quarta-feira, dezembro 10

ultra aequinoxialem non peccari



ilustração: Jan Saudek




Manuel irrompeu no quarto. Acendeu a luz e berrou:

- Vamos. Acorde. Levante-se, biltre, preguiçoso: é hora de irmos. Tomaremos o caminho da praia. Esta hora, noite sem lua, longe das luzes desta cidade estúpida de ruas infectas infestadas de putas e burocratas, poderemos nos guiar pelas constelações, ouvir límpida a sinfonia marinha sem a concorrência das buzinas, dos barulhos urbanos, sentir o odor fresco da maresia livre das fumaças dieseis da civilização. Vamos. Acorde. Levante-se. Logo o sol estará nascendo e poderemos ver os barcos de pesca retornando com os porões entupidos de vermelhos, sororocas, arraias, cações, badejos, lagostas, camarões pistolas. Aqueles sim são homens de verdade, se aventuram na imensidão escura úmida salgada, enfrentam monstros, seduzem sereias...

- É cedo ainda. Augusto resmungou, virou-se para o outro lado, puxou o cobertor sobre a cabeça ocultando-se, protegendo-se do facho da lâmpada incandescente que pendia nua sobre a cama.

- Mas que raio de toupeira você me está saindo. Vamos. Stand-up. Enquanto você ronca a vida escoa como água pelo voraz bueiro do tempo.

- Puta que o pariu, você é um chato. Já vou me levantar. Sua excelência há de permitir que eu coma um pão, tome um café, dê uma cagada e escove os dentes, pois não?

- Pois sim. Pode também, se quiser, tomar um banho, fazer a barba, pentear os cabelos, manipular a minhoca sonolenta, mas seja rápido, temos pouco tempo até a alvorada e quero ver os barcos chegando, rebocando estrelas.

- Você pirou de vez, Manuel? Onde já se viu barco em São Paulo? Estamos a quase cem quilômetros do mar.

- Homem sem fé, ateu miserável, cria do demônio materialista, tudo se resume em acreditar. Se eu digo que há mar em São Paulo, mar há de haver, mar se fará e porto onde os pescadores ancorem suas marinaves e mulheres que os esperem de braços abertos e sexos úmidos por libidinosos desejos.

Saiu do quarto do amigo grasnando a plenos pulmões uma melodia de uma ária italiana à qual adaptara uma letra sem pé nem cabeça:

Adeus putada paulista

a noite ainda é criança

vou pra balada baiana

a humanidade fede e se fode

quero leite de flores novas

das mulheres, boas trepadas.

A buzina da porta soou. Manuel atendeu empunhando a frigideira quente com ovos fritos no bacon que acabara de tirar do fogo. Era um vizinho pedindo silêncio, ameaçando chamar a polícia.

- Chame sim, coroa, mas peça que venham rápido porque já estamos de saída. O senhor não quer vir conosco despertar a alvorada? Tire esse pijama ridículo, titio, revolte-se contra a mediocridade desta vida onde o senhor não é mais do que uma minúscula peça da engrenagem social criada para moer-lhe as carnes, os ossos, nutrir-se do seu sangue, do seu suor, do seu esperma, da sua bílis. Nunca é tarde para acordar para a vida. Vamos, se vista a rigor para ver chegar os verdadeiros homens: os pescadores dos oceânicos mistérios. Venha conosco, Matusalém, cante, grite, liberte-se: Adeus putada paulista/ a noite ainda é criança...

- Por que tanto barulho, tanta excitação, meu rapaz?

- Um homem livre, um homem de verdade não precisa dar explicações, exceto à sua própria alma, mas como fui com a sua cara e acho que o amigo não é um caso inteiramente perdido e pode se quiser seguir conosco, eu explico: foda-se a civilização, fodam-se as convenções sociais. Eu e o meu amigo Augusto cansamos de tropeçar nos fétidos escombros da cultura ocidental, queimamos os livros, todos os livros. Foda-se Freud, foda-se Marx, foda-se Keynes, foda-se Hobbes, Hume, Descartes. Foda-se Santo Agostinho. Mandamos o reitor tomar no seu magnífico cu, eis o porquê. Agora estamos indo pra Bahia, pra Arembepe, trepar, trepar, trepar até o pau virar graveto, e isto sem pagar, tio, sem gastar um puto. Trepar só com meninas de primeira, princesinhas enlouquecidas por uma pica e por uma poção mágica de muita ilusão. Queremos todas as taras, todos os gozos, todos os vícios. Queremos não medir conseqüências, não dar explicações, não sofrer censuras nem de arrependimentos. Ultra aequinoxialem non peccari, sacou? Na Bahia não há pecado, capiste? Eis o seu transcendental porquê.

- Por favor, moço, há crianças dormindo, velhos doentes, trabalhadores precisando descansar. Por favor, se acalme, não grite. Vejo que o moço é pessoa decente, instruída, não vou chamar a polícia, mas, por favor, se acalme.

Apelo proferido, o vizinho abaixou o olhar dissimulando a inveja causada por tamanha vitalidade, maneou a cabeça como a querendo livrar de pensamentos extemporâneos que ali tentavam se instalar. Voltou ao seu apartamento e informou à esposa:

- É um rapaz. Deve estar bêbedo ou drogado, mas é muito simpático e instruído.

- Por que você não fez ele calar a boca? Ele continua fazendo barulho, cantando obscenidades.

- Ele já está de saída, vamos pra cama.

- Frouxo. Você é um frouxo, está com medo de um fedelho de merda.

- O fedelho tem o dobro do meu tamanho, idiota, e menos da metade da minha idade.

- Vou telefonar para a polícia.

- Vai porra nenhuma, vai é voltar pra cama e agora. Impôs-se.

A mulher intuiu que alguma coisa dita pelo vizinho barulhento havia produzido efeito transformador no seu homem. Voltou para a cama sem protestar, mas com a curiosidade espicaçada. Na cama acarinhou-o e perguntou:

- O que ele lhe disse?

- Nada. Não é de sua conta. Durma.

Lado a lado, de costas um para o outro, marido e mulher não dormiram mais naquela madrugada, ele oprimido pela constatação de que se deixara tornar um bosta n’água, alguém cuja vida foi vã e infeliz, mas decidido a doravante tomar as rédeas, se não as da sua vida, as da sua casa. Ela atônita, porque fora aquela a primeira vez que o seu homem levantara-lhe a voz em mais de vinte anos de casamento e aquilo mexeu com a sua libido.


Fred Matos.


14 comentários:

Dauri Batisti disse...

Bonito conto, bonito modo de falar dos afetos que trocamos, de como nos afetamos.
Abraço.

Fred Matos disse...

Obrigado, Dauri. Deixa-me contente a sua presença, leitura e comentário.
Grande abraço

hfm disse...

Nem sei o que lhe dizer... escrito com as tripas, com força e com a poética que está sempre dentro de si.

Anônimo disse...

Fred, beleza pura,esse grito de Ipiranga baiano é o maior barato, e meu amigo, eu já dei esse berro e não me arrependo de nada e que ninguém nos ouça foi bom pra caralho, muita mulher, muita "safanagem" e haja malandragem pra driblar o nojento "in statu quo ante" e se tem uma cidade nojenta Sampa é a maior delas, como dizia um amigo meu, "prefiro ser sorveteiro em Ipanema e não ter bom salario em São Paulo" e assim, meu amigo, viva o mar, viva a praia e as mulheres de bunda de fora
abraço

alineaimee disse...

Bonito texto, bem escrito e articulado. Prende a atenção.

Fred Matos disse...

Obrigado, Helena, você sempre gentil.
Beijos

Fred Matos disse...

Livre da vesícula, amigo Iosif?
Bom tê-lo de volta.
Obrigado pela leitura e comentário.
Abração

Fred Matos disse...

Obrigado, Aline.
Fico muito contente com a sua visita, leitura e comentário.
Beijos

Bruna Mitrano disse...

Pelas deusas pagãs que dançam na lua! Maravilhoso!Vou-me embora para a Bahia...
Tocou lá no fígado(cultura grega, esse lance de "coração" é muito brega..rs).
Seus textos são muito intensos. Forma e conteúdo extremamente bem elaborados. Eu que tenho a obrigação de ser sua fã!

Fred Matos disse...

Qual nada, Bruna. Seus textos, sim, têm a intensidade que você gentilmente aponta nos meus. Agradeço-lhe a visita, leitura, comentário e amizade.
Beijos.

Alice Cezar disse...

Magnífico! Adorei a vitalidade, senti a falta de pudor, ouvi os gritos! Magnífico!

Fred Matos disse...

Obrigado, Alice.
Fiquei contente por receber a sua visita, leitura e comentário.
Volte sempre.

Anônimo disse...

Genial, Fred!
Visualizei planos- sequência, movimentos de câmera e tudo o mais!

Beijo

Fred Matos disse...

Então você acha que dá um filme, Camila?
Bem que eu não conheço nenhum filme que fale sobre o fim dos anos 60, início dos 70, fazendo um paralelo entre a turma que enveredou pela luta armada ou mesmo pela atuação política em partidos clandestinos e, por outro lado, a turma que "desbundou", caiu na estrada, virou hippie.
Este conto foi concebido para ser uma capítulo de um romance que fala disso.
Obrigado pela leitura e comentário.
Beijos

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