sexta-feira, setembro 12

pesadelo




A porta aferrolhada aprisiona o grito. Ele acorda. É sempre a mesma coisa. Agora faz a barba. Se apresse Raimundo, a voz meiga pediu. O renitente pesadelo e o sonho de voltar ao velho enorme casarão da infância é adiado: agora a hora é de verdades. Buscar o distante, quando pegou na vida o rumo errado, é desejo sem conseqüência e ato, distante no tempo, distante no espaço, este, sim, comensurável, dois mil quilômetros de São Paulo ao interior da Bahia. Aquele outro, nunca se sabe qual foi e é sem retorno, mas disso ele não se dá conta. Ela, por hábito, arruma-lhe o nó da gravata, prega-lhe na cara o mesmo cotidiano urgente beijo. Já são sete e meia, se não der sorte com o trânsito você vai chegar atrasado, sentencia. No escritório a bronca diária do chefe é certa como a hipoteca do apartamento. Só por Lídia, paixão tornada amor, amor tornado amizade, amizade tornada acomodação, é que Raimundo submete-se, humilha-se e amolda-se. Jogar um dia tudo pra cima, procurar as razões nas raízes mais profundas, é o que pensa, preso no engarrafamento, ônibus lotado, oito e quinze, empapado de suor por baixo do paletó marrom amarrotado, os dedos mecanicamente desabotoando o colarinho encardido correndo em torno do pescoço.

 

Falta-lhe ar.

 

Meia hora atrasado Raimundo, terei que descontar no ordenado. Acordasse mais cedo. Acordar mais cedo, dá de ombros, como? Não é fácil levantar antes das sete, se é na madrugada a sua única alegria. Quando Lídia dorme, a casa silenciosa, Raimundo escreve poemas até as três, quando, pontualmente, incinera-os para que não fiquem evidências do crime e a esposa sobressaltada como quando os colecionava e nas palavras metricamente empilhadas, rimadas, ela leu o que lhe pareceu ser prenúncio da disposição de Raimundo para vida insegura, insana. Chamou-o louco, chorou, amuou-se, um sorriso negava, nos olhos não o encarava. Medo daquele outro homem que no seu marido não conhecia? Em vão ele explicou que eram ficções, nada com que se preocupar. Por vã a explicação, rasgou-os, queimou-os e esgarçou um sorriso em tudo desconforme com o ardor queimando suas entranhas. Aquele sim era o seu Raimundo e Lídia desocupou-se do caso. Mas havia a insônia e após a insônia o mesmo renitente pesadelo sem desfecho, a porta alta, larga, pesada, impenetrável e o grito de pavor. De quem? Por quê? Raimundo sabia que precisava voltar ao velho sobrado, desenterrar lembranças sob os escombros do tempo. Mais de trinta anos em São Paulo, nenhum dos seus ainda na pequena cidade, temia, notícias não tinha, que em indo não o encontrasse de pé, sequer escombros a remover, neles recolhendo energia e memórias.

 

De tudo não se sabe, de pensamentos cogita-se, mas do guardado no insondável não há quem tenha ciência. Lídia recorda a primeira vez, poucos dias após os primeiros cinco anos do casamento, vinte são passados. Raimundo lívido acordou no meio da noite, ela precisou trocar o lençol encharcado enquanto ele contava o pesadelo. Noite após noite, desde então, sempre o mesmo. Ela há muito se acostumou, dorme como pedra, nada sabe das perambulações noturnas do marido. Do sobrado, ele lembra o avô, tristes tias velhas solteironas, secas como uva passa, seu pai, quase nada, que de lá se mudou aos três anos para Salvador, o pai casado de novo, o passado esquecido. A mãe, disseram-lhe, estava entre os anjos de Cristo. Perdida é a lembrança da porta aferrolhada. O carimbo Raimundo, o carimbo. Assustou-se com a reprimenda do chefe, devaneando estava, agora com os dias no internato em Salvador, depois a morte do pai e a decisão de vir para São Paulo, desatados todos os nós de família. Trinta anos carimbando, protocolando, ele conta em anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, o tempo que falta para aposentar-se e, desobrigado, empreender a volta ao passado. Lídia disso não sabe.

 

Filhos não tiveram. Planejaram-nos para quando pudessem arcar com as despesas. Tempo que não chegou. Esquecido o plano, desejaram-nos, mas Raimundo descobriu-se estéril e conformaram-se. Deus põe e dispõe, não quer, assim há de ser. Sentença de Lídia. Para pagar a meia hora de atraso, manter ileso o salário, Raimundo engole apressado o almoço: dois pastéis um copo de suco.

 

Bate o ponto.

Carimba.

Protocola.

 

É, neste momento, o único no escritório, não há testemunha para o seu último interrogativo suspiro. Mãe?

 

 

 

 

 ilustração: Abrigo II 1990 - foto de Mário Cravo Neto

 

Conto publicado em “Melhor que a encomenda” – Coleção Selo Letras da Bahia – FUNCEB, EGBA – 2006.

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