terça-feira, março 10

melhor que a encomenda


não se quem é o autor da foto


Poucos dias após a nossa lua-de-mel, eu assumi a comarca do recém criado município Ari Barroso, uma justa homenagem ao ilustre compositor que cantou a Baixa dos Sapateiros, um tradicional logradouro comercial de Salvador, como se baiano fora. Não sei se é verdade, mas me contaram que originariamente cogitou-se homenagear Dorival Caymmi, mas que o baiano ilustre, a quem a nossa música tanto deve, fez saber que, estando vivo, consideraria aquilo uma ofensa, um prematuro atestado de óbito.

Para quem não conhece, é útil esclarecer que a cidade de Ari Barroso está situada no litoral norte do Estado da Bahia, próxima à foz do Rio Itapicuru. Como na época não havia sido construída a estrada do coco, o acesso para a sede da comarca era quase uma aventura. Normalmente uma cidadezinha como aquela não seria sede de município e muito menos de comarca. Acontece que é a terra natal de um influente político que empenhara todo o seu prestígio junto aos governos estadual e federal, e os preciosos votos do seu curral eleitoral, para a concretização do seu sonho emancipacionista. Só foi vencido, se é verdade o que o povo diz, na intenção de dar ao município o nome do finado pai, um pescador analfabeto como tantos outros e cuja grande contribuição ao Estado e à Nação fora a paternidade do prócer governista.

É de praxe que aos novos magistrados sejam entregues as menores comarcas. Além de justo, em qualquer acepção que tem o vocábulo, isso proporciona o aprendizado prático, já que teoricamente os juizes deparam-se, nas pequenas comarcas, com toda espécie de situações que mais tarde irão encontrar nas maiores, com a conveniência de que nas pequenas as coisas são resolvidas com maior facilidade, pois todos se conhecem e, não havendo imprensa, é menor a pressão da opinião pública.

O caso mais complicado que tive para julgar foi uma disputa entre vizinhos, um que criava galinhas e outro que tinha em casa um cachorro feroz. Uma galinha passou a cerca que separava os quintais e foi morta pelo cão. O dono da galinha reclamava indenização. O dono do cão negava-se a isso argumentando que o dono da galinha comera-a depois de morta, e que, portanto não houvera prejuízo. Não acrescentou, como poderia ter feito, que o cão agiu em legítima defesa da propriedade que houvera sido invadida pela ave. O dono da galinha, por sua vez, argumentava que aquela fora, entre todas, a sua melhor poedeira e não uma galinha velha destinada ao abate. Como o dono do cão não argüiu a invasão de domicílio e a conseqüente defesa da propriedade, decidi que o dono do cão indenizasse o queixoso comprando-lhe uma nova poedeira e que, em contrapartida, o dono da galinha desse ao dono do cachorro um frango ou uma galinha velha. Contentaram-se ambos, felizes, com o meu veredicto salomônico e me convidaram para celebrar a paz com uma estupenda galinha ao molho pardo, iguaria que em Ari Barroso é conhecida como galinha de cabidela.

Ocupamos uma casa nova, cheirando a tinta, construída na única praça da cidade, quase defronte ao prédio do fórum, novo também. Era um simpático bangalô com o exterior pintado em verde cana, uma grande varanda, jardim, quintal, todos os cômodos com piso cerâmico, sala de visitas e outra para as refeições, cozinha, dois banheiros e quatro quartos, um dos quais transformei em meu gabinete. Ivana me parecia feliz quando nos instalamos: passava o dia em banhos de mar, plantando flores no nosso jardim e supervisionando o plantio de uma horta no amplo quintal. Em maio me revelou que suspeitava estar grávida, suspeita confirmada em junho.

Em agosto, no quinto mês de gravidez, notei que Ivana estava tristonha, desinteressada do jardim, da horta, e mesmo de preparar o enxoval para o nosso filho. Eu já temia que ela, sempre tão ativa, logo se aborrecesse com a quietude do lugar, mas confiava que a gravidez ocupasse-a. A princípio ela não queria aceitar, mas acabou concordando em ficar em Salvador, na casa dos pais, até o parto, previsto para acontecer entre o final de dezembro e os primeiros dias de janeiro.

Quando nos instalamos em Ari Barroso, contratamos Jussara, por indicação de dona Iolanda, a primeira dama do município, para ajudar Ivana nos serviços domésticos.

– É uma mulatinha bonitinha e asseada, moça de confiança, filha mais velha de Dione, a nossa cozinheira. Não cozinha tão bem como a mãe, mas não vai fazer feio principalmente no trivial. O doutor juiz vai ficar satisfeito.

Romeu, o prefeito, piscou os olhos para mim e acrescentou:

– Só tem dezessete anos a moça. Não é, Iolanda?

– Quase dezoito.

– A senhora pede, então, que ela me procure amanhã de manhã, dona Iolanda — Ivana pediu.

No dia seguinte, quando cheguei do fórum, ela já estava a serviço de Ivana, que me comunicou:

– Amor eu consegui convencer a Jussara a ficar morando aqui conosco. Ela mora com o pai, a mãe e mais uns oito parentes em uma choupana apertadinha na beira da praia. Aqui tem quarto sobrando. Você se importa?

– Não, querida, faça como achar melhor.

– Vou chamar ela pra lhe apresentar. — E chamou a moça.

Tomei um susto quando vi chegar na sala, vestindo um short apertadíssimo e uma blusa curta empinada pelos seios rijos, aquele monumento à raça negra. Levantei-me para lhe apertar a mão e fui brindado com um sorriso ambíguo.

– Muito prazer doutor Ronaldo. Estou à sua disposição — Ela me cumprimentou curvando-se um pouco como se eu fosse, talvez, um monarca.

Por cima do decote da blusa, que era frouxa e de tecido leve, divisei-lhe, inteiros, os seios de pequenas auréolas negras e pontiagudas.

– O prazer é meu. Como é mesmo o seu nome? — Realmente eu não me lembrava.

– Jussara, doutor juiz.

Ivana pediu que ela nos trouxesse cafezinho. Hipnotizados, meus olhos seguiram as belas nádegas que sumiram rebolando pelo corredor. Temi que Ivana tivesse notado o meu excesso de atenção, o olhar continuado, é mais exato dizer assim. Para ser sincero, não fantasiei nenhuma relação com Jussara, apenas quedara-me a admirar a sua beleza. Se Ivana fosse ciumenta, como sou, não a teria aceito, muito menos a convidaria para morar conosco, além do mais, instalando-a, não nas dependências para empregados, que as havia no fundo do quintal, mas em um dos quartos da casa.

Jussara insinuava-se desde o primeiro dia. Ivana comprou-lhe roupas e um biquíni, que ela continuava usando dentro de casa, quando retornava da praia, aonde ia acompanhando minha esposa. Desfilava, rebolando quando me via, naquele traje sumário, como se me quisesse enlouquecer. E Ivana parecia cega, mas mantive a compostura. Contudo, com a sua ida para Salvador, não consegui mais resistir: no terceiro dia após o meu retorno da capital, onde fora para levar minha esposa, ela já estava na minha cama. De todas as mulheres com que trepei na minha tumultuosa vida, não houve nenhuma mais fogosa que ela. Compreendi na nossa primeira noite de gozos a piscadela de Romeu e perguntei a Jussara:

– Você já foi pra cama com o prefeito?

– Já, seu doutor. — Ela respondeu com a cara mais sonsa do mundo.

– Com quem mais?

– Com o padre Brito, com seu Zeca da farmácia e com Ramon, um cabeludo da cidade que morou aqui uns tempos e foi quem tirou o meu cabaço.

– Você toma anticoncepcional?

– Tomo. É seu Zeca que me dá.

– De agora em diante você só vai pra cama comigo Jussara. E ninguém pode saber entendeu? Principalmente dona Ivana.

– Mas se eu não der pra seu Zeca ele não me dá mais os remédios pro povo lá de casa e nem as pílulas pra não emprenhar.

– Quando você precisar de remédio você manda botar na minha conta. Não, melhor. Você me diz o que quer e eu mesmo mando alguém do fórum comprar.

– E seu Romeu? Se eu não der pra ele, ele manda mãinha embora e o meu povo morre de fome. Meu pai é pescador, a gente não pode viver só de comer peixe e aqui só no verão tem quem compre.

– Você fique tranqüila que o prefeito não manda sua mãezinha embora não. Você o ameaça de contar tudo a dona Iolanda.

– Ela sabe.

– Sabe? E não se importa?

– Eu acho que não. Ele me disse que ela já fechou o baú faz tempo.

– Então você deixe que eu converso com ele.

– E o padre Brito?

– O que é que tem o padre Brito?

– Se eu não der pra ele eu não entro no céu quando eu morrer.

– Foi ele quem lhe disse isso?

– Foi.

– Pois ele está mentindo, o velho safado. Deus não quer que padre tenha mulher. Ele vai é pra o inferno e você também, se continuar dando pra ele.

– E eu não vou poder nem me confessar?

– Confessar pode. Só não pode dar pra ele, nem dizer a ninguém, nem na confissão, que está dando pra mim.

– Então tá bom. É o doutor juiz que manda na polícia e se alguém fizer maldade pra mim e pra meu povo o doutor juiz manda prender. Não manda?

– Mando. Mando prender todo mundo e mando jogar a chave da cadeia no fundo do mar.

No outro dia fui na prefeitura conversar com Romeu e fi-lo entender, através de analogias, que “uma mão lava a outra”. Eu disse que eu não era um juiz corrupto, mas que também não era santo, e que a Lei sempre dá ao juiz margem a interpretações. Ele não teria dificuldades em arranjar uma outra concubina.

– Porra, doutor Ronaldo, não precisa tanto lero-lero, o doutor não quer dividir a menina, não tem importância, eu já estou comendo a irmã dela de dezesseis que é tão gostosa e fogosa quanto ela.

– Não se trata de dividir ou não dividir Romeu. Eu não tenho nenhuma intimidade com a garota. Aliás, nem foi por intermédio dela que fiquei sabendo da relação de vocês.

– Não me diga que Iolanda contou a dona Ivana. Eu avisei a ela pra não tocar nesse assunto.

– Não. Não creio que Ivana saiba. Foi outra pessoa quem me contou. Essa pessoa me pediu que a deixasse incógnita, e eu sempre honro a minha palavra. Por sinal, não quero que Ivana saiba de nada. Você me entende? Ela poderia pensar coisas e a moça seria prejudicada.

– É, Jussara agora tá na vida que pediu a Deus, dormindo em cama macia, comendo do bom e do melhor. Fique tranqüilo doutor. Por mim ou por Iolanda, dona Ivana não vai saber de nada. É um pitéu a menina. É ou não é?

– Não sei, Romeu. Sei que é uma garota menor de idade, com a qual minha esposa simpatizou, e que farei o que for preciso para que doravante tenha as oportunidades que a vida lhe tem negado. Não há de se tornar uma prostituta, se depender de mim.

Pretextei a necessidade de estudar um processo no fórum e acho que deixei uma dúvida razoável na cabeça do prefeito. Era em nome da moralidade e da integridade do meu lar o pedido que houvera feito.

Carlos Eduardo, o meu primeiro filho, nasceu no dia 31 de dezembro de 1978. Eu estava em Salvador para passar com Ivana o Natal e o Reveillon. Aquele foi um dos poucos anos que não rompi o ano novo na Boa Viagem, mas na manhã do dia primeiro de janeiro, antes de ir à maternidade, fui ver a procissão marítima chegar e agradeci ao Bom Jesus e a Nossa Senhora da Conceição a ventura que me concedera na véspera.

Não creio que possa haver maior alegria que a do nascimento de um filho, principalmente a do primogênito. Mas à alegria eu somava o sentimento de culpa decorrente do meu relacionamento com Jussara e o medo com a possibilidade de Ivana descobrir essa relação. Medo não apenas porque não concebia a possibilidade de não poder criar o meu filho, se Ivana, descobrindo o meu relacionamento com Jussara, resolvesse por nossa separação, mas também e fundamentalmente porque eu amo Ivana e perdê-la seria perder a razão da minha vida. Por Jussara era somente um enorme tesão o que sentia.

Alguma coisa estava estampada na minha cara. Ivana achou que era medo pela responsabilidade de ter e criar um filho. Ela perguntou:

– Está preocupado, amor?

– Não. Estou muito feliz.

– Está preocupado, sim. Está preocupado porque agora tem o Carlinhos. Antes éramos somente nós dois, agora há esse principezinho lindo que é a cara do pai.

Era uma brecha para manter Ivana em Salvador. Brecha que eu não podia perder. Eu aproveitei dizendo:

– É verdade, estou mesmo preocupado. Lá em Ari Barroso não temos condições adequadas de saúde para criá-lo, tão pequeno, tão frágil ainda.

– Mas meu bem, quantos lá nasceram e se criaram?

– Nenhum filho nosso. Você tem idéia do índice de mortalidade infantil de lá? Lá uma simples caganeira pode matar por desidratação. Não há médico residente. O Dr. Luiz só dá plantão um dia por semana e eu não tenho confiança nele.

– E o que você acha que devemos fazer?

– Acho que vocês devem ficar aqui pelo menos uns seis meses, que é a fase mais crítica.

– Se você não me quer ao seu lado...

– Ah! Amor, não é nada disso. É pelo bem do Carlinhos, prefiro que ele não corra um risco desnecessário.

– Pelo meu gosto ficávamos aqui por só mais um ou dois meses, desde que nos casamos temos vivido mais tempo separados do que juntos, mas não vou teimar. Eu fico. 

Foi um alívio, eu ganhara seis meses para resolver o imbróglio que criara. Foram seis meses de tensão, mas também de inenarráveis lubricidades com Jussara. Eu vivi esse período, me desculpem o clichê, “entre a cruz e a espada”. A situação ideal seria poder ter concomitantemente as duas. Outra hipótese era conseguir uma transferência para outra comarca, de preferência próxima a Salvador, onde eu pudesse reunir a família. O inconveniente dessa segunda hipótese era ter que me livrar de Jussara, me privando do enorme prazer que ela me propiciava. Mas eu sabia que seria um risco muito grande conviver com as duas sob o mesmo teto. Mesmo que Jussara não falasse nada, mesmo que nenhuma fofoca caísse nos ouvidos de Ivana, eu tinha certeza que eu mesmo me denunciaria, não conseguiria agir com naturalidade. Renunciar a Jussara era, pois, inevitável, a não ser que Ivana aceitasse me dividir com ela, coisa muito improvável. Nos meus devaneios cheguei a pensar nisso, a pensar em contar tudo a Ivana, a lhe pedir que aceitasse aquela situação. Mas quem aceitaria? Isso é coisa que só acontece na literatura, na vida real somente por loucura ou por falta de opção. E Ivana não era louca e tão pouco uma desamparada pronta para aceitar os meus caprichos, e mesmo que fosse eu não teria coragem de propor, e em tendo, de perder o seu amor e o seu respeito.

Resolvi reivindicar uma transferência. Aceitaria ir pra qualquer lugar para salvar o meu casamento e decidi que Ivana não voltaria a Ari Barroso. Em busca de apoio ao meu requerimento oficial, apelei a muitos desembargadores fazendo-os ver que seria desumano submeter minha esposa e filho, uma criança com poucos meses de vida, a residirem em local tão inóspito. Disse do risco de desagregação da minha família. Tornei-me um chato.

Tive sorte, havia um colega em uma comarca no sertão que estava querendo transferir-se para outra no litoral, qualquer uma à beira mar, o tribunal aceitou que permutássemos.

Esse colega, que estava separado da esposa, foi a única pessoa a quem confidenciei sobre Jussara, não omitindo nenhum detalhe. Ele me garantiu que manteria o segredo e disse que eu ficasse tranqüilo, ele ficaria com Jussara, dando-lhe o mesmo tratamento que eu:

– Está melhor que a encomenda. — Marcos, exultou.

    


Fred Matos

Conto publicado em “Melhor que a encomenda”  

Coleção Selo Letras da Bahia  

FUNCEB, EGBA – 2006.

2 comentários:

Elis Zampieri disse...

Foi minha primeira leitura do dia.
bjos

Fred Matos disse...

Obrigado, Elis.
Beijos

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