foto: Mário Cravo Neto
Imerso na sombra da noite é preciso chegar próximo para ver o homem deitado na fenda da pedra negra onde o respingo das ondas só alcança quando é maré alta. Buscou abrigo naquele pedaço ermo da praia de Itapuã quando os homens e máquinas da prefeitura cumpriram a ordem de reintegração de posse demolindo os barracos da favela Bela Vista. Mas isso faz muito tempo, tanto tempo que ele já não sente desconforto quando o corpo calejado se amolda na aridez da pedra úmida, portanto é assunto de que não se ocupa quando encontra quem o ouça, o que não é raro, apesar da sua indigência. Um saco plástico com alguns trapos e uma cuia de queijo Palmira que usa como prato são os seus únicos pertences, é o quanto lhe basta, pois não tem ambição maior que forrar o estômago e manter a pele vestida. Antes que surjam os primeiros raios de sol ele caminha até a porta da padaria onde sempre encontra uma alma caridosa que lhe ofereça um pão. Dinheiro não aceita, vai bem um copo de leite pingado, se não for pedir muito. Alimentado, segue apressado até o coqueiral de Piatã onde se reúne a crianças e adolescentes criados na rua ao deus dará, que para ouvi-lo abdicam por algumas horas das brincadeiras, da mendicância e dos pequenos furtos.
Eu trabalhava em uma matéria sobre loucos urbanos, um calhau para ser usado em edição dominical, e já entrevistara dezenas de figuras estranhas que perambulam pelo centro da cidade quando me falaram do Professor. Imaginei que seria apenas mais um que nada acrescentaria à matéria, mas apetecia-me naquela manhã respirar o ar marinho e fui pra Piatã onde o encontrei sem dificuldade, pois à distância já se podia ver o grupo reunido. Mantive-me afastado enquanto durou a aula, mas próximo o suficiente para ouvir a lição do dia. Percebendo que se tratava de indivíduo culto e com discurso articulado liguei o micro-gravador, contudo o ruído das ondas arrebentando na praia tornou inaudível a gravação e apenas na memória está registrado o conteúdo daquela palestra.
Esperei que o grupo se dispersasse para abordar o Professor, me apresentei e expliquei-lhe o motivo pelo qual o procurara, ele sorriu:
- O moço diz excêntrico, um eufemismo para maluco. Considerando que é tênue o liame entre a loucura e a sanidade eu posso perfeitamente ser considerado louco, apesar de que, do meu ponto de vista, loucos são os que se amoldam a este sistema cuja lógica é a acumulação para um amanhã que nunca virá.
- Vejo que o senhor é muito culto.
- Seria mais correto dizer que absorvi ao longo da vida mais informação do que a média da população, mas a cultura não é grande coisa, ela é apenas uma soma. Creio que mais importante que o conhecimento é a capacidade de reflexão, que no meu caso resultou em abdicar do conforto para desfrutar a liberdade.
- O senhor é professor realmente?
- O que é realidade, meu jovem?
- Talvez eu tenha me expressado mal, o que eu quero saber é se o senhor tem curso superior, se já lecionou.
- Sim, formei-me em filosofia e fui professor universitário, mas não acho que isso tenha alguma importância, exceto, talvez, para acentuar na sua reportagem a minha loucura.
- É que eu não compreendo: o senhor ao que tudo indica gosta de ensinar, poderia estar sendo remunerado para fazer o que gosta e não me parece que tivesse necessidade de abdicar de um mínimo de conforto para desfrutar a liberdade, pois não creio que a tenha em grau maior do que a de professores universitários que eu conheço.
- Ah! Você é um rapaz inteligente, talvez me entenda melhor se eu fizer um breve resumo da minha trajetória: fui afastado da universidade pela ditadura militar, caí na clandestinidade quando fui informado que a minha prisão era uma questão de dias ou de horas. Deixei o apartamento que alugava levando somente uma sacola de roupas e o que sobrara do último salário. Consegui documentos falsos e fui aceito como professor de curso primário em uma escola da periferia, onde a remuneração mal cobria as despesas com alimentação e o aluguel de um barraco na favela Bela Vista, de onde fui expulso quando a favela foi demolida.
- O senhor poderia ter encontrado outro lugar pra morar.
- É verdade, mas eu já cogitava em romper definitivamente com a civilização e tomei aquele evento como um sinal.
- Mas por que romper com a civilização se o senhor fazia o que gosta de fazer?
- Eu gosto de ensinar, é verdade, mas não considero que ensinar seja apenas transmitir uma miríade de informações que “entram por um ouvido e saem pelo outro”, como diziam os alunos. Ensinar é também ajudar a desenvolver os processos de concatenação destas informações, é promover o embate das idéias sem a imposição de paradigmas, é permitir o amplo contraditório. Somente aqui tenho a liberdade de exercer a educação como a concebo.
- Eu acho que na universidade o senhor poderia fazê-lo. Tantos outros mestres que foram vítimas da ditadura hoje estão reintegrados à vida acadêmica.
- Talvez pudesse, não tenho certeza, mas seria justo e ético reintegrar-me ao sistema quando o que desejo é a sua ruína?
- Como assim?
- A educação, como a conhecemos, destina-se exclusivamente à formação de peças para a engrenagem social fundada no princípio de desempenho, cuja lógica é a competição onde deveria haver a colaboração. Assim temos uma sociedade que é dividida entre um pequeno grupo de vitoriosos e uma enorme massa de derrotados, que não vivem sua própria vida, desempenham funções preestabelecidas que lhes permitem quando muito sobreviver.
- Se o estou compreendendo o senhor prega o comunismo, mas isto não seria uma contradição para quem, como senhor, preza tanto a liberdade?
- Não entendo que o cerceamento da liberdade seja um pilar do comunismo. O fato de que assim tenha sido nas nações que o adotaram me sinaliza que a sociedade não estava preparada, ou seja, que para a sua adoção é necessário que primeiro haja uma evolução na humanidade, que ela alcance um patamar superior de conscientização onde os valores impostos pela sociedade de consumo sejam soterrados por valores éticos.
- Quando os homens se tornarem santos?
- Sim, talvez. Mas prefiro dizer: quando os homens se tornarem íntegros.
- Supondo que a humanidade alcance tal estágio, o senhor acredita que isto iria abolir a necessidade do trabalho, ou seja, que as pessoas deixariam de ser meras peças da engrenagem social?
- Esta é uma boa pergunta. Eu sinceramente acredito que nesta hipotética sociedade, abolida a propriedade privada, adotada a máxima de Marx: “De cada um conforme a sua aptidão, a cada um conforme a sua necessidade”, o trabalho deixaria de ser uma obrigação tornando-se uma atividade lúdica, pois os indivíduos naturalmente se dedicariam às tarefas que lhes são prazerosas e não àquelas que são melhores remuneradas pelo mercado. Sendo assim não há que se dizer que os homens continuariam a ser autômatos, nem tampouco que a grande maioria optasse pela vagabundagem.
- O senhor conhece as teorias do sociólogo italiano Domenico de Masi?
- Não conheço profundamente, mas li algumas entrevistas dele em revistas recolhidas no lixo.
- O que o senhor pensa desta teoria do ócio?
- É difícil analisar uma teoria que conheço apenas superficialmente, mas tomando como fidedignas as reportagens que li, eu penso que esta teoria serve ao atual sistema, não é uma ruptura, é um avanço cujos principais objetivos são: reduzir os níveis de desemprego a índices toleráveis e diminuir o tempo dedicado pelo indivíduo ao sistema.
- E isto não é bom?
- É melhor para o sistema que para o indivíduo, mas indiscutivelmente é um avanço.
- Por que o senhor acredita que é melhor para o sistema que para o indivíduo?
- Para o indivíduo, fazendo uma analogia, seria como para um condenado ter a sua pena reduzida. Para o sistema é um novo mecanismo que objetiva a sua perenização. Mudar para que tudo permaneça, tem sido, ao longo da história, uma estratégia do sistema de desempenho para manter o indivíduo submisso e alienado.
- Por qual motivo, então, esta teoria não tem ainda ampla aceitação pelas elites econômicas?
- Porque as elites só estarão dispostas a adotar uma drástica redução na carga horária de trabalho quando, com o aumento da produtividade, isto não resultar na redução da sua margem de lucro. Ressalvada a hipótese de ser obrigada a isto por algum movimento de força, seja ele oriundo da própria massa ou decorrente de legislação. Mas tenha em mente que o sistema não é uma instituição com sede e comando centralizado, muito possivelmente ele é mais evidente a quem o serve do que aos que são por ele servidos. Estes atribuem, quase sempre, à graça divina ou a mérito próprio os dividendos que acumulam.
- Quero agradecer-lhe, professor. Poderíamos gravar horas e horas, mas acho que já tenho material suficiente para o melhor trabalho que jamais fiz.
- Talvez meu jovem, talvez. Mas não se surpreenda se não quiserem publicar nada do que eu disse. Se for assim, invente qualquer coisa mais leve e pitoresca.
O sol já ia a pino, convidei o professor para almoçar. Ele sugeriu e eu aceitei, uma moqueca em uma barraca no mercado de Itapuã, estava divina. Voltei eufórico para a redação e garanti a Abreu, o chefe de reportagem, que tinha um material fantástico. Não sei por qual motivo a matéria nunca foi aproveitada.
Fred Matos
Conto publicado em “Melhor que a encomenda”
Coleção Selo Letras da Bahia
FUNCEB, EGBA – 2006.
8 comentários:
Fantástico, Fred!
Ganhei o dia! Tudo que sempre pensei e quis está contido aqui.
Suponho a entrevista e entrevistado como "real", a teoria dele, jamais será levada em consideração, pelo que ele próprio diz. O sistema, enquanto sistema, marginaliza e oprime o indivíduo.
Se um dia eu o encontrar vou juntar-me à ele. Meu sonho sempre foi o escambo ao comércio, e a vida com o mínimo necessário. Ele conseguiu!
A ditarura e os anos de chumbo pelo menos despertaram esses valores. Fui perseguida e familiares meus torturados.
Passada a ditadura, vem outra ditadura invisível aos olhos de muitos. A ditadura que ele falou e a do narcotráfico.
Será que um dia seremos livres?
Parabéns, Fred!
Tomara que muitos que aqui vem, leiam, apreendam e apreciem.
Um forte abraço, amigo!
Mirse
Ah! que bom que você gostou, Mirse. Talvez hoje eu não escrevesse este conto, pelo menos não tão, digamos assim, panfletário. Talvez eu conseguisse ser mais sutil e não construísse um personagem tão improvável, mas não há como negar que de todos os meus personagens é aquele no qual a minha concepção de vida e civilização está mais presente. Obviamente que o personagem não apenas pensa, tem a coragem de viver sem apego ao conforto, coisa que eu, em absoluto, não tenho.
Agradeço-lhe a visita, leitura e generosidade do comentário.
Beijos
PS: Não acho que o conto será lido por muitas pessoas: sei o quanto é chato ler textos extensos no écran.
ainda bem que o conto foi aproveitado. muito melhor que a encomenda!!!
sabe que é possível sim. viver só com um colchão de partilhas mijadas, um fogareiro e um gato. é sim.
beijo :)
Não sei, Fred, não sei. Já tive tantos rompantes como esse. E esse mestre, já conheci pessoas parecidas. Eles são assim, falam, a gente escuta, questiona e eles dão sempre uma lição. Por isso, mestres. Beijos.
lindo lindo, um homem de talento iluminado. ;*
possível é, sim, Nina. Muitos vezes penso que tudo de que um homem precisa pra viver bem é de uma rede, trapos que o protejam do frio e de uma cuia. A vantagem é que quem não tem nada não tem medo de perder e viver sem medo de perder é, talvez, viver bem.
mas da teoria à prática vai uma distância colossal.
agradeço-lhe vir, ler e comentar.
beijos
Adriana,
Eu nunca conheci pessoas que falem assim. Já conheci pessoas vivendo na miséria absoluta, mas nenhuma delas que estivessem felizes com a indigência. É como disse em comentários anteriores: apesar de filosoficamente acreditar que é possível ser feliz abdicando de todos os bens, eu sou muito apegado à minha Ferrari, aos meu charutos cubanos, a uma bela refeição acompanhada por um “Palmela Syrah”(risos). Porém, na literatura cabe o exagero.
Agradeço-lhe a leitura e comentário.
Beijos
Obrigado, garota.
Beijos
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