Soraya não fazia nada, absolutamente nada, antes de ler o horóscopo. Exceto por isto o jornal só servia para forrar a caixa de madeira onde os gatos faziam as necessidades, "mais higiênico que areia", ela dizia, "pela impossibilidade de trocar todos os dias".
Leão |
22/7 a 22/8 |
Não espere demais dos amigos nem se envolva em empreendimentos utópicos e irrealizáveis. O ideal é você concen- trar a atenção naquilo que é de fato via- vel. Dica: não bloqueie a livre expressão dos sentimentos nem deixe que os ami- gos interfiram ou dêem palpites demais em sua vida sentimental. |
Nenhum problema, você pode pensar. Certo, nenhum problema desde que ela, como fazem outras tantas pessoas que têm essa mania, não encasquetasse com os presságios e tocasse a vida normalmente. Mas não Soraya. Se o horóscopo dissesse para ficar em casa ela desmarcava todos os compromissos. Se dissesse que era um dia propício para viajar ela jogava a mochila nas costas, tocava para a rodoviária e pegava um ônibus pra qualquer lugar de onde pudesse retornar no mesmo dia, porque, talvez, demorasse a haver um novo dia propício para voltar. Se dissesse que era dia bom para fazer novos relacionamentos não se lhe reconheceria a sua notória timidez. Se pressagiasse sorte jogava no bicho todas as economias.
Naquele dia. O dia em que foi publicado aquele horóscopo, ela resolveu desbloquear a livre expressão dos seus sentimentos e me confidenciou que sempre desejou ardentemente que dividíssemos a cama com uma outra mulher. Um “ménage à trois” foi a expressão que usou. Eu fiz uma cara de espanto, levei dois ou três minutos pra responder, porque não queria que ela pensasse que eu adorara a idéia, e disse sim, que eu topava, mas somente, fiz questão de ressaltar, porque ela queria, já que eu só tinha olhos para ela. Não custa nada dizer à amada aquilo o que quer ouvir, uma mentirinha benfazeja. Fui trabalhar e embora aquela conversa não tenha saído da minha cabeça não a aprofundei conjeturando oportunidades e parceiras porque tive um dia muito atarefado no escritório.
Não fui ao happy hour. Fui direto pra casa no final do expediente, mas não por causa da promessa do ménage que, até então, estava apenas no escaninho das possibilidades. Não me ocorrera que o horóscopo venceria à meia-noite e que, sendo assim, Soraya moveria céus e terra para cumprir os desígnios astrais. E moveu.
O sândalo do incenso indiano vazava por todas as frestas da casa, mas isto não era novidade nem indício de coisa alguma, como novidade também não seria se eu vagasse na bruma perfumada recolhendo e apagando alguns dos bastões para não me sentir sufocado. Era o que faria se ao abrir a porta não me tivesse deparado com uma negra lindíssima servindo-se de uma dose de uísque. Se eu estivesse bêbado poderia pensar ter entrado em casa errada, tal a sua sem cerimônia.
- Boa noite. Você é o Maurício, não é?. Claro, só pode ser. Eu sou a Tainá.
Ela me estendeu a dose de uísque que acabara de preparar e sorriu trinta e duas pérolas brilhantes. Negaceei com a mão, ela franziu a testa, girou os cubos de gelo com o indicador e bebeu um pequeno gole.
- A Soraya?
- Está lá em cima.
- Com licença, fique à vontade. Eu disse por dizer e subi.
- Boa noite, amor, quem é aquela lá em embaixo?
- A Tainá. Gostou dela?
- Bonita. Mas quem é?
- Uma amiga.
- Amiga de onde?
- Foi minha colega na faculdade, fazia tempo que não nos víamos.
- E hoje você a reencontrou por acaso?
- Nada de acaso, Maurício. Não me diga que você esqueceu. Eu estava pensando em quem seria uma boa companhia para esta noite e me lembrei dela. Vou ter que lhe confessar que antes de lhe conhecer eu e ela quase tivemos um caso, mas na hora H não rolou nada... porque eu tinha meus preconceitos.
- Por que ela é negra?
- Claro que não, você sabe que não sou racista. Antes de lhe conhecer eu tive namorados negros. Lembra o Gilson? Eu lhe apresentei ele em uma festa. Eu tive preconceito porque apesar de ter tido tesão por ela eu não aceitava aquilo como uma coisa natural.
- Agora acha?
- Eu não sei, mas acho que com nós três é diferente. Eu ainda tinha o telefone dela, liguei, ela topou.
- Sem sequer me conhecer?
- Confiou nas informações que eu dei sobre você. Vá tomar um banho depois desça pra um drinque.
No banho eu já estava excitadíssimo imaginando a realização de uma fantasia que jamais ousaria propor a Soraya e que aconteceria por iniciativa dela. O que não me passou pela cabeça foi o day after, as conseqüências.
Escolhi usar um roupão branco, de tecido leve. Perfumei-me o corpo inteiro e desci.
Precisei de dois uísques pra descontrair. Soraya e Tainá entretidas com reminiscências que me eram estranhas, eu ouvindo-as atento, louco para que surgisse um assunto que me permitisse participar da conversa. Creio que percebendo o meu desconforto, Tainá sugeriu que dançássemos. Soraya escolheu um CD de música árabe, reduziu a iluminação da sala à luz de um abajur e propôs que as duas fizessem um número de dança do ventre em minha homenagem. Minha libido que já estava a mil atingiu o paroxismo quando a dança virou strip-tease e as duas, completamente nuas, começaram a se roçar, enroscar, beijar. Tirei o roupão e entrei na dança. No primeiro momento a lascívia não me deixou perceber que eu estava sobrando, que elas se completavam, se bastavam. Isto só me ocorreu mais tarde, no quarto. Foi a última vez que as vi, mas a minha retina ainda guarda, saudoso, a imagem das rainhas de ébano e de marfim.
2 comentários:
Excelente equilíbrio entre erótico, sensual e lírico. Então na prosa também consegue escrever com esse tempero que captura o leitor! Gostei bastante! Aliás, talvez não saiba, ou não goste que lhe diga assim, mas seus textos são lições para quem quer aprender a escrever com simplicidade e beleza (isto sim falo com conhecimento de causa, porque gostaria muito de saber escrever assim...). Obrigada, novamente!
Olga,
Já me foi dito que escrevo como um clássico: correto demais. Acontece que quem me disse isso não fazia um elogio, criticava-me, como quem dissesse que era necessário um texto caótico se eu quisesse fazer carreira na literatura. Obviamente que eu, como qualquer pessoa que gosta de escrever, ambiciono (cada dia menos, é verdade) um espaço na literatura, e até me esforcei, na medida do meu senso de ridículo, a produzir contos com uma linguagem não tão "clássica", mas não é fácil, talvez porque na minha época de leituras (hoje não leio muito, não tanto quanto na adolescência), eu lia Balzac, Flaubert, Dostoievsky, Thomas Mann, Tolstoi, Machado de Assis... Somente depois de adulto foi que comecei a ler autores contemporâneos: Vargas Llosa, Saul Bellow, Amós Oz... nada muito revolucionário. Só recentemente quando passei uns dias na casa do meu primogênito foi que li Jack Kerouac e entendi o que me disseram quanto a não ser excessivamente clássico, mas não daria certo, aquela maneira desleixada de Kerouac é, provavelmente, natural nele, em mim seria artificial.
Mas a minha resposta está ficando desnecessariamente imensa, pois o fundamental é agradecer a sua visita, leitura, comentário e a oportunidade que me deu de prestar este esclarecimento que parecerá a alguns, e talvez seja mesmo, uma demonstração de desmesurada auto-estima.
Beijos.
Postar um comentário