fortuna crítica - prosa

Melhor que a encomenda - apresentação

Fred Matos não é um escritor estreante: tem livros de poemas já festejados. Experimentado, pois, na poesia, seus contos são armados através de um trabalho evidente com a linha contínua, consciente de que não deseja colocar no texto da prosa o lirismo do verso. E consegue êxito na sua tarefa. O volume de contos traz muitas histórias e, vale enfatizar, elas não são prosas poéticas, não fazem concessões à poesia. O que se encontra é um comprometimento total com a narração de tramas e peripécias, enfim, a narração de uma ficção. O autor tem predicados originais como, por exemplo, o ritmo que imprime às histórias. Tal preocupação com a velocidade do texto leva a um resultado positivo: não se consegue parar de ler seus contos. Além disso, como todos eles têm começo, meio e fim ─ donde se encontra um outro comprometimento; desta vez com o enredo ─ fica difícil largar um conto no meio.

O nó ficcional que se forma e que se desfaz no texto mesmo deixa o leitor plenamente satisfeito com o que lhe foi narrado. São tantas as histórias que podem ser ressaltadas que se chega a ter dificuldades na escolha. Algumas narrativas têm como título nomes de mulheres: "Clarice", "Bárbara", a ótima "Lídia". Impressionante, e por isso inesquecível, é o conto "Primeira Cicatriz", que narra do drama de um menino que sai com o pai e volta para casa sozinho, pois no caminho o pai é atropelado: drama esse muito bem logrado na elaboração do que se vai passando com o menino, do seu comportamento inesperado ─ talvez seja esse o conto mais surpreendente; pelo menos o mais impactante.

Fred Matos, se é que se pode estabelecer linhas genéticas aqui, herdou do pai, o ficcionista Ariovaldo Matos, o talento do narrador. Como o pai, suas histórias contam, não se preocupam apenas com a estética literária, porque há de haver o episódio detonador do que se quer narrar. Além de tal semelhança, existe o prazer que ambos suscitam quando estamos lendo suas narrativas. Mas Fred Matos é, sem dúvida, Fred Matos ─ levanto tão somente a herança artística.

Portanto temos: histórias que contam, linguagem que prende o leitor haja vista a qualidade do estilo narrativo e o valor literário dos textos. Tudo a favor do contista que deve continuar a cortejar o gênero com segurança. O volume reunindo os contos apresentados sob o título "Melhor que a encomenda" recebe minha total aprovação para publicação e o registro de ter sido um dos melhores no gênero dentre os que, até aqui, foram lidos por mim.

Gerana Damulakis


Fred Matos, ficcionista

Escrever sobre Fred Matos, que vi crescer fisicamente e para a literatura, é tarefa difícil para mim: não que seu texto não me instigue, antes me estimula. Os laços fraternos que nos ligam hoje, me ligaram em passado recente a seu pai, com quem aprendi o pouco que sei em matéria de jornalismo. Esse receio, que me revisita diante do computador, refletiria um medo maior — o de expressar gratidão — se não estivesse diante de um escritor.

Lembra-me que a morte de seu pai ensejou um de seus poemas mais densos, diria mesmo mais belos: custa-me, pois, avaliar, dentro de seu processo de formação, e por delito de opinião, o peso da prisão paterna. Talvez o tenha conduzido à antecipação da maturidade ou a assumir uma responsabilidade que a adolescência transfere para anos menos verdes e menos dourados.

Fred Matos estréia no gênero — o conto — em que seu pai, Ariovaldo Matos, se firmou como expressão definitiva, embora seu texto não lembre o paterno: nem na densidade poética nem na firmeza do diálogo a afirmar uma vocação para a dramaturgia, o que se explica: o poeta, recentemente revelado em Anomalias, não cedeu às tentações da ficção, sobretudo para não correr o risco de praticar má poesia a pretexto de cometer poema em prosa.

O que importa é que Fred Matos, no gênero que incursiona agora, não se ressente da poesia, mas também não leva para o conto a fria objetividade jornalística, embora transporte da redação de jornal para a cena real personagens que certamente enriqueceram seu aprendizado, como um certo Césio: pode-se identificar no Mestre a figura de seu pai, que influenciou mais de uma geração com seu jornalismo exemplar, mas seria crível nele reconhecer outras lideranças que marcaram sua geração.

Melhor que a encomenda, volume constituído de narrativas curtas, segundo se convencionou denominar o conto — algumas bem poderiam ser definidas como mini-conto e nem por isso perdem a estrutura do gênero — apresenta-nos um ficcionista moderno no sentido de construir sua narrativa a partir da quebra de valores consagrados, o que não sugere desprezo pelo princípio, meio e fim, mas, pelo contrário, insinua a inserção do inesperado como clímax temático. O mini-conto Apocalipse revela outra face de sua abordagem ficcional: a substituição de personagens pela narração que funde o subjetivo ao objetivo. Talvez para que os poetas possam lamentar a “perda do sonho”.

A ficção de Fred Matos, por vezes nascida e divulgada na Internet pela necessidade de comunicação, que é essencial ao criador, apoia-se basicamente nos temas do cotidiano, como o caso de Helena que, 20 anos depois, retira do baú o vestido de noiva para realizar seu sonho dourado: o de subir ao altar, em oposição com a história de Luiza, que chega a Vinhedo Novo com um sonho — ser puta para tornar-se madame: consegue ser dona de um bordel. O romance de Lídia e Raimundo perturbado pelos poemas que o marido escrevia na madrugada: “a porta aferrolhada aprisiona o grito”.

Acresce que sua ficção, a partir de sua experiência pessoal, pelo menos a de seus primeiros anos, de despertar para a vocação, converge para sua militância em jornal, em que se destaca a figura do foca, os criadores de calhau para a edição dominical, a presença do mestre que compõe toda redação, dividido entre a boa orientação e o esporro necessário, mas também dirige seu humor crítico para a realidade virtual, em que Olegário se afunda on line, perdido entre ICQ e o site mais intrigante.

O toque de sensualidade acentua-se na narrativa-título, Melhor que a encomenda, em que a mulata Jussara anima com um sopro de vida, de gemer de colchões e ais de amor, todas as alcovas, do prefeito ao meritíssimo juiz, do farmacêutico ao escrivão — a cada um favorecendo por motivo facilmente explicável: um porque fornece remédios à família, outro porque lhe cede abrigo, enfim o calor do corpo de Jussara não custa dinheiro como nas casas especializadas no ramo, mas requer privilégios, uns garantidos por sentença judicial, mas com direito a combater o bom combate nas noites de frio e solidão.

Pode-se intuir que Melhor que a encomenda, pela diversidade temática, configura um painel do cotidiano do homem comum, pelo qual atravessam a noiva que amargou a morte do noivo às vésperas do casamento, a tragédia do internauta que esqueceu o mundo na realidade virtual, o foca que conquistou espaço no jornal. Enfim, Fred Matos, se já inscrevera seu nome na poesia, incorpora-se agora entre os ficcionistas, mas não se diga que “filho de peixe, peixinho é”, antes reconheça-se que Fred construiu seu próprio caminho e traçou seu destino.

Guido Guerra

pesquisar nas horas e horas e meias