terça-feira, outubro 28

sonhado - Vito Cesar Fontana

Vito Cesar Fontana ©


ilustração: Isabel Santamarina - foto de Fred Matos

Descobri meu sonho, embrulhado em folhas de jornais velhos.

Estava lá, meu sonho, amarrotado, impresso de fotos violentas, exclamações de última hora, rodapés de anúncios... Sua senha  definitiva se perdera, sua razão maior, primeira, enlouquecera aos poucos e nele havia uma indecisão sinistra que me pareceu sofrida.

Estava acuado, meu sonho. Tinha  dentes à mostra, modelados pelo tempo, que me pareciam lapidados como se fossem da mandíbula de um cão.

Seus sinais vitais estavam fracos  demais e tentei levá-lo para cama.

Ofereceu resistência, uma resistência pálida. Não desejava sair dali, da escuridão dos jornais esquecidos, da segurança do esquecimento.

Que pode fazer um homem diante do sonho enfraquecido e descrente?

Tentei mimá-lo com uma alegria que fui buscar dentro do peito, uma alegria que demorei a encontrar, depois de galgar as quatro ladeiras do meu coração, encontrando-a perdida no caminho, sentada num degrau solitário. Não me reconheceu de imediato mas me deu sua mão.

Na volta desencontrei meu sonho. Saímos por avenidas, corremos ruas, vasculhamos esquinas... tentávamos apurar os ouvidos para captar seus sinais.

Ao longe, sob a cortina de um céu de dezembro filtrado de lua e  manchado de estrelas humildes, encontramos meu sonho, sentado num banco de praça, de olhos fechados, respirando fundo.

Estava mais vivo, meu sonho, tinha percorrido silêncios noturnos.

Minha alegria abraçou-o, como se abraça alguém que lhe
pertence.

Ficamos eu, meu sonho e minha alegria, ali, sentados, sorrindo e contando histórias.

O dia, como eu supunha, nunca mais amanheceu.


Vito Cesar nasceu em São Paulo em 1953. Foi para o Rio aos 3 anos. Em 1967, foi para o Recife onde se formou em medicina especializando-se em radio-oncologia. Em uma auto-biografia ele diz que: “Nesse meio tempo aprendendo violão sozinho, conhecendo a rapaziada do mal - compositores, músicos, atores, estudantes de jornalismo, insipientes escritores de guardanapo de mesa de bar.

Também me tornei um escritor de guardanapo de mesa de bar. Meus amigos tocavam eu escrevia e depois mostrava e depois colocavam música e eu gostava.

Bem, de todas as meninices e levezas que superei ao longo da vida, apenas não superei essa, que é uma tatuagem na minha alma: escrever. Ser aquilo que escrevo. Escrever e fazer música. Ser música e letra.”

 

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