terça-feira, outubro 28

vito césar


ilustração: Ponte da Boa Vista, Recife
Não sei quem é o autor da foto

 

Pela enésima vez Vito César repetia o mesmo trecho da melodia, insatisfeito com os acordes graves em Lá Maior que acrescentara à música para dar ênfase na guitarra. A idéia lhe surgira na véspera quando atravessava a pé a ponte da Boa Vista para alcançar a rua Nova onde freqüenta regularmente um barzinho que serve um caldinho de feijão digno de figurar nos cardápios mais refinados. Antes de nos fecharmos no estúdio fez-me acompanha-lo no ritual. Severino, o dono da birosca, orgulha-se da freqüência do doutor Vito, um homem sem frescuras que se mistura com o povo simples espremido no balcão, sem distinguir preto de branco, rico de pobre. Mas deixemos de lado coisa que não vem ao caso, exceto pelo fato de que a idéia surgira de fato na véspera, na ponte da Boa Vista, talvez influenciado pelo colorido dos losangos azuis formados pelos trilhos que ladeiam a ponte. Outra hipótese que me ocorre é que aqueles acordes lhe tenham sido sussurrados pelas águas mansas do Capibaribe que àquela hora refletiam os anúncios de néon. A dúvida somente ele pode tirar, mas é irrelevante e não o incomodarei com interrogatórios desnecessários, quando já é suficiente que tenha se dado ao trabalho de esclarecer o exato local e horário do advento daquele complexo jogo sonoro que se me parece perfeito não satisfaz ao criador, indivíduo conhecido também pelo perfeccionismo.

Enquanto ele teimava, experimentando outras sonoridades, a noite invadia a madrugada, meu estômago roncava, e eu já não tinha esperança de encontrar aberto o restaurante do Pina onde planejara comer uma peixada de escabeche com verduras e pirão, que na véspera me deixara maravilhado. Já estava à beira de um ataque de nervos quando fomos tomados pelo breu de um providencial black-out. Tateando, Vito César desligou a chave geral do estúdio e ganhamos a rua. Não fomos ao Pina, aceitei o convite para um périplo por Olinda onde de bar em bar amanhecemos o sábado, manhã de carnaval, onde agora a polifonia da festa contribui para que eu não consiga a devida concentração para concluir com lucidez este relato, além do mais, o garçom já me olha atravessado estranhando o meu grande consumo de guardanapos.

 

 

Fred Matos

17/11/2001.

 

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