segunda-feira, setembro 8

a rua x – primeiro capítulo


A rua X sobe, íngreme, do cais às margens do Estige até o Éden.

No número 14 mora a viúva Beauvoir e Armindo, o filho que sobrou. Ela perdeu o marido na primeira guerra. Na segunda o primogênito. Na terceira, temendo perder o caçula, a senhora Beauvoir amputou com um machado o pé esquerdo do filho.

Aquele velho que vocês vêem subindo lentamente, ziguezagueando de um lado para o outro, é Émile. Os vizinhos contam histórias fantasiosas para explicar porque abandonou Paris para vir habitar a casa 89, não obstante o sucesso alcançado no ofício da literatura. Entre outras coisas, diz-se que foi condenado por injuria ao publicar uma carta acusando a justiça de falsificar provas contra um certo judeu condenado por traição à pátria. Émile desce diariamente ao cais para esperar o barco de Caronte como se esperasse alguém que trouxesse notícias da França. Às vezes é possível vê-lo apoiando-se no braço de Thomas, um alemão que também abandonou a literatura quando se exilou no número 73 da rua X.

Não se pense que, exceto a viúva Beauvoir e o filho, a rua X seja habitada apenas por escritores. Há pessoas de todas as profissões, idades, raças, religiões, nacionalidades e índoles. No número 29, por exemplo, moram os descendentes de um rico mercador veneziano: a família Pantalone. O saudoso Senhor Pantalone era apaixonado por provérbios e, até a véspera da morte, cortejava Lúcia uma bela donzela que mora na casa vizinha, a de número 31, que atualmente é noiva de um outro velho, o Senhor Dottore, habitante do número 42, cuja rivalidade não o impedia considerar-se o mais íntimo amigo de Pantalone para quem encomendou um réquiem ao compositor salzburguense, Joannes Chrysostomus Wolfgangus Theophilus, ilustre morador do número 70.

Mas a rua X é democrática e abriga também indivíduos da ralé social: estelionatários, vagabundos, prostitutas..., Além de pessoas comuns, operários, lavradores, soldados, artesãos, pequenos comerciantes, funcionários públicos, escriturários, professores... Mas quem há de querer saber detalhes da vida de pessoas cuja existência se pode relatar em umas poucas linhas: nasceu, cresceu, morreu?

Nem bem formulara a questão, ouvi um “EU” às minhas costas. Não consegui identificar quem pronunciou a sílaba mágica que ecoou na rua X do Estige ao Éden. Mas talvez não seja relevante saber quem. Pode ter sido o jovem funcionário, morador do número 87, que pensou “Este homem é meu irmão!”, quando os colegas de repartição escarneceram de Akaki Akakievitch, o infeliz, simples, triste e humilde escrevente de repartição, cujo casaco novo foi roubado na primeira noite após longas privações pelo sonho de adquiri-lo. 

 

continua? 


2 comentários:

Anônimo disse...

Aguardo o próximo capítulo!

Bjs

Ariadna

Fred Matos disse...

Isso me obriga a escrevê-lo, assim que tiver um tempinho
Obrigado, Ada.
Beijo

pesquisar nas horas e horas e meias