anomalias




O meu segundo livro individual, “Anomalias”, editado pela Kelps, com tiragem de mil exemplares, foi lançado em Setembro de 2002.

Creio que já publiquei todos os poemas aqui no blog, alguns mais de uma vez. Contudo, publico-os, nesta página, todos juntos, na ordem em que estão no livro, e com o texto original, pois, já que eu não sinto nenhum constrangimento em reescrever os meus velhos poemas, muitos deles foram publicados no blog com alterações.






Antes dos poemas, a dedicatória:

Aos meus filhos,
Amon, Isis e Fred.
Para Dila
e aos tantos amigos e amigas
que, como eu,
sonham e lutam
por um novo amanhã,
entre eles
o poeta e contista
Fausto Rodrigues Valle
cujo apoio possibilitou
este livro.  





Matéria-prima


As memórias que resgato
quase nunca são de fatos,
mas do que poderia ter sido.

Minhas alegrias e dores
prefiro deixar ao relento
têm a natureza do vento,
levam-nas os passarinhos.




Na ANOMALIA
de volver-me todo dia
como querendo encontrar
lucidez onde é loucura
desconstruo o que me fiz
quando perdi as fantasias

um diz virá, quando, enfim,
no mergulho mais profundo
poderei comungar comigo
a paz de não ser nada,
de não ter nada,
do nada.




Anima


A poesia anima o verso
e a lanterna do pescador.
Aquele sem ela é vazio
Aquela sem ela não aclara.
Não é a vara que pesca
e não é o poema que fala.



Verso torto

Se um verso torto
de pé quebrado,
um mero esboço,
sem tinta ou traço,
se me oferece
pedindo abrigo,
eu o acolho
tal cão vadio,
eu o abraço
tal cria minha,
eu o enfeito
terçando rimas,
eu me empenho
para que siga
com a cadência
de valsa antiga,
mas minha sina
não é de Midas
e o verso vai,
tal qual formiga,
na rota certa
do formicida.




Coda


em tudo e por tudo deslocado
liberto pra tomar qualquer destino
palavra ante palavra negaceio
pousar os pés na página ímpar
ainda tenra como a pétala alva
do lírio.

& mais lhes digo sob a pena
do pavão que à beira do caminho
espera comportado a nau de Cronos
ao lado de uma certa Carolina
ainda tenra como a pétala púrpura
do vinho.

& nestas tortuosas paralelas
ditadas por um Narciso louco e cego
nada há que se oculte ou se revele
pois é esta a essência desta coda
ainda tenra como a pétala rara
da alma.




Grão da palavra


Eram sem nome todas as coisas,
na mudez das horas absolutas,
no fluir selvagem dos elementos,
dos bichos, dos astros, das plantas.

Eram sem nome, até que o homem,
empunhando a clava, fez-se ereto.

Eram sem nome, até a percepção
da solidão, do amor, do ciúme:
sentimentos inatos da espécie.

Eram sem nome e ele criou,
nos primeiros signos rupestres,
o grão onde a palavra floresce.




Ao léu


Num pedaço do céu
às vezes luz
às vezes breu
voam meus pensamentos
além do além do léu
levando sonhos
memórias
de tempos que ainda não são
e pocam
como bolas de sabão.




impossível partitura


porque não sou atemporal
sou aquele quando estou

em clave de sol
em clave de fá
em clave de dó

& flauto em qualquer situação

mas quando desafino
arrebento o pentagrama
troando todas as tubas

& pauto impossível partitura.





Guardei a ampulheta numa caixa
onde é oculta a hora inevitável
e fiz ao mar as cartas do baralho
para a cigana não poder me ler a sorte.

Não que me importe com a vida
ou com a morte,
mas porque gosto da surpresa diária
de acordar,
envelhecer,
fazer a barba
e no espelho
descobrir
minha nova cara.





Gregas lembranças


Gregas brancas lembranças
ruas estreitas, labirintos
e ilhas perdidas no mar Egeu.

Em Lesbos lamento
o suicídio de Safo e sei
de Prometeu acorrentado
como se o bico da águia
fosse o meu.

Argo torna agora ao porto
e é morto
o sonho de Teseu.




Salvador


Meus sapatos sempre traçam
um noturno itinerário
por caminhos Pelourinhos

Mas não te quero paisagem
como se fosses cena fria.

És, em mim, mais que cidade
onde meus silêncios calam
desavidas fantasias.

És a dialética síntese
dos íntimos mecanismos
da minha psicopatia.




É crer ser de tudo o cerne
o carma da minha condição.
Sou o modelo do eticamente correto,
do esteticamente belo,
do perfeito equilíbrio
das massas geométricas,
do jogo das sombras,
do ritmo regular, musical,
poemático, mágico, áureo.

A minha loucura é o paradigma da razão.

Os Deuses são fiéis
à minha imagem e semelhança,
mas deixei escapar
planetas entre os dedos,
quebrei a forja onde gerava sóis,
desaprendi a arte
de dar nome aos bois
e disse-me homem,
e disse-me artista,
e disse-me poeta,
e desaprendi a voar,
a conversar com os bichos,
com as plantas,
com as crianças.

Só não perdi a ilusão de ser de tudo o cerne:
é o carma da minha condição.




Quem souber me dê notícias
de Aliomar Antônio de Brito
e de Manuel Norberto Filho,
os mais remotos amigos
que a minha memória guardou.
Éramos um trio inseparável,
das portas da puberdade
ao fim da adolescência.

Um foi cuidar das terras da família,
que estavam sem gerência.
O outro foi pra São Paulo,
cumprir sina nordestina.
Eu fiquei poetando atoa,
pra que a saudade não doa.

Quem souber me dê noticias
de Armindo Jorge de Carvalho Bião,
de Enéas Guerra Sampaio,
de Alex Ivan Peirano Chacón,
de Antônio Carlos Araújo Correia
de Mário Cravo Neto,
de Dita, de Cady, de Lúcia, de Mina,
de Ely, de Pink, de Césio, de Pedro,
de tantos outros amigos e amigas,
que a rotina da vida me roubou.

Quem souber me dê notícias
de um certo Fred que fui,
e que não é o mesmo que  sou.




Solidão


O tilintar dos talheres assinala
que está posta a refeição.
A toalha da mesa não revela os cerzidos
onde o tempo e o uso esgarçaram as fibras.
Difusa, a luz solar
vence a cortina que esvoaça.

A senhora tece comentários domésticos,
aos quais o esposo assente cabeceando,
olhos postos nos próprios pensamentos,
ensimesmado num mundo
em tudo diferente deste,
onde, autômato, mastiga, engole,
bebe e concorda
pela conveniência de não se imiscuir
no que considera irrelevante.

A mulher fala do factual.
Alheio, o homem delira
   e pede a sobremesa.



Nos guardados da casa
arqueologia miúda
de um passado recente.

Cartas, velhos cadernos
pejados de poemas, sonhos, projetos,
uma pétala de rosa, talvez, ou de açucena.

Uma declaração de amor eterno
infinitamente mais breve
que o papel que a promessa encerra.

Assina Lúcia, de cuja feição não me lembro,
sequer das circunstâncias da paixão
de que a carta é testemunha.

Documentos, traças, pó de papel, mofo...
De que me serve guardar
a Certidão de Óbito do meu pai?

Centenas de fotos esbranquiçadas.
O texto juvenil de uma comédia
que nunca será encenada.

Nem tudo vai para o lixo sem lágrimas,
mas é preciso esvaziar os armários,
atulhados de ontens,
para dar espaço ao novo.




Silenciemo-nos


Silenciemo-nos
apenas por um momento.

Silenciemo-nos,
quem sabe assim
possamos nos ouvir
e ouvindo-nos
possamos nos compreender
e, compreendendo-nos,
nos aceitarmos como somos,
calando para sempre
o que só falamos.




O sentido da vida

o sentido da vida,
se é que sentido há,
é passar.

passar como passa a brisa
ou como as vagas do mar,
passar como passa o tempo
sem tempo pra especular
se passa porque existe
ou se existe por passar.




Covardia


Amanheço e a manhã passa fagueira,
mas canso ao esperar passar a tarde.
Que venha logo a noite, quando arde,
em versos graves, minha vida inteira.

Só à noite escrevo, pois sou covarde
e, à luz do sol, minha sina feiticeira
é recolher, para lenha da fogueira,
sonhos, dores e anseios. Sem alarde.

Somente à noite me é dado confessar
os pecados de uma vida sem razão
e desejos, a ferro e fogo sofreados.

Assim tem sido, pois não posso magoar
os que me amam, mas não vêem a solidão
que lhes oculto com sorrisos ensaiados.




O louco e o poeta
[Para Maurício Rosa de Almeida]

No átimo de uma vida
traçada com o fio do acaso
na árdua estrada ilógica,
seguem, o louco e o poeta,
alargando as margens da rota.

Vão, no limite que criam,
tornando concreto o fantástico,
semeando sonhos e alegrias,
mesmo com a alma em pedaços,
porque sabem que tudo é falso.

Sabem que a vida é alegoria,
conhecem o sabor do fracasso
e que toda glória é vazia,
mas seguem: ampliando espaços
para uma nova teogonia.




Perdidas ilusões
[Para Eliana Mora]


Eu,
palhaço das perdidas ilusões,
despi os guizos da fantasia
e os astros da peneira de zinco
                                  da poesia
eram balas [ que luziam ]
cravadas no meu coração.




Quer saber?


Tanto faz, pouco importa:
sim ou não;
samba canção, rock ou forró,
verde ou rosa, fruto ou flor;
Roma, Paris ou Salvador.

Quer saber?
Tanto faz, pouco importa:
caos ou ordem, noite ou dia,
rio ou mar, norte ou sul,
chuva ou sol, rir ou chorar,
cama ou suor.

Quer saber?
Tanto faz, pouco importa.
Contanto que eu cante.
Contanto que eu sonhe.
Contanto que a vida
não passe perdida.
Contanto que mágoas
não deixe no dia
que a hora chegar.

Quer saber?




Do alto do meu tamborete
vejo, e convicto declaro:
o mundo todo que existe,
é somente até o muro.
Além dele é o futuro
e sobre o futuro não falo.

Tudo é ilusão e mistério,
até que seja presente.
Ontem foi, amanhã talvez.
Vivo os dias um a um.
Além não há nenhum
a cujo saber se consente.




Carta para Clélia Romano


Recebi sua carta: lhe achei amarga.
Os anos, sei, sim, passam...
que, com eles, passem as mágoas
e, com a sabedoria que nos dão,
não devem mais passar  em vão.

Eu, para mim, já não espero nada.
Desliguei o telefone às conversas fiadas.
Os filhos crescem e são
tão parecidos a como éramos:
donos do destino e da razão.
É bom que nem tudo funcione bem.
Eu não me adaptaria bem ao tédio
de uma rotina sem surpresas e zangas.
Aqui a chuva passou
e as meninas do prédio
já estão usando tangas.

Pois é, você percebe...
depois de velho o ridículo que sou:
voyeur, pelas frestas e janelas,
dos corpos seminus que vão à praia,
me chamam tio e não me dão trela.




Embriagado de metáforas,
eu vejo na curva da estrada
aquele que fui e que passa
com passos de passarinho.

Vai levando sem remorsos
minha inocência meus sonhos.

Segue alegre vai cantando
e eu catando as lembranças
que deixa cair no caminho.



Cova Rasa


No latifúndio da poesia,
João Cabral
foi senhor absoluto.

A palavra exata,
cova rasa,
era dele, morte e vida.



Amaralíngua

Amar a língua
na maré mansa
de Amaralina.

Caetano contente
toca a coca-cola
na boca.

Kilkerry ri.

Pedro é pedra
e o papa é pop.

Na noite turva tédio
strip-tease e samba:
a alma é volúpia
reco-reco e tamborim.

Nos interstícios
o idioma seca
eu o saco
cheio de mim.




O Beato de Canudos
[Para Maria da Conceição Carneiro Oliveira]


A chuva, primeiro gota a gota,
depois tempestuosa,
transbordando o Vaza Barris,
sua água escarlate, sanguinolenta,
escamando torrões, coágulos da terra,
enlameando os caminhos,
lavando o pó das pedras,
inundando o Belo Monte,
inundando o império,
submergindo o mundo,
molhava os sonhos do Conselheiro.

Da infância, semente da loucura e da razão,
pouco se sabe,  quase tudo é suposição.
O sertão sabe da seca, da fome, da sede.
O sertão sabe de Deus, da esperança, da fé.
O sertão sabe da dor, carpida sem lágrimas,
sem esperdício d’água.
O sertão sabe da estiagem,
dos horários da missa, dos dias do padre,
da submissão.


O menino, órfão de mãe, do pai que bebia,
da madrasta maltratos, criado descalço,
sonhava o mar, e sonhava com Cristo,
que morreu na cruz para nos salvar.
Sonhava com leite e mel
escorrendo dos veios da terra.
Ainda sonha, e espera por Dom Sebastião
que sairá das ondas, à frente do seu exército,
para a nossa redenção.

No Ceará, aqui, acolá,
foi professor e caixeiro,
foi rábula,  foi vaqueiro,
teve mulher e dois filhos,
que pelo sonho largou.
Pois um dia, quarenta dias,
iguais uns aos outros de sua sina peregrina,
Antônio recebeu a revelação divina:
” Vai meu filho, ergue minha casa,
conduz meu rebanho à terra prometida,
que é teu sonho”.

Antônio obedeceu,
plantou catedrais de pedra e adobe
para que dobrem os sinos da fé,
despertando a eternidade.
Antônio prega onde não há padre,
ensina a Lei, leva o batismo e o mito do Cristo.
Antônio é conselheiro, é amigo,
meigo companheiro na última unção.
Antônio é pai, é filho, é irmão.

Do Ceará à Bahia, onde passou foi ouvido,
fez-se do povo querido e do Capeta inimigo.
Uns diziam que era jagunço fugido do Ceará,
onde, por crime da morte, da mãe e da mulher,
não podia mais voltar e que, vivendo de esmolas,
vagava de casa em casa, de arraial em arraial,
de Chorochó à Vila do Conde,
de Geremoabo à Itapicuru,
nos grotões do sertão baiano,
pregando a rudes ouvintes,
purgando pública contrição do pecado do sangue,
para o qual não há perdão.

Um dia, sem reação,
por ser a monarquia poder de Deus emanado,
em Itapicuru foi preso, pra Salvador foi levado,
inquirido, torturado.
De lá pra Fortaleza, depois Quixeramobim,
chegando, então, por fim, na sua terra natal,
onde foi logo liberto,
que contra ele a lei nada tinha a cobrar.
Mas a lenda ainda corre
nas mil bocas dos Barrabás.

Foi um dia de festa, ladainhas e foguetório
quando Antônio voltou e convocou sua grei.
Era chegada a hora por todos ansiada
de reunir o rebanho na terra anunciada.
Em cada canto nordestino a boa nova chegou.
Quem tinha propriedade, botou preço sem apreço
vendeu por poucos trocados,
na pressa de ser o primeiro
nas terras do Nosso Senhor.

Nas terras miseráveis do Arraial de Canudos,
onde nada se plantava, nem criação se fazia,
fincou enfim sua cruz,
plantou uma cidade às ordens do Senhor.
Para cá, diariamente, demandam os desesperados,
pois sua palavra santa, é a Lei, é a Verdade,
e onde era deserto, trinta mil vidas vinculam
ao dele seus destinos, em santa felicidade.

Trovejam das tropas tropel de burros
abarrotados de trapos, tralhas velhas,
nas trilhas onde chocalham cascavéis.

É uma estranha procissão:
homens, mulheres, crianças, anciões,
ansiando vida nova na nova Canaã.

Os coronéis do sertão,
mal refeitos da perda dos escravos libertos,
vêem sumir, apavorados,
os braços que os nutrem.

Para eles é um mistério como tantas bocas podem
encontrar o de comer em sítio tão inóspito.
Somente com Deus a prover 
é possível o impossível.

E a notícia voou, nas asas do ódio e do medo,
da inveja e da infâmia.
Chegou a Salvador, ao governador e ao bispo:
”Põe esse homem no hospício,
lá é que é lugar de louco”,
disse fazendo pouco, o de batina ao de fraque.

Agora é a República, há no trono do Imperador,
um governo de anticristos Maçons,
desafiando a Lei que o beato Conselheiro ensina.
Foi quando a guerra começou.
Primeiro chegou a polícia,
facilmente escorraçada,
que em cada moita do mato,
em cada fresta de pedra,
em cada buraco do chão,
há um cabra nordestino
armado de foice ou facão.
Mais que isso, armado de fé
e do amor no Santo irmão.

Dos macacos decapitados
ficamos com as armas de fogo
e com toda munição.

Alguns dos que chegam
passam pra nosso lado,
preferem morrer com Cristo
que viver com o diabo.

Mas o tinhoso é teimoso
e manda pra esparrela
novas levas de praças.

São tantos os que matamos
que em cada arbusto da estrada
há uma cabeça espetada
e o sangue na terra vermelha
é aqui mais farto que água.

Agora é o exército nacional,
soldado, cabo, sargento,
tenente, coronel, general,
até o Ministro da Guerra
vindo do Rio de Janeiro.
Vem soldado do Norte,
vem soldado do Sul,
vêm com obus e canhões,
metralhadoras, granadas,
mas Canudos não se rende,
e em dois anos de batalhas,
aqui se cozeu a mortalha
do exército brasileiro.
Quem é da terra não verga,
faz de fagulha braseiro.
Aqui da minha trincheira,
a boca cheia de terra,
os olhos molhados de sangue,
vejo uma túnica azul,
um chapéu de abas largas,
cabelos até os ombros,
barba inculta desgrenhada,
olhar de sóis nascentes,
numa mão o livro santo,
na outra, qual cetro, um porrete,
caminhando sobre nuvens,
pastoreando as almas
dos cadáveres insepultos,
Santo Antônio Conselheiro,
em cujos pés me agarro.



Ato do Verbo
[Para José Félix]


Tens a faca
para o ato do verbo
que sangra.

O coito oculto
da fala
mo revela.




Pois bem
[ Pequena comédia ]


Pois bem, vejamos,
aquilo que ainda é oculto,
pimenta no sorvete de morango,
um cego que tem medo do escuro,
o laço que não ata nem aperta,
o louco que mantém a mente alerta,
enterro de anão
e a cova     a  b  e  r  t  a
onde vou plantar meus absurdos.

Senão, vejamos...
Mas, contudo,
talvez o que me falte em conteúdo
me sobre em ousadia [ou em pirraça]
e eu possa...

Não, não posso,
[por mais que queira]
tomar um outro copo de cachaça
nesta noite de segunda-feira.

Assim, porém,
os dias vão passando lentamente
e é certo que eu fique eternamente
na sombra de uma figueira-de-bengala
atento ao rebolado das mulatas
até que a lua venha em meu encalço,
até que caia neve na caatinga,
até que me nasçam novos dentes
e eu possa novamente rir de mim.




Tédio Eterno


O amor achou-me desarmado
quando encontrei o seu olhar
e instalou-se o tédio eterno
com certo excesso de azuis

Trouxe-lhe flores amarelas,
eram belas, mas não foram solução
Queimei incenso, toquei um tango,
escrevi poemas: tudo foi vão.

Hoje celebro nossa união
neste poema que não vela
[nem revela]
que o que não dura é a paixão.




Instante de amar


Dos olhos
lagos calmos
colho
com a língua a lágrima
orvalho
e calo
nos seios
sonhos
sorrisos
e cisco
arisco
o risco da rota
dos restos
de gestos
que engendram o mistério
do frêmito das ancas
análogas às ondas
no instante de amar.




Cantiga antiga


Havia, quando ainda havia,
ávida de amor, uma menina
na geografia do seu corpo...

          [Pausa para um copo de vinho tinto
           e acordes de violinos.]

Eu dizia: havia, já não há.
E por não haver, quem há de ser
aquela bailando ao luar?

          [É neste ponto que toca o piano]

É uma sombra?  Uma miragem?
São trapaças do meu olhar?

          [Já não faltam flautas]

Havia, sim,
havia no ar uma música suave,
um tênue perfume, uma qualquer
paisagem.
Agora há um mar que me afoga,
qualquer rima, qualquer droga
e nenhuma solução.

          [Rufam os tambores]




Quando virou borboleta


Chove.
Constatação necessária
se não sei das circunstâncias
do outro agora. Aquele que será
quando. Se você souber deste.

Se não, não importa a torrente
nem existirá, por vão, o que aqui é,
onde não alcanço contrariar
minha natureza [e a da água feita fúria
rompendo entranhas sem delicadeza]
para sopesar cada palavra.
Conselho seu.

Há música: “Bridge over troubled water”.
Encontrei o CD de Simon e Garfunkel.
Lembro-me lágrimas nossas
abraçados uma noite fria no Central Park.
Lágrimas aparentemente paradoxais
de felicidade e melancolia.

Não, a felicidade não é o riso gratuito,
a gargalhada fútil e fugaz. Pode ser, sim,
um esgarçar das fibras tensas de uma ilusão.

Já não há sonhos que nos una
desde quando me deixei ficar no tempo.
Sentença sua.

Já não chove.
Foi forte e breve como a sua presença.
Posso abrir a janela.
Está feito.
Ainda há música:
 “The only living boy in New York”,

mas não há sol. O sol, a música,
aríetes dissipando ânimos e desânimo
é uma boa imagem, nem sempre solução.
Por via das dúvidas
não ouvirei o “Réquiem” de Mozart.
Fiquei morto muito tempo.

Ontem, embriagado,
queimei os meus poemas
[e no fogo
as metáforas fizeram-se belas
em luz e cinzas].
Seria, pensei, libertar-me da âncora
das nossas memórias. Ledo engano.
Aqui estou, agora, resgatando-as.
Para mim. Exclusivamente para mim.
De você não sei sequer se vive,
além da que morreu
quando virou borboleta.




Talvez

Talvez vá gritar teu nome
nas caladas da madrugada.
Talvez.

Talvez ele acorde em ti
desejos de namorada.
Talvez.

Talvez sim.
Talvez nada.




Rendição


Vi, nos olhos do gato, a sua ira.
Crispadas,
suas mãos promoviam
o paradoxo do afago.
Retesados,
os músculos do felino
pronto para a fuga
denunciavam seu ânimo.

Como o bicho,
submeti-me às suas garras,
submisso que sou, por livre vontade,
para meu gozo perigoso,
aos seus desejos.

Vejo o seu sorriso vitorioso.
Compraz-me saber que, derrotado,
terei em troca o prazer:
prêmio de consolação, mais valioso
que o do orgulho da vitória.
Prefiro o seu carinho
à glória e o seu amuo.

Rendo-me e rio,
um riso íntimo e silencioso
que a expressão não denuncie.




Juízo Final


Invadirei, alado, o claustro, onde,
alheia a mim,
queda adormecida tua ânsia febril:
inconfessáveis desejos
subjugados por mágoas,
cicatrizes que sangram, sangram ainda,
sim, sangram.

Sangram não obstante o esquecimento,
o silêncio insuportável teimando em reincidir,
em invadir cada momento,
cada fresta, cada ermo da alma,
cada estranha fisionomia;
como amarga lâmina
que guarda o travo da dor
transida do frio do aço.

Como a luz do primordial cristal,
invadirei o claustro, onde aninhas nos braços
a verde pedra sonolenta de pelos eriçados
e despirei teu hábito, teus trajes de alpinista,
pétala a pétala, até a última lã.

Invadirei o claustro como um byte louco,
ou na pelagem de lobos
ou como aragem matinal
e raptarei tua sede,
tua fome, tua força, teu gozo,
teu uivo vitorioso,
teu juízo final.




Cabala

 
Há a nos unir
fantasiosas lembranças
e a diversa arquitetura
entre grutas e lanças.

Há uma só melodia
toando no insólito ritmo
da ardente libido
do nosso fremir marítimo

E há, não posso negar,
alguma qualquer cabala,
porque quando lhe vejo
eu sempre perco a fala.



Onã


Na parede um quadro
uma janela aberta
para a imaginação
uma tela... ela... tesão.

Tinta, tanta cor
trama tantra yoga
joga o jogo chão
e a luz me afoga.

Segue a cantilena
à pele morena
quando a mão afaga
e o falo fala.



Não vou ver


Não vou ver vir
quem vem em vão
por crer que não
vale criar nem rir
e diz que é triste
a razão e que
o amor não existe
quem insiste em vir
dizer que é vão criar
arriscar de novo
novas rotas outras
tantas alegrias
possíveis tais quais
todas estas festas
nestes  todos dias
quando me vi viver
volvendo cada
íntima fibra do arco
coração corda tensa
tocando quando
me toca pela minha
a tua mão macia
a tua voz
a tua vez
a lua.




Efígie


decifrar sinais          da sua boca           um beijo        
da madrugada       o quase silêncio        sufocado
ler um poema         oculto na bruma   apenas um        
um lume apenas      da madrugada   e nada mais




Noturno

Agora é noite...,
se fosse dia e aqui passasse
uma borboleta amarela
pediria que ela levasse meus desejos
para além de onde
meus olhos riscam horizontes

Agora é noite...,
se fosse dia e o meu corpo
fosse jovem como a luz da manhã,
eu poderia tecer palavras matutinas
nos músculos de potros velozes
e voaria
para além de onde
meus olhos riscam horizontes

Agora é noite
e somente o vento me socorre
e, porque são leves,
consente em levar meus sonhos
para além de onde
meus olhos riscam horizontes.




Na Lata do Poeta
[Para Gilberto Gil]

Se na lata do poeta tudo nada cabe,
nem por isso se lhe dê trégua,
pois  como resultado da refrega,
pode ser que torne a água em vinho,
vindo brindar conosco um novo verso,
aquele que dirá que já é finda
a angústia da viagem da espécie
ao ápice da miséria ambiental,
e que o bom senso enfim impera
onde hoje impera o vil metal,
metáfora do mal, meta do animal
“tão orgulhoso de ser racional”.




2001


Estranho eu, justo eu,
estar aqui neste tempo,
neste dois mil cristão,
estiolado neste interstício;
exangue entre a loucura e o estame,
entre a farsa e a infâmia,
neste espaço, neste susto,
final de século, de milênio,
começo de novo período
de trevas que adivinho
no apocalipse das consciências.

Justo eu
que estive nas cavernas úmidas
hominídeo rude

Justo eu,
que no vale do Nilo sucumbi
ao peso das pedras das pirâmides
para a glória de Amon
e eterno repouso
dos seus filhos ungidos Faraós.

Justo eu,
que testemunhei
quando o anjo do Senhor trucidou
cento e oitenta e cinco mil assírios
poupando da conquista
o Reino de Judá.

Justo eu,
que estive com Moisés
nas hordas do êxodo
exausto e morto
carregando as tábuas
da Lei de Iavé.

Justo eu,
que de Tróia
resgatei a formosa Helena
erigindo a lenda do cavalo oco.

Justo eu,
que vi na Grécia
florescer as filosofias.

Justo eu,
que senti na carne os cravos
que me pregaram na cruz
Jesus.

Justo eu,
que em Roma
assisti nascer, crescer
e ruir o grande império.

Justo eu,
que presenciei o espraiamento
do cristianismo
e o advento do papado
com a primazia do bispo de Roma.

Justo eu,
que de Meca acompanhei Maomé
na Hégira para Yathrib,
para a fundação do Islã.

Justo eu,
que na Europa feudal
lavrei com mãos nuas
as terras do meu nobre
quando a fome a peste
e as guerras dizimavam-nos
cobrando em cadáveres o preço
da ignorância, da superstição,
da sufocante credulidade.

Justo eu,
que conduzi Carlos Magno
à Igreja de S. Pedro
para receber do Papa Leão III
a coroa do Império.

Justo eu,
que estive cinzas
nas fogueiras da inquisição.

Justo eu,
que naveguei os sete mares
e encontrei continentes.

Justo eu,
que com um quipo
contei em Cuzco as vidas
ceifadas pela espanhola
lâmina de Pizarro.

Justo eu,
que chorei no Arraial de Canudos
tinto do sangue absurdo
das crianças sacrificadas
à sanha estúpida.

Justo eu
que segui para Machu Picchu
pelas pênseis pontes
sobre os desfiladeiros dos Andes
e lancei-me ao reino de Hades
nas asas da desesperança.

Justo eu
tenho que agora, ainda,
testemunhar o fim das idades?

Não.
Ainda não me apetecem palavras
que firam meu estranhamento.

Não.
Ainda não quero poemas,
quero uma lágrima,
apenas uma
onde espelhe minha pena.




Conquantas Palavras


Com quantas palavras
se faz um poema?
se conta um segredo?
se perde o juízo?
se entorna o caldo?
se fere um amigo?

Com quantas palavras
[conquanto o silêncio
também fira fundo]
se diz o não dito?
se diz o que calo
se calo o que sinto?




Zen demente


Nada há que me apoquente
estou calmo
como um lago longínquo
no topo gelado do Aconcágua.

Meu coração não tem cicatrizes
nem vivo guardando mágoas.

Assumi que sou demente
só assim pra ser contente
navegando nestas águas.



Ausências


De ausências fiei a teia
onde estou embaraçado
semeando fantasias
nos laços desajustados
que atam meus desalentos
na rotina dos meus dias.

Fiei e tenho fiado
[tecelão de analogias]
em teu nome meus pecados
no meu da espécie o fado
de um noturno itinerário
que só se presta à poesia.




Carnaval


— Vambora?

Não ouvi se ela falou,
nem me dei conta de quando foi,
absorto nos meus pensamentos.

Da mesa ao lado a nota histórica:
”Na Grécia, há cinco mil anos,
para ficar famoso,
colocar seu nome no livro dos tempos,
Eróstrato incendiou o Templo de Diana,
uma das sete maravilhas da terra”.
É de memória que escrevo agora,
podem ter sido outras as palavras
do, decerto, professor de história,
moço ainda de espinhas na cara.

Em guardanapos de papel,
encontrei, depois, no bolso da calça
fragmentos com a minha caligrafia:

Utópico trópico meu equador,
equinocial equação de gozo e drama
de riso e dor, de sonho e razão;
rapsódia melancólica, eólica, louca
rouca, plural.

Estanca na boca o tímido estame
da tinta flor, do vento marinho
que brisa a morna pletora, e chora,
e ri rebrotando a verdura madura
límpida e singular.

Sangra, singrando a pênsil linha,
limítrofe entre o pêndulo e o espaço,
cindido por imperceptíveis pancadas,
rompendo a rota, a golpes de sépticos pés
nus e nós. Em noz moscada.

Enquanto tanto gasto pó palavras
e espanto do meu canto, a luz, o manto,
o conduto, a compreensão; salta o sapo,
salga o sal, e oculto o obvio, por vezo vil,
véu, víbora, tacão.

Loucuras. Sim, dirás, direi, dirão,
e gira a roda da fortuna. Escura
a bruma ronda a noite, o dia, a língua,
a mão. Eu não. Ah! Sim. Ah! são
os santos de ocasião.

Amanhece, anoitece, não sei bem:
o copo é oco, agora peço a nota;
noto que a morena foi embora;
pago e trôpego pingo, com um arroto,
o ponto final.

Não alcanço o sentido disso.

Foi uma bebedeira e tanto:
há coisas de que me lembro
de outras não.
A ela penso que disse
do encanto de estar aqui agora,
de ser este mutante múltiplo
que devora o tempo, as horas.

Protagonizei, [vês?], meu Deus íntimo.
Íntimo, mas falso; outra máscara
das que me permite dissimular
uma personalidade estranha,
senão irremediavelmente doentia.

Agora é a cabeça que dói,
é um amargo na boca
é o corpo cansado.

Um banho frio,
um café quente e forte
e estarei pronto pra outra.

A festa não pode acabar.




Alvo


um,
outro,
talvez três,
voam os pássaros
em formação lógica,
seta que aponta a glória
de   viver   onde   é   verão
e  é  pronto,  o  trigo,  ao  bico,
no   alvo   da   rota   migratória.




Pesam-nos os anos
se com pesar pensamos
que não fizemos
[nem somos]
aquilo com que sonhamos.



Fado
[Para o amigo Iosif Landau]


Na selva de asfalto concreto e aço,
na rotina da luta pela sobrevivência,
não há força além da aparência
nem paz a quem abraça o cansaço.

Pouco a pouco, sem que percebamos,
vestimo-nos com essa vã armadura
e poucos se dão conta da loucura
onde, desde a infância, navegamos.

Assim, perdidas as afeições humanas,
amesquinhamo-nos na individualidade
e iludimo-nos buscando a felicidade
nas celas estreitas das nossas cabanas.

Mas há os que transcendem este fado
no abraço fraterno do amigo resgatado.




Quem se atreverá?


Quem se atreverá a condenar
aquele que amando faz mais breve
o tempo dedicado ao trabalho,
somente pra que dure o pele a pele,
se não ambiciona outro agasalho
e a fortuna não o faz mais leve?

Quem se atreverá a condenar
a criança que [à escola] prefere
brincar com os amigos, jogar bola,
ainda que no exame se ferre,
se não ambiciona mais que esmolas
e se o futuro não lhe será mais leve?

Quem se atreverá a condenar
aquele que se entrega aos prazeres
vivendo sem peias nem medidas
descuidado de todos os deveres
se suas esperanças são perdidas,
se não crê que viverá uma outra vida?




Descaminhos


Não devo demorar-me nas memórias
que guardam as razões e fantasias
de onde meus versos emergem
como meros fragmentos
até então de mim ocultos.

Urge uma fotografia deste instante
quando todas as lembranças são vãs
e a esperança foi um inseto
que passou.



João e Maria
[Pequeno drama cotidiano]


Com duas facadas certeiras,
firmemente desferidas,
João tirou a vida de Maria Aparecida.

Era a mãe dos seus filhos, sua primeira namorada,
não se lhe conhece defeitos,
era mulher de respeito, era por todos amada.

Os vizinhos não relatam nem ligeira desavença,
ela sempre fora mansa,
não há quem se convença que ela não era santa.

De João o que se diz é que é homem pacato,
trabalhador e honesto,
não há quem se convença que é de fato culpado.

Mas ele próprio confessa o ato desatinado,
não sabe por qual motivo,
não estando embriagado, cometeu o assassinato.

Dizem que é coisa do demo,
sinal do fim dos tempos,
coisa tão inusitada,
com duas facadas certeiras
João matar sua amada.




Agora só lhes prometo
metasignos bailarinos
dos anúncios coloridos
e palavras que ao acaso,
nas roletas do cassino,
colho, côo, cozinho
no caldeirão do destino
para montar o mosaico
desarranjado e mofino
que nada diga de fato
exceto que ando perdido.




Dividido entre o homem e o poeta,
um que é bicho          outro profeta,
um que sonha              outro razão,
um que pena                outro tesão,
um íntegro                outro canalha,
sigo a sina            no fio da navalha
e entre eles              ergo a muralha
que Cronos me deu       por punição.

Ao poeta toca as noites,
os sábados, domingos e feriados.

Ao homem, os dias ocupados
na labuta pelo pão.

Ao humano cabe o pecado.

Ao poeta só cabe ilusão.




Ilógica mágica


Eternamente
a ampulheta,
por ilógica mágica ,
inverte o eixo
sempre que o seixo
lota o lado cheio .

É assim
porque os sonhos
têm eterna natureza.

Reza a lenda
que dormia
na poesia
esta certeza.




Meu passado


Talvez pelo torpor da noite fria,
recordo teu sorriso agora distante
e afogo em lágrimas a madrugada.

Onde perdi os sonhos da juventude?
Onde a inocência agora se esconde?
O que resta de sorriso, boca amarga?
De ti, em mim, não sobrou nada?

Embebedo-me
e fumo como um condenado.
Não eram estes teus projetos,
meu passado.

Passaste por mim no fugaz instante
em que fui feliz e tu enfado.




Meus eus


Eu,
meu eu,
meu ego.

Eu,
meu id,
meu outro.

No encontro
do que somos,
nos nós que nos atamos
passeamos páginas
de riso e pranto,
purgamos penas,
rogamos pragas,
pregamo-nos peças,
pecamos.




Porque hoje é sábado


Era vermelho o vestido na vitrine,
vestido caro, de grife esnobe,
e na vitrine meu olhar capturado
no brilho dos seus na tricoline.

Não fosse isso, eu teria me lembrado
O quanto já sofri no crediário
e que sobra mês
no fim do ordenado.

Mas não importa. É sábado.
Você vai estar linda na festa
e, se calhar,
hoje não me faz de besta.




Tanto faz


Tanto faz tanto fez
se vai ou se vem
se fica ou se passa
se o dia é da caça
ou do caçador.

Tanto fez tanto faz
se a bola da vez
não caiu na caçapa
se a piada é sem graça
ou se é negro o humor.

Tanto faz tanto fiz
dramas e farsas
carinho e pirraça
ou nas horas erradas
juras de amor.

Tanto faz tanto fez
se não fui feliz
ou se fui e calei
e agora lhes digo:
tanto quis tanto sou.




Tantos anos tontos


Nestes anos tontos,
tantas vidas vívidas vivi;
tantos fui, tanto fruí
que guapo guardo,
mesmo do amargo,
doces lembranças
e as puas das lanças
onde me feri.




Paráfrase de Petrarca e Camões


A minha alma gentil que parte agora
Tão cedo deste mundo conturbado
Repousa lá no céu e eu assustado
Padeço cá na terra a triste hora.

Bailando entre o poente e a aurora
Não hás de te esquecer deste poeta
Que por teu amor perdeu a meta
E mais daria se te tivesse agora.

Se vires que mereço algum milagre
Roga a Deus, que te me roubou,
Que torne logo em vinho este vinagre

Devolvendo tudo o que me tirou
Ou que transforme esta terra agre
No paraíso para onde te levou.




Colcha de Retalhos


Venho colecionando frases vãs
para uma colcha de retalhos.
São versos que sobraram
de poemas que não escrevi.

Uns dos outros diferem
na métrica, na rima, no escopo.

Alguns me deixam louco,
me acordam no meio da noite,
reclamando que os esqueci.

Quase todos estão velhos,
amarelando os cadernos
que substituí pelo Word® .

Aqueles mais recentes,
são frágeis sobreviventes
na lixeira do Windows® .

Enquanto faço poemas
ouço Bill Gates rindo.




Só Rindo


A mim bastava um sorriso agora
para mandar a tristeza embora;
embora exista o riso de quem chora
e lágrimas em quem ri fora de hora.

Um sorriso agora me basta
que a tristeza pasta.




Modorra


Aqui não é de nevar
mas faz frio quando troveja,
quando vem ventania do mar
ou se ela não quer namorar.

Então só me resta um consolo
em noite assim modorrenta:
fechar a conta no bar
me enfiar na cama e sonhar
que ainda não beiro os cinqüenta
e que cada moça bonita
quer nos meus braços ficar
até o dia raiar
ou quando acabar a tormenta.




Léxico anoréxico

Um léxico anoréxico
foi tudo o que restou
na minha pó poesia.

Um complexo plexo
amplia minha neura:
sou filho de feiticeira
fui feito de fantasia.


Epitáfio


aqui jaz
um ninguém
nascido verbo
morto talvez
por uso vago

oremos por ele
neste calvário




Fim


Tudo está dito
e contradito
exceto
quem sou,
o que penso
e, ou, sinto.







pesquisar nas horas e horas e meias