem, em um dia em que ele esteve particularmente brilhante e tranqüilo, respondi não a todas aquelas questões e, de quebra, recitei-lhe um belo soneto de Cruz e Sousa intitulado “Sorriso interior”. Nada me custa, até me dá prazer, repeti-lo agora para os senhores e para a imensa platéia que nos assiste:

“ O ser que é ser e que jamais vacila 
Nas guerras imortais entra sem susto, 
Leva consigo esse brasão augusto 
Do grande amor, da nobre fé tranqüila. 
Os abismos carnais da triste argila 
Ele os vence sem ânsias e sem custo... 
Fica sereno, num sorriso justo, 
Enquanto tudo em derredor oscila. 
Ondas interiores de grandeza 
Dão-lhe essa glória em frente à Natureza, 
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio. 
O ser que é ser transforma tudo em flores... 
E para ironizar as próprias dores 
Canta por entre as águas do Dilúvio!”

O pateta me cumprimentou achando que eu era o autor. Não entendo como se possa dar o título de doutor em psicologia a alguém que não conhece a obra daquele que inaugurou não apenas o Simbolismo, mas toda a poesia moderna do seu próprio país. Apesar disso, só perdi a paciência quando ele começou a segunda bateria de perguntas, todas elas sondando impossíveis comportamentos psicóticos. Ora bolas, depois de conversar mais de uma hora comigo aquelas perguntas eram simplesmente ridículas. Foi então que dei a entrevista por encerrada e solicitei que se retirasse. Sei que no laudo apenso ao processo ele atribuiu-me, não sei com base em quê, uma personalidade neurótica. Coisa que se pode dizer de qualquer pessoa, exceto dos psicopatas, dos psicóticos e dos bem-aventurados, que é o que sou.

Vocês me pedem que eu defina a bem-aventurança, mas tudo o que lhes posso dizer sobre ela é que se trata de um estado subjetivo cuja existência não pode ser materialmente comprovada, bem como será falha qualquer tentativa de explicação. Qualquer pessoa que em algum momento tenha se sentido feliz sabe que a felicidade é uma coisa real, mas não a pode explicar, isso acontece porque há realidades que devemos aceitar sem explicações, contentando-nos com o nosso julgamento subjetivo. Contudo, apesar de serem semelhantes sob este aspecto, felicidade e beatitude são realidades diferentes. É falsa a suposição de que a beatitude funcione apenas como um conduto entre a consciência, o inconsciente e o meio, ela transcende e nos oferece o útero primordial do Tao, o mistério além dos mistérios que só pode ser observado por quem permanece vazio de desejos. Parafraseando um antigo provérbio chinês: o inconsciente compreende as raízes do Tao, mas não os seus ramos; a consciência compreende os seus ramos, mas não as suas raízes; somente o bem-aventurado compreende-o todo.

Em razão dessa compreensão não irei inventariar aqui todos os crimes socialmente aceitos que a civilização vem cometendo. Fazendo-o teríamos assunto para estender este julgamento ad infinitum. Sobre o mais atroz de todos, que é o crime ambiental, sequer disse uma palavra, e nada falei também a respeito de outro crime corriqueiro, aquele que os políticos perpetram quando prometem mudanças para alcançar o poder e, empalmando-o, dão continuidade às políticas que condenavam. Ainda têm a cara de pau de nos vir dizer que é impossível mudar o rumo de um transatlântico à deriva. Mas a minha capacidade de superar a náusea que me causa pensar sobre essas coisas está se esgotando, além disso, para cumprir esta obrigação que me impus de cutucar-lhes as chagas, violentei-me a ponto de ferir alguns princípios que sem usar o meu personagem jamais violara, um deles o de exibir a minha luz, pois aquele que conhece a luz não a deve usar para obscurecer os pobres de espírito. Por este motivo eu lhes ordeno que pronunciem imediatamente a sentença. 


Fred Matos

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