sábado, outubro 4

Violetas - Soraya Mello


Soraya Mello ©

ilustração: Degas - Mulher enxugando os pés

Comemoraria a catarata aos 20 anos se soubesse que ao final de 90 passos a revolta de quem pouco viveu estaria confinada apenas ao pouco brilho do olhar. Só assim, o relógio esquecido no armário com vergonha do pulso manchado pela velhice, e a primeira lágrima concedida à solidão, deixariam de ser lembrados nas fotografias que jazem junto à maquiagem, aos bailes e aos cadáveres que ainda cheiram mal à infância.

Se ama-se uma só vez na vida, por outro lado morre-se a todo instante... em uma ciranda, em um baile, em um asilo... a qualquer hora e em qualquer lugar a morte nasce, dança, casa-se.

 Então, poupe-me das violetas sem cores e do passeio com cheiro de mar!

Para quem amarga a prisão do balanço nos dias, nas noites e madrugadas, basta o banho e o jantar coletivo para lembrar que a vida afogou a velhice na doença e na espera, não mais de visitas...

Se quer guardar alguma lembrança, leve apenas o mal cheiro do lençol e o sorriso, sem dentes que se perderam em um único beijo.

Mania querer encontrar beleza velha em resto de vida...

Apesar dos substantivos encravados na memória e do Olegário Mariano declamado com muito esforço, resta-me apenas uma cadeira, um cajado e um jazigo. No mais, a ilusão conforta apenas a quem a tem.

Comemoraria a morte aos vinte anos para não ter que contar que fui feliz quando puxada pelo braço, concedi a primeira dança ao homem que mais amei: papai!.

Que quando jovem fui cobiçada por sete rapazes e que apesar da pobreza e das pancadas da infância, ao lado dos alunos pintei a vida de adjetivos.

A morte chegou com a dança do parto, quando o primeiro choro de filha casou com o último de mãe, e o silêncio de pai encheu a prematuridade de dor.

Sem peito, bebi leite em pedra e sobrevivi à dor da fivela do cinto encravada nas costas: dor de vida!

A vida matou-me mesmo antes do primeiro sonho, do primeiro beijo e do primeiro filho.

Por tudo isso, os últimos passos ensaiados para a eternidade jamais trocarei pelos primeiros, aos 90, entregues à vida.

Hoje, a vantagem de partir dessa forma: sem dentes, sem cabelos e terminalmente entregue à dor, é saber que do pouco que me resta, menos ainda deixarei para esse mundo que aos vinte anos enterrei com restos de violetas o último suspiro jovem de amor.



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