segunda-feira, março 23

quando virou borboleta




chove.

constatação necessária
se não sei das circunstâncias
do outro agora. aquele que será
quando. se você souber deste.

se não, não importa a torrente
nem existirá, por vão, o que aqui é,
onde não alcanço contrariar
minha natureza [e a da água feita fúria
rompendo entranhas sem delicadeza]
para sopesar cada palavra.
conselho seu.

há música: “bridge over troubled water”.
encontrei o cd de simon e garfunkel.
lembro-me lágrimas nossas
abraçados uma noite fria no central park.
lágrimas aparentemente paradoxais
de felicidade e melancolia.

não, a felicidade não é o riso gratuito,
a gargalhada fútil e fugaz. pode ser, sim,
um esgarçar das fibras tensas de uma ilusão.

já não há sonhos que nos una
desde quando me deixei ficar no tempo.
sentença sua.
já não chove.
foi forte e breve como a sua presença.
posso abrir a janela.
está feito.
ainda há música:
“the only living boy in new york”,
mas não há sol. o sol, a música,
aríetes dissipando ânimos e desânimo
é uma boa imagem, nem sempre solução.

por via das dúvidas
não ouvirei o “réquiem” de mozart.
fiquei morto muito tempo.

ontem, embriagado,
queimei os meus poemas
[e no fogo
as metáforas fizeram-se belas
em luz e cinzas].
seria, pensei, libertar-me da âncora
das nossas memórias. ledo engano.
aqui estou agora resgatando-as.
para mim. exclusivamente para mim.
de você não sei sequer se vive,
além da que morreu
quando virou borboleta.


Fred Matos
publicado em "anomalias".
editora kelps
setembro/2002


Ilustração: “A Borboleta” de Jorge Rosa, encontrada no site:
http://pt.trekearth.com/gallery/Europe/Portugal/South/Lisboa/Carnaxide/photo27599.htm

20 comentários:

Christi... disse...

Boa noite,

Que profundidade esse texto revela processos da transformação de uma forma geral, lembranças, vestígios, borboletas e tb a dor de morrer certas coisas, pra viver outras.

Gostei muito.

Bjs,
Chris

Hercília Fernandes disse...

Belíssimo Fred, quase se podem tocar os sentimentos do eu-emotivo.

Adoro o seu lirismo: intenso, sutil e nada piegas, como nessa passagem:

“ontem, embriagado,
queimei os meus poemas
[e no fogo
as metáforas fizeram-se belas
em luz e cinzas].
seria, pensei, libertar-me da âncora
das nossas memórias. ledo engano.
aqui estou agora resgatando-as”.

Lindíssima paisagem. Habitará os meus sonhos por longos dias.

Abraços, poeta!

H.F.

Nanda Assis disse...

muito bonito.

bjosss...

hfm disse...

Acabada de chegar de 1 mês e 10 dias por Itália que bom é encontrar de novo a tua poesia. Um abraço, meu amigo.

Fred Matos disse...

Christi,
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Volte sempre.
Beijos

Fred Matos disse...

Seus comentários são sempre generosos, Hercília. Agradeço-lhe.
Abraços.

Fred Matos disse...

Que bom que você gostou, Nanda.
Obrigado.
Beijos

Fred Matos disse...

Isso é que é vida, Helena: você merece. Espero que tenha se divertido muito nas férias.
Agradeço-lhe o comentário e a visita.
Beijos

Batom e poesias disse...

Afora a beleza da escrita e a sutileza das metáforas, percebo que jamais nos libertamos da âncora das nossas memórias.

Senão não doeria e então não escreveríamos.

Não haveria o poeta... Como você.

Abraços
Rossana

Fred Matos disse...

Rossana,
Ocorre às vezes, contudo, que a tais memórias sejam apenas fruto da imaginação. É o caso deste poema no qual a única coisa verídica é que comecei a escrever ouvindo “Bridge Over Troubled Water” e que quando terminei tocava “The Only Living Boy In New York”. Sendo assim, sou obrigado a discordar parcialmente do seu comentário: obviamente a memória é necessária, sem ela sequer nos lembraríamos do que significam as palavras, mas, para a poesia, a fantasia é muito mais importante que recordações.
Agradeço-lhe a leitura e comentário.
Abraços

nina rizzi disse...

caramba, fióte, tu se supera. ou supera minhas expectativas de re-visões linguístico-poéticas. e melhor
: o QUE-fazer dizer.
é bárbaro :)

acho que. já fui borboletra. ou sou ou fomonos eu e ela. uma história assim como esta.

gismonti é tudo :)

Fred Matos disse...

Caramba digo eu, Nina. Arrisca que meu ego infle demasiado em virtude do seu comentário e estoure como bola de sabão.
Obrigado.
Beijos

Adriana Godoy disse...

Fred, esse poema me surpreendeu mesmo. Gostei dessa linha, desse traçado. Tem um quê de nostalgia e remete a coisas não vividas que parece que já vivemos. O final incrível, um desfecho que sincroniza os versos. Parabéns. Bj

Fred Matos disse...

Obrigado, Adriana.
Este poema, publicado no Anomalias, é outro dos meus que coloco entre os preferidos. Fico contente que você goste.
Beijos

cisc o z appa disse...

que maravilha de poema!

exercícios para
memórias de seda

esse teu poema
me trouxe próximo a uma vaga
dessas
que entre uma onda e outra
do tempo
nos puxa para o fundo
onde extasiado
fico entre a
a perda da memória
e perda do esquecimento


bravo!

agra
deço,

Fred Matos disse...

Eu que agradeço, Fernando, e comovido pela sua generosidade.
Grande abraço

myra disse...

lindissimo! grande poeta, Fred,
um abraço forte,
myra

Fred Matos disse...

Seu comentário me deixou comovido, Myra.
Beijos

Lou Vilela disse...

Fred,

Normalmente você nos brinda em seus textos com belíssimas imagens. Parabéns, poeta!

Abraços,
Lou

Fred Matos disse...

Obrigado, Lou.
Beijos

pesquisar nas horas e horas e meias