terça-feira, janeiro 13

quem conta um conto


Continuando as traduções dos contos de Julio Cortázar:



Telefonema, Delia.

Julio Cortázar


Tradução: Fred Matos
a partir do texto publicado nas páginas 43 a 48 de “Cuentos Completos/1” Decimoquinta reimprésión: junio de 2007, Editora Alfaguara – Buenos Aires – AR 


As mãos de Delia doíam. Como vidro moído, a espuma do sabão se entranhava nas gretas de sua pele, pondo nos nervos uma dor áspera despedaçando-os de repente com lancinantes aguilhoadas. Delia chorava sem dissimulação, abrindo-se à dor como a um abraço necessário. Não chorava porque uma secreta energia a submetia facilmente ao soluço; a dor do sabão não era razão suficiente, depois de todo o tempo que vivera chorando por Sonny, chorando pela ausência de Sonny. Haviam sido derramadas, sem a única coisa que para ela merecia o dom das suas lágrimas. Além disso Babe estava ali, em seu berço de ferro pago a prestações. Ali, como sempre, estava Babe e a ausência de Sonny. Babe em seu berço ou rastejando sobre o carpete desgastado; e a ausência de Sonny, presente em todos os lugares como são as ausências.
A bacia, sacudida no suporte pelo ritmo de esfregar, se agregou à percussão de um blues cantado pela mesma moça de pele escura que Delia admirava nas revistas de rádio. Preferia sempre ouvir os cantores de blues: das dezenove e quinze - a rádio, entre música e música, anunciava a hora com um "hi, hi" de rato assustado - até sete e meia. Delia não pensava nunca: "às dezenove e trinta"; preferia a velha nomenclatura familiar, tal como proclamava o relógio de parede, de pêndulo fatigado que Babe observava agora com um cômico balanço de sua cabecinha insegura. Delia preferia olhar continuamente o relógio a atender o "hi, hi" da rádio; embora lhe entristeça associar o tempo à ausência de Sonny, à maldade de Sonny, seu abandono, Babe, e o desejo de chorar, e como a senhora Morris havia dito que a conta da despesa deveria ser paga imediatamente, e que era linda a sua média cor de avelã.
No início, sem saber por que razão, Delia se descobriu no ato de olhar furtivamente uma fotografia de Sonny, que pendia ao lado da prateleira do telefone. Pensou: “Ninguém ligou hoje”. Apenas ela compreendia a razão de continuar pagando mensalmente o telefone. Ninguém chamava este número desde que Sonny se foi. Os amigos, porque Sonny tinha muitos amigos, não ignoravam que ele era agora um estranho para Delia, para Babe, para o pequeno apartamento onde as coisas se amontoam no pequeno espaço de dois quartos. Somente Steve Sullivan chamava às vezes e falava com Delia; falava para dizer que se alegrava muito de sabê-la com boa saúde, e que ela acreditasse que o ocorrido entre ela e Sonny nunca seria motivo para ele deixar de telefonar perguntando por sua boa saúde e pelos dentinhos de Babe. Somente Steven Sullivan; e desde esse dia o telefone não havia tocado nem uma vez; nem mesmo por causa de um número errado.
Era sete e vinte. Delia escutou o “hi, hi”, misturado com anúncios de dentifrício e cigarros mentolados. Se inteirou também que o gabinete Daladier atravessava momentos de perigo. Depois voltou a cantora de blues e Babe, que mostrava propensão a chorar, fez um gracioso gesto de alegria como se aquela voz morena e grossa fosse algum doce que ele gostava. Delia correu para despejar a água com sabão e secar as mãos, queixando-se de dor ao esfregar a toalha na carne ferida.
Mas não iria chorar. Só por Sonny ela podia chorar. Em voz alta, dirigindo-se a babe, que lhe sorria do berço bagunçado, buscou palavras que justificassem um soluço, um gesto de dor.
- Se ele pudesse entender o mal que nos fez, Babe... Se tivesse alma, se fosse capaz de pensar por um segundo no que deixou para trás quando fechou a porta com um impulso de raiva... Dois anos, Babe, dois anos... e nada sabemos dele. Nem uma carta, nem um cheque... nem sequer um cheque pra você, para roupa e sapatinhos... Você já não se lembra do dia do seu aniversário, não é? Foi no mês passado, e eu fiquei ao lado do telefone, com você nos braços, esperando ele chamar, que ele dissesse somente: “Olá, felicidades!”, ou que lhe enviasse um presente, nada mais que um pequeno presente, um coelhinho ou uma moeda de ouro...
Então, as lágrimas que banham suas bochechas lhe parecem legítimas porque as derrama pensando em Sonny. E foi neste momento que o telefone tocou, justamente quando soava no rádio o moroso e estrídulo anunciando as sete e vinte e dois.
- Chama - disse Delia, olhando Babe como se a criança pudesse compreender. Se aproximou do telefone, um pouco insegura pensando que poderia ser a Sra. Morris exigindo o pagamento. Sentou-se no tamborete. Não demonstrou pressa, apesar da insistência da campainha. Disse:
- Olá
Logo ouviu a resposta.
- Sim. Quem?
Claro que ela sabia, e por isso lhe pareceu que a sala girava, que o ponteiro de minutos do relógio se convertera em uma hélice furiosa.
- Quem fala é Sonny, Delia... Sonny.
- Ah, Soony.
- Vais desligar?
- Sim, Sonny, disse ela, lentamente.
- Delia, tenho que falar contigo.
- Sim, Sonny.
- Tenho muitas coisas para dizer-te, Delia.
- Pois bem, Sonny.
- Estás... estás zangada?
- Não posso estar zangada. Estou triste.
- Sou um desconhecido pra ti... um estranho, agora?
- Não me pergunte isso. Não quero que me pergunte isso.
- É que me dói, Delia.
- Ah! te doe
- Por Deus, não fales assim, com este tom...
- ...
- Oi
- Oi. Eu pensei...
- Delia...
- Sim, Sonny.
- Posso te perguntar uma coisa?
Ela observou algo estranho na voz de Sonny. Claro que podia ter se esquecido de detalhes da voz de Sonny. Sem formular a pergunta, sabia que ela estava pensando que ele chamava desde uma prisão, ou de um bar... Havia silêncio atrás de sua voz; e quando Sonny calava, tudo era silêncio, um silêncio noturno.
-... uma pergunta apenas, Delia.
Babe, desde o berço, olhou a sua mãe inclinando a cabecinha com um gesto de curiosidade. Não mostrava impaciência nem vontade de irromper em pranto. O rádio, no outro extremo da sala, acusava outra vez a hora: “hi,hi”, às sete e vinte e cinco. E Delia não havia ainda posto para aquecer o leite para Babe, e não havia pendurado a roupa recém-lavada. 
- Delia... quero saber se me perdoas. 
- Não, Sonny, não te perdôo.
- Delia...
- Sim, Sonny.
- Não me perdoas?
- Não, Sonny, o perdão não vale nada agora... Se perdoa a quem se ama ainda um pouco... e é por Babe, por Babe que não te perdôo.
- Por Babe, Delia? Acha-me capaz de tê-lo esquecido?
- Não sei, Sonny. Porém não te deixarei voltar nunca para o seu lado porque agora é somente meu filho, somente meu filho. Nunca deixarei.
- Isso não importa agora, Delia - disse a voz de Sonny, e Delia sentiu outra vez, porém com mais força, que na voz de Sonny faltava (ou sobrava?) algo. 
- De onde me ligas?
- Também não é importante - disse a voz de Sonny como se apenas para contestar-se. 
- Mas é que...
- Deixemos isso, Delia
- Bem, Sonny.
(Às sete e vinte e sete).
- Delia... imagine que eu me vá...
- Você, ir-se? E porquê?
- Pode acontecer, Delia... Tantas coisas acontecem que... Compreenda, compreenda... Ir-me assim, sem teu perdão... ir-me assim, Delia, sem nada... nu... nu e sozinho!
(A voz, tão estranha. A voz de Sonny, como se não fosse a voz de Sonny, mas era a voz de Sonny)
 - Tão sem nada, Delia... Só e nu, indo-me assim... sem outra coisa que a minha culpa... Sem o teu perdão, sem teu perdão, Delia!
- Por que falas assim, Sonny?
- Porque não sei... Estou tão só, tão privado de carinho, tão estranho
- Mas...
Como através de uma névoa, Delia olhou fixamente à sua frente, em direção ao relógio. Às sete e vinte e nove; o ponteiro do relógio coincidia com a forte linha mais espessa que precede o golpe de meia hora.   
- Delia...Delia...!
- De onde falas...? - ela gritou, inclinando-se sobre o telefone, começando a sentir medo, medo e amor; e sede, muita sede, e querendo pentear com os dedos o escuro cabelo de Sonny, e beijá-lo na boca - De onde falas?
-...
- De onde falas, Sonny?
-...
- Sonny...!
-...
- Alô, alô...! Sonny!
- Teu perdão, Délia...
Amor, amor, amor. Perdão, que disparate agora.
- Sonny... Sonny, venha...! Venha, te espero! Venha...!
(“Deus. Deus...”)
-...
- Sonny! Sonny!!
-...
Nada.
Eram sete e trinta. O relógio o assinalava. E o rádio: “hi hi”. O relógio, o rádio e Babe, que sentia fome e olhava a mãe assombrado do atraso.



Chorar, chorar. Deixar-se ir corrente abaixo chorando, ao lado de uma criança gravemente silenciosa, como se compreendesse que ante um pranto como esse tudo antes era uma imitação. Do rádio vinha um piano dulcíssimo, de acordes líquidos, e então Babe foi caindo no sono com a cabeça apoiada no antebraço da mãe. A sala era um grande ouvido atento, e os soluços de Delia ascendiam pelos espirais das coisas, se demorando, ofegando, antes de perderem-se nas galerias interiores do silêncio.   
A campainha. Um toque seco. Alguém tossia, junto da porta.
- Steve!
- Sou eu, Delia - disse Steve Sullivan -. Passava, e ...
Houve uma longa pausa.
- Steve... vem de parte de...?
- Não, Delia.
Steve estava triste, e Delia fez um gesto maquinal convidando-o a entrar. Notou que ele não andava com o passo seguro de antes, quando vinha em busca de Sonny ou para jantar com eles.
- Sente-se, Steve.
- Não, não... eu vou embora logo. Delia, você não sabe nada de...
- Não, nada...
- E, claro, você não quer a...
- Não, não o quero, Steve. E no entanto...
- Trago uma notícia, Delia.
- A senhora Morris...?
- Trata-se de Sonny.
- De Sonny? Está preso?
- Não, Delia.
Delia se deixou cair no tamborete. Sua mão tocou o telefone frio.
- Ah...! Pensei que poderia ter-me falado da prisão...
- Ele falou com você?
- Sim, Steve. Queria pedir-me perdão.
- Sonny? Sonny lhe pediu perdão pelo telefone?
- Sim, Steve. E eu não o perdoei. Nem Babe nem eu podíamos perdoá-lo.
- Oh, Delia!
- Não podíamos, Steve. Mas depois... não me olhe assim... depois chorei como uma idiota... veja meus olhos... e teria... mas você disse que era uma notícia... uma noticia de Sonny...
- Delia...
- Eu sei, eu sei... não me diga; está roubando novamente, não é verdade? Está preso e me ligou da prisão... Steve... agora sim quero saber!
Steve parecia atônito. Olhou para todos os lados, como buscando um ponto de apoio.
- Quando ele telefonou, Delia?
- Faz pouco tempo, às sete... às sete e vinte, agora me lembro bem. Falamos até as sete e meia.
- Mas, Delia, não pode ser.
- Por que não? Queria que eu o perdoasse, Steve, e quando mal cortou a chamada compreendi que estava verdadeiramente sozinho, desesperado... E então era tarde, embora gritasse e gritasse ao telefone... era tarde. Falava da prisão, não é verdade?
 - Delia...- Steve tinha agora o rosto branco e impessoal e seus dedos se crispavam na aba do chapéu que manuseava -. Por Deus, Delia...
- Que foi, Steve...?
- Delia, não pode ser... não pode ser...! Sonny não pode ter chamado meia hora atrás!
- Por que não? - ela disse, podo-se de pé em um só impulso de horror.
- Porque Sonny morreu às cinco, Delia. Mataram-no com um tiro, na rua.
Do berço chegava a rítmica respiração de Babe, coincidindo com o vai-vem do pêndulo. Já não tocava o pianista da rádio; a voz do locutor, cerimoniosa, elogiou eloqüentemente um novo modelo de automóvel: moderno, econômico, extremamente veloz.
  

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