domingo, outubro 5

João Ubaldo Ribeiro - Itaparica beach



Itaparica beach


não sei quem é o autor da ilustração, retirada do site:




Antigamente, em Itaparica, havia Ponta de Areia, Mutá, Gameleira, Baiacu, Ilha dos Porcos e outros lugares de nomes mais ou menos na mesma linha. Mas, outro dia, eu estive lá e tive dificuldade em saber onde encontrar estes lugares todos. Os caminhos eram os mesmos, mas os nomes nem os nativos sabiam mais.

-- Por favor -- disse eu a um nativo, já estranhando o fato de ele estar usando um penteado à la John Travolta -- não é aqui que é o Mutá?

-- Como, amizade? -- perguntou ele, deixando de mascar o chiclete um instante.

-- O Mutá, o Mutá.

-- Esse estou desconhecendo -- disse ele. Isto aqui é Párnaso das Nereidas.

-- Hein?

-- O Párnaso das Nereidas.

-- Bem, então o Mutá deve ser um pouco pra lá.

-- Pra lá, um pouco à direita, fica Las Vallartas Verdes -- explicou ele, com o mesmo sotaque dos comerciais de televisão. No meio, Le Club des Coquilons. E, aqui à esquerda, o Blue’s Sky’s and’s Cloud’s -- respondeu ele, e a gente quase podia ver os apóstrofos no que ele falava.

Desisti de procurar o Mutá. Aliás, já quase tinha desistido até de ir a Itaparica, porque era domingo e a baía estava um pouco congestionada. Para mim deviam instalar uns sinais de tráfego nos cruzamentos mais importante. Mesmo assim o passeio foi ótimo. Comemos moqueca de arraia na escuna, que tinha sido alugada para uns visitantes, gente muito simpática. Estranhei um pouco a moqueca, no entanto.

-- Estou achando esta moqueca meio pálida -- falei ao cozinheiro. -- Algum problema aí?

-- Não, nenhum problema. É moqueca sem azeite-de-dendê.

-- Sem dendê? Que moqueca é essa?

-- Moqueca sem dendê -- explicou ele, com o mesmo ar paciente de quem mostra a um americano como abrir um siri, somente para ver o americano se arrepiar e fazer agh-agh.

-- Pelo menos tem a arraia, não é -- disse eu.

-- Não é arraia. É filé de peixe. A gente pega o filé de peixe congelado, degela um pouquinho, limpa bem com limão, passa no ovo e na farinha de rosca, frita e depois serve com este molhinho de camarão que eu vou preparar.

-- Mas então isso é peixe à milanesa com molho de camarão. Por que não diz logo que é filé de peixe com molho de camarão?

-- Porque eles querem comer moqueca de arraia. Eles têm culpa de não gostarem de moqueca de arraia, moqueca de arraia mesmo? Mas a companhia não vai deixar que eles voltem para casa dizendo que não comeram moqueca de arraia. A gente aí faz um arranjo para eles.

Tudo bem, suponho que são sinais dos tempos e não se pode deter o progresso. Mas, se Itaparica virar Itaparica Beach, vou ver se troco de naturalidade. Não fica bem o sujeito ser apresentado como beacheiro ou bichano. Ou coisa pior.




Vencedor do prêmio Camões 2008, a mais importante homenagem atribuída a autores de língua portuguesa, João Ubaldo Ribeiro, nasceu na ilha de Itaparica, em 23 de janeiro de 1941. Entre seus livros mais famosos estão "Setembro não faz sentido", "Sargento Getúlio", vencedor do Prêmio Jabuti em 1972, "Viva o povo brasileiro", "O Sorriso do lagarto" e "A Casa dos Budas Ditosos".
Esta crônica foi publicada no número 46 da Revista ViverBahia, em fevereiro de 1979, publicação da BAHIATURSA – Empresa de Turismo da Bahia S/A



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