quarta-feira, março 25
o beato de canudos
Ilustração: desenho de Angelo Agostini,
“Antônio Conselheiro rechaça a República”
Revista Ilustrada - 1896
[Para Maria da Conceição Carneiro Oliveira]
A chuva,
primeiro gota a gota,
depois tempestuosa,
transbordando o Vaza Barris,
sua água escarlate,
sanguinolenta,
escamando torrões,
coágulos da terra,
enlameando os caminhos,
lavando o pó das pedras,
inundando o Belo Monte,
inundando o império,
submergindo o mundo,
molhava os sonhos do Conselheiro.
Da infância,
semente da loucura e da razão,
pouco se sabe,
quase tudo é suposição.
O sertão sabe da seca,
da fome,
da sede.
O sertão sabe de Deus,
da esperança,
da fé.
O sertão sabe da dor,
carpida sem lágrimas,
sem esperdício d’água.
O sertão sabe da estiagem,
dos horários da missa,
dos dias do padre,
da submissão.
O menino,
órfão de mãe,
do pai que bebia,
da madrasta maltratos,
criado descalço,
sonhava o mar,
e sonhava com Cristo
que morreu na cruz para nos salvar.
Sonhava com leite e mel
escorrendo dos veios da terra.
Ainda sonha
e espera por Dom Sebastião
que sairá das ondas,
à frente do seu exército,
para a nossa redenção.
No Ceará,
aqui,
acolá,
foi professor e caixeiro,
foi rábula,
foi vaqueiro,
teve mulher e dois filhos,
que pelo sonho largou.
Pois um dia,
quarenta dias,
iguais uns aos outros de sua sina peregrina,
Antônio recebeu a revelação divina:
” Vai meu filho,
ergue minha casa,
conduz meu rebanho à terra prometida,
que é teu sonho”
Antônio obedeceu,
plantou catedrais de pedra e adobe
para que dobrem os sinos da fé,
despertando a eternidade.
Antônio prega onde não há padre,
ensina a Lei,
leva o batismo
e o mito do Cristo.
Antônio é conselheiro,
é amigo,
meigo companheiro na última unção.
Antônio é pai,
é filho,
é irmão.
Do Ceará à Bahia,
onde passou foi ouvido,
fez-se do povo querido
e do Capeta inimigo.
Uns diziam que era jagunço fugido do Ceará,
onde,
por crime da morte,
da mãe e da mulher,
não podia mais voltar
e que,
vivendo de esmolas,
vagava de casa em casa,
de arraial em arraial,
de Chorochó à Vila do Conde,
de Geremoabo à Itapicuru,
nos grotões do sertão baiano,
pregando a rudes ouvintes,
purgando pública contrição do pecado do sangue,
para o qual não há perdão.
Um dia,
sem reação,
por ser a monarquia poder de Deus emanado,
em Itapicuru foi preso,
pra Salvador foi levado,
inquirido, torturado.
De lá pra Fortaleza,
depois Quixeramobim,
chegando,
então,
por fim,
na sua terra natal,
onde foi logo liberto,
que contra ele a lei nada tinha a cobrar.
Mas a lenda ainda corre
nas mil bocas dos Barrabás.
Foi um dia de festa,
ladainhas e foguetório
quando Antônio voltou
e convocou sua grei.
Era chegada a hora por todos ansiada
de reunir o rebanho na terra anunciada.
Em cada canto nordestino a boa nova chegou.
Quem tinha propriedade,
botou preço sem apreço
vendeu por poucos trocados,
na pressa de ser o primeiro
nas terras do Nosso Senhor.
Nas terras miseráveis do Arraial de Canudos,
onde nada se plantava,
nem criação se fazia,
fincou enfim sua cruz,
plantou uma cidade às ordens do Senhor.
Para cá diariamente demandam os desesperados,
pois sua palavra santa é a Lei,
é a Verdade,
e onde era deserto,
trinta mil vidas vinculam
ao dele seus destinos,
em santa felicidade.
Trovejam das tropas tropel de burros
abarrotados de trapos tralhas velhas
nas trilhas onde chocalham cascavéis.
É uma estranha procissão:
homens mulheres crianças anciões,
ansiando vida nova na nova Canaã.
Os coronéis do sertão,
mal refeitos da perda dos escravos libertos,
vêem sumir apavorados
os braços que os nutrem.
Para eles é um mistério como tantas bocas podem
encontrar o de comer em sítio tão inóspito.
Somente com Deus a prover
é possível o impossível.
E a notícia voou,
nas asas do ódio e do medo,
da inveja e da infâmia.
Chegou a Salvador,
ao governador e ao bispo:
”Põe esse homem no hospício,
lá é que é lugar de louco”,
disse fazendo pouco,
o de batina ao de fraque.
Agora é a República,
há no trono do Imperador,
um governo de anticristos Maçons,
desafiando a Lei que o beato Conselheiro ensina.
Foi quando a guerra começou.
Primeiro chegou a polícia,
facilmente escorraçada,
que em cada moita do mato,
em cada fresta de pedra,
em cada buraco do chão,
há um cabra nordestino armado
de foice ou facão.
Mais que isso,
armado de fé
e do amor no Santo irmão.
Dos macacos decapitados
ficamos com as armas de fogo
e com toda munição.
Alguns dos que chegam passam pra nosso lado:
preferem morrer com Cristo
que viver com o diabo.
Mas o tinhoso é teimoso
e manda pra esparrela novas levas de praças.
São tantos os que matamos
que em cada arbusto da estrada
há uma cabeça espetada
e o sangue na terra vermelha
é aqui mais farto que água.
Agora é o exército nacional,
soldado cabo sargento
tenente coronel general
até o Ministro da Guerra
vindo do Rio de Janeiro.
Vem soldado do Norte,
vem soldado do Sul,
vêm com obus e canhões,
metralhadoras granadas,
mas Canudos não se rende,
e em dois anos de batalhas,
aqui se cozeu a mortalha
do exército brasileiro.
Quem é da terra não verga,
faz de fagulha braseiro.
Aqui da minha trincheira,
a boca cheia de terra,
os olhos molhados de sangue,
vejo uma túnica azul,
um chapéus de abas largas,
cabelos até os ombros,
barba inculta desgrenhada,
olhar de sóis nascentes,
numa mão o livro santo,
na outra, qual cetro, um porrete,
caminhando sobre nuvens,
pastoreando as almas
dos cadáveres insepultos,
Santo Antônio Conselheiro,
em cujos pés me agarro.
Fred Matos
publicado em "Anomalias".
Editora Kelps
Setembro/2002
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14 comentários:
Oiie!!
Obrigada por acompanhar o meu blog !! :)
Ja estou acompanhando o seu tbem !!
Volte sempre !!
Beiijus ;*
"São tantos os que matamos
que em cada arbusto da estrada
há uma cabeça espetada
e o sangue na terra vermelha
é aqui mais farto que água"
Parabéns Fred, texto do mais alto nível.
bjs
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bjosss...
Eu que agradeço pela reciprocidade, Amanda.
Beijos
Agradeço-lhe, Glória.
Este é um poema que me deu trabalho, sobretudo de pesquisa, e é um dos raros, entre os meus, no qual os fatos históricos contribuem muito mais que a imaginação.
Beijos
Obrigado, Nanda.
Beijos
nossa, fióte, que coisa mais linda, coisa mais de mim, historiadora, escritora, cearense d'alma... não caiu em nenhum momento na pieqguice ou na chata-descrição. lindo! :) parabéns. queria que ele lesse...
sabe que a casa em que ele morava aqui, e que já é museu, está toda deteriorada? pois, patrimônio, memória, história? qued~e dinheiro pros loucos?
beijos.
Lindíssimo. Sem palavras.
Canudos, fascinante história, estudei bastante e com muita curiosidade, uma epopéia bem mitológica, nossa mitologia brasileira ao meu ver é toda nordestina, o Brasil verdadeiro pra mim é do Rio pra cima, mitos, lendas, sacrificio e sangue e misterios, a Amazônia e os rios mares, tive muita sorte e por todos os sagrados lugares andei, não nas capitais como turista, como candango mesmo e Fred teu poema é uma beleza
abraço
Que bom que você gostou, Nina.
Uma pena saber que o museu do Conselheiro está como tudo o mais que se refere à cultura e à memória nacional: em ruínas.
Beijos
Obrigado, Priscila.
Beijos
Iosif,
Além dos "Sertões", de Euclides da Cunha, e do importante livro do professor e historiador baiano José Calasans, acho oportuno lembrar o romance "A Guerra do Fim do Mundo", de Vargas Lhosa. Guardando as proporções entre um romance e um poema, e entre um escritor consagrado e este eterno aprendiz, foi esta a minha ambição ao escrever este poema: eu era ambicioso na época. (risos).
Obrigado, amigo.
Abração
Olá Fred,
Agradeço-lhe por acompanhar meu blog.
-*-
"Quem é da terra não verga,
faz de fagulha braseiro."
é sim, Fred, esta é a maior beleza de Canudos e deste povo do sertão, gostei muito desta sua forma de dizer.
saudações.
O sem-telhas é um belo blog, Márlia, e os seus textos muito bons.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário, deixando o convite para que venha sempre.
Beijos
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