A miríade de tonalidades de verde e azul do mar de Amaralina mesclando-se em pinceladas impressionistas. O sol a pino, meio dia, sexta-feira. O cheiro acre do azeite de dendê fritando acarajés no tacho de cobre cobrindo o fogareiro de brasa avivada ao abano compassado para não levantar cinzas. O sorriso da boca banguela, que matraca com a comadre mais madura de outro tabuleiro um caso qualquer de amor ou crime. O menino nu, barrigudo, dormindo na esteira estendida no centro do abrigo redondo coberto de palha. Outro na barriga prenhe sob a bata branca rendada, cruzada por colares coloridos de contas plásticas, guias consagradas sobre o tronco largo. Os piolhos sob o torço vermelho desmaiado coçado a ponta de faca, a mesma usada para talhar o abará. À parte, na calçada, mais à praia, o facão afiado, o negro forte, tatuado, ágil, abrindo o coco verde esguichando a água doce, quase morna que não a quis gelada, e o zunzum das abelhas coletando o açúcar do caldo da cana prensada a muque manivela, matéria prima de um mel suspeito, mas doce como a canção de Caetano ecoando no meu cérebro como o som do mar de maré cheia. As ondas escrevendo na areia com espuma o poema concreto e físico do esquecimento, onde antes eram impressas as plantas dos pés descalços da primeira namorada, que não se despia no claro, apesar de não ser casta nem de corpo mal formada, e que não era morena como a da canção que tem o seu nome e outro enredo. Corria uma brisa morna, bem me lembro e lembro ainda do velho safado e sua proposta. Nos pagaria almoço e farra pra assistir uma trepada, coisa rápida. Por mim tudo bem, qualquer grana era bem vinda, e tesão não me faltava, mas Clarice, eu já lhes disse, não se despia na luz por nada. A sua única frescura era manter mistério da íntima arquitetura da úmida caverna que se aos meus olhos negava, me oferecia dócil, no breu das madrugadas, à língua, ao tato, ao falo, e era perfeita a danada. Perfeita na geometria. Perfeita no molejo da anca ritmada. Nada se confunde em minha mente na memória daqueles dias, idos de 70, idílio de sempre. Viéramos de carona na boléia de um caminhão que o motorista, bêbedo, tocava em ziguezague, mas sem receio cantávamos e ríamos porque nosso horizonte era o próximo instante e o futuro esta desilusão na qual só me restam lembranças, lágrimas, mais nada.
Fred Matos
Conto publicado em “Melhor que a encomenda” – Coleção Selo Letras da Bahia – FUNCEB, EGBA – 2006.
13 comentários:
Belíssimo blog. Vim até este post guiada também pelos acordes de Clarice. Certamente voltarei outras vezes.
doce flagrante belo instante
poetica esperança
acontece as vezes
ou não muitas vezes
importante é ter vivido
o momento
a ela abraçado
de todo jeito e maneira
Agradeço a visita, leitura e generoso comentário, Ana Cecília. Espero que sim, que volte sempre.
Beijos
Os tempos foram bem vividos, Iosif. Aqueles tempos, fim dos anos 60, início dos 70, apesar de que neste conto, exceto o cenário, tudo é ficção.
Abração
mar, céu azul... igual minha vida, nossa, semelhança absurda... rsss
fiquei sonhando...
Que coisa mais linda!
Texto com cor, cheiro e até som.
Gostei da velocidade, da urgência.
Belo desfecho.
Eu sempre quis viver os 70, vai entender..rs
Também voltarei aqui mais vezes!
Ah, e obrigada por visitar meu humilde mundinho lilás, volte quando quiser!
uau, lindo! bela sensação em brasa e brisa.
gostei. :)
adicionarei seu blog no vaga-lumens, ouquei?
bacci
Deh,
Sonhemos, quando sonhar é só o que nos resta, mas creio que você está brincando, porque céu e mar podem ser substituídos por exemplo por céu e montanhas. Beleza, pode ser que o tempo não esteja pra ar livre, que o céu esteja cinzento, mas você pode ler um livro (sim, sei: Tchekhov).
Ah! Obrigado por me visitar, pela leitura e comentário.
Beijos.
Bruna,
Foram anos muito loucos, anos incríveis, os últimos da década de 60 e os primeiros da de 70. Eu me considero um cara de muita sorte por ter vivido, participado e sobrevivido àqueles anos que foram, na minha opinião, decisivos para vivermos hoje em um mundo menos repressivo. Se bem que parece haver uma coisa cíclica que faz as gerações alternarem-se entre épocas de maior e menor liberalismo. Isso significa que a geração dos meus filhos é mais conservadora que a minha e etc e tal. Pode ser que seja besteira isso que eu falei, mas acho que não.
Obrigado pela visita, leitura e comentário.
Beijos.
Camila,
Para mim é uma honra um link no seu blog. O seu já estava linkado aqui. Obrigado pela brasa, brisa e comentário.
Beijos
Andréia,
Fico contente por você gostar.
Obrigado pela visita, leitura e comentário.
Beijos
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