segunda-feira, agosto 24

Ariovaldo Matos




Hoje meu pai, Ariovaldo Matos, estaria completando 83 anos. Em sua homenagem publico três poemas dedicados a ele: um de Florisvaldo Mattos, um de Kátia Drummond e um meu.

Além dos poemas, insiro comentários sobre Ari e a sua obra, assinados por: Jorge Amado, Gláuber Rocha, Othon Jambeiro, José Gorender e uma carta depoimento que escrevi para Guido Guerra.

Concluindo a homenagem a “Cronologia Básica” da vida e obra de Ari e um dos seus contos: “A doce lei dos homens”.


Ariovaldo Matos, In memmoriam


Nem (abra-se o caderno do passado)
se fôssemos parentes saberias
o que guardava-me a mente a teu lado
pelo correr das noites e dos dias,

quando, sôfrego, à máquina escrevias
páginas de um jornal - ou quase um brado
que ia e voltava a teu convívio, alado
tropel sobre impassíveis geografias.

Como decifrador de calendários,
a batalha dos signos açulava-te
a matilha de ventos operários.

Eras real, um homem verdadeiro.
Mais não pude guardar, se o que eu sonhava
era ser aprendiz de feiticeiro.

Florisvaldo Mattos,
em "Caligrafia do Soluço"





ULTIMOS SINOS DE INFÂNCIA

Para o escritor Ariovaldo Matos, meu tio.

Os sinos ainda dobram
lá na torre da matriz.
São velhos sinos vibrantes.
Ecos sonoros. Distantes.
Sonhos felizes de outrora.
Hoje, meras cicatrizes.
Melancolias de agora.
Os sinos ainda dobram
lá na torre da matriz.
São velhos sinos vibrantes.
Sonoros sonhos sutis.
Últimos sinos da infância
de quem sonhou, por instantes,
algum dia ser feliz.


Kátia Drummond
Em "Lucidez Profana"




AO MEU PAI

Lendo, relendo teus livros
[tantos sonhos revelados],
compreendo o sentido
do que sofrias calado.

Vendo, revendo tuas fotos
[os sorrisos tão velados],
apreendo nos teus olhos
um pesar dissimulado.

Muitos anos me separam
do dia que te levaram
para a fria sepultura,

mas a tua morte, triste,
não amornou o ardor
que, de ti, em mim existe.


Fred Matos
Em "Eu, Meu Outro"




Um ficcionista baiano
Jorge Amado

Ainda há poucos dias, no Recife, Altamiro Cunha, homem que ama os livros, a boa mesa e a boa conversa, reclamava minha atenção para curioso fato literário. Dizia ele que, ao contrário do imaginado por muita gente, não possui Pernambuco uma tradição novelista realmente digna desse nome. Suas grandes tradições literárias são a poesia e o ensaio, ali cultivados, com talento e força, por filhos da terra e por forasteiros vindos para suas faculdades, sobretudo a de Direito nos tempos do baiano Castro Alves e do sergipano Tobias Barreto. Masa, onde a tradição do romance, do conto, da novela? Quando se fala em romance pernambucano pensa-se em José Lins do Rego, paraibano. Também paraibano é José Américo de Almeida, abridor de caminhos com "A Bagaceira". A tradição novelista, no nordeste e no norte, dizia-me ele, encontra-se no Maranhão, no Ceará e na Bahia, não em Pernambuco. E continuava perguntando onde buscar na novelística nomes a comparar com os dos poetas Bandeira, Joaquim Cardoso, João Cabral de Melo Neto, Odorico Tavares, Mauro Mota, Carlos Pena Filho, Carlos Moreira, ou com os dos ensaistas Gilberto Freyre, Olívio Montenegro, Josué de Castro, Álvaro Lins, Paulo Cavalcanti? Timidamente, citei Mário Sette, cujos livros pernambucanos encantaram minha adolescência, e os excelentes José Condé e Osman Lins, de sucesso atual. "Exceções que confirmam a regra", concluiu ele, categórico.

Não pretendo deter-me nesse assunto, espero que mestre Gilberto dele se ocupe um dia e o esclareça completamente. Fico pensando se realmente a tradição da novelística baiana é assim tão poderosa, capaz de comparar-se com a do Ceará, com seus José de Alencar, Adolfo Caminha, Domingo Olympio, Manuel de Oliveira Paiva, com a do Maranhão com seus dois grandes Azevedo, Aluísio e Artur, com Coelho Neto. Recordo os nomes de Xavier Marques, de Lindolfo Rocha, de Cardoso de Oliveira e de Afrânio Peixoto. Maior, sem dúvida, é a tradição poética, vinda de Gregório de Matos, dando-lhe ainda hoje poetas como Sosigenes Costa, Godofredo Filho, Carvalho Filho, os sonetos de Jair Gramacho. O certo, no entanto, é viver a novelística baiana atualmente um tempo excepcional, que a situa no primeiro plano no panorama literário brasileiro. Se nas décadas anteriores ela nos dera esperanças de um ruidoso despertar com livros como "Corja", de João Cordeiro, e "O Alambique" de Clóvis Amorim, hoje tais esperanças são a realidade mais indiscutível. Com um detalhe que agita minha vaidade grapiúna: a parte mais densa e romanesca dessa novelística procede da zona do cacau, desse sofrido, dramático, heróico e pitoresco sul do Estado. Quatro ficcionistas importantes, cuja obra conta em nossa atualidade literária, vêm dali: Adonias Filho, James Amado, Jorge Medauar, Hélio Pólvora. Mas fora dos temas e da paisagem do cacau, estão Dias da Costa e Vasconcelos Maia, nossos mestres do conto baiano; estão Herberto Sales, da zona dos garimpos, D. Martins de Oliveira e Rui Santos, do Rio São Francisco. Nestor Duarte, com seus romances de densa temática, Santos Morais, cujo romance, a sair, tem provocado entusiasmo nos que leram os originais, o contista José Pedreira, de tão aguda sensibilidade, outros mais jovens também. Entre eles, o autor dos contos de "A dura lei dos homens", Ariovaldo Matos, já autor de um romance e jornalista dos melhores.

O romance com que Ariovaldo Matos estreou em livro, publicado em 1956(creio), "Corta-Braço", sofria dos naturais defeitos dos romances de estréia, agravados por certos maneirismos que marcavam, na ocasião, toda a literatura de conteúdo mais progressista, politicamente falando. Tais maneirismos conduziam a uma limitação da temática e, sobretudo, a uma limitação no tratamento dos temas. Esses defeitos foram universais, atingindo toda literatura de esquerda. Deles sofremos todos, naquele então. Tais deficiências e mais as habituais nos livros de estréia, não conseguiram, no entanto, afogar a presença do ficcionista nato, do homem nascido para contar histórias, para recriar a realidade em termos artísticos, para colocar vivos, diante do leitor, personagens e ambientes. Desde então passou a ficção brasileira a contar com mais um nome, promessa que hoje se afirma definitiva com os contos desta "A dura lei dos homens".

Esse Ariovaldo Matos traz no sangue o demônio da literatura. Seu pai, que eu conheço e estimo, foi uma figura ligada à vida artística da Bahia, colecionador de bibelôs, homem da noite quando a noite ainda não era crônica elegante de jornal, com evidentes tendências literárias sufocadas, tendo cometido certamente seus sonetos. Um irmão de Ariovaldo, Almir [Autor de "Em agosto Getúlio ficou só" e "Furacão sobre Cuba"], era uma vocação de crítico de literatura, arrastado para a política e buscando nela realizar-se. Em Ariovaldo, a vocação literária foi mais poderosa que todos os outros chamados. Terminou por impor-se, vencendo mesmo o jornalista ágil, o repórter de incomum vivacidade. Seus contos, agora reunidos em livro revelam uma outra maturidade literária que o romancista estreante ainda não possuía, um domínio da técnica da construção do conto, uma sobriedade nas palavras que torna a emoção mais intensa. O conto que da título ao livro é realmente muito bom. Nenhum exagero num tema tão perigoso, onde facilmente pode o escritor perder-se em busca de fáceis efeitos. Outro conto que me parece muito bem realizado é o que nos conta a história de um jovem jogador de futebol. Mas assim equilibrados e ricos de drama e poesia, são todas as histórias de Ariovaldo Matos, agrupadas nesse volume. Trata-se de um escritor autêntico, cheio de generosa ternura pelos homens, sabendo compreendê-los, viver seus dramas, transformá-los em obras de arte. Com esse livro, ganha o conto brasileiro, gênero que vem crescendo em número e qualidade, um cultor de primeira ordem.

Vem realmente o conto adquirindo uma grande importância. Hoje é talvez o gênero preferido pelos jovens. No entanto, é necessário constatar a existência de uma tendência a levar ao exagero o tratamento formal, abandonando quase por completo (em certos casos completamente) o tema e aquilo que é, no fundo e sempre a essência mesmo da narração: a história e a emoção que dela decorre. Certos jovens contistas são frios como o Pólo Norte e seus temas não passam , por vezes, de anedotas truncadas. Uma das qualidades mais importantes desse livro de Ariovaldo Matos é que ele rompe com tal tendência. Não tem o jovem escritor baiano medo dos temas, de encará-los de frente, de ir buscar na vida vivida e verdadeira os assuntos a tratar, a transformar em literatura. E isso não acontece por acaso. É que esse escritor não está se formando e crescendo num triste gabinete entupido de livros estrangeiros. Ele está crescendo como escritor é no meio da rua entre o povo, sorvendo vida por todos os poros. Como o poeta de quem fala Lorca, ele não é feito de tinta e papel. É de carne e sangue, felizmente. No que, aliás, mostra-se fiel à marca mais poderosa de toda a literatura baiana - poesia, ficção, ensaio - sua ligação profunda com a vida e os problemas do homem.

Rio, agosto de 1959
Prefácio para "A Dura Lei dos Homens", Ed. São José, 1965.




Sobre "A Escolha"
Gláuber Rocha

"A Engrenagem" é sem dúvida uma peça polêmica. Fora de dúvida, está distante do alcance o grande público. Os iniciados, entretanto, muito têm a meditar sobre a "mensagem" da obra de Ariovaldo Matos que apesar de ser um escritor baiano aborda na peça um tema universalíssimo. Não se enquadra na linha da dramaturgia nacional. É originalíssima sob este aspecto. Nada tem de Nelson Rodrigues, Magalhães Júnior, e até mesmo, Plínio Marcos, o mais moderno de nossos dramaturgos. Fica a nosso ver, entre Brecht e Ionesco, sobretudo no que tem de Universal.

O personagem Tancredo, o desembestado, que a princípio seduz, em seguida se revela um sórdido e a platéia, democraticamente, fica livre para criticar seu comportamento e sua ideologia. Sem exageros, se pode dizer que Tancredo é uma espécie de "Boca de Ouro" do mestre Nelson Rodrigues. Mas, aqui Ariovaldo Matos faz o que Nelson omite: insere o personagem numa realidade social. Tancredo é um produto da classe média subdesenvolvida, um revoltado que se libera pelo anarquismo vulgar, mas que, no fundo, já se compromete com uma nova estrutura: o mundo dos negócios que conquista com sua aventura.
Para um teatro que teve o grande período de Martin Gonçalves, "A Escolha" é um legítimo fruto de uma semente plantada em território árido e sujeito a fofocas e trovoadas... Bastaria uma produção do nível deste texto para justificar um processo teatral na Bahia.

Gláuber Rocha, cineasta, falecido. Texto publicado no volume "Teatro"



Nos tempos de Getúlio
Marcos Santarita

Os Dias do Medo, do jornalista e ficcionista baiano Ariovaldo Matos, 52 anos, reforça e engrandece duas tendências que, aos poucos, depois de muitos desvarios pelos quais passou nossa literatura e nossa vida nacional, vêm se firmando no romance baiano. A primeira é o abandono de experimentalismos às vezes interessantes, mas quase sempre inócuos em favor de uma maior comunicação com o leitor. A Segunda, a tentativa de buscar na História do país, uma explicação para a barbárie que se abateu sobre nós por quase 15 anos.

O livro de Ariovaldo narra as supostas memórias de um senador da República, Antônio Petrucci, editadas por seu secretário, o bacharel Abelardo d'Antunes, que ao fazer esse trabalho se envolve aos poucos num hetero-homossexualismo, menageâquatre com a datilógrafa, o namoradinho e a psicanalista dela. O senador Petrucci, porém, é o centro da história, personagem típico - no sentido que Górki e Luckács dão a este termo - muito bem construído, desde sua infância de filho de imigrantes nas areias da Pituba, seu ódio à mãe, associado de nojo pela condição de mulher dela, seus ardores sexuais com empregadinhas e finalmente sua corrupção nas mãos de um professor de Direito, homossexual, que o encaminha na vida, isto é, política.

Na verdade, há alguma coisa de Saul Belov na construção do Senador Petrucci, em suas contradições, sua perplexidade diante dos acontecimentos da História que o envolve - ele, velha raposa política - sem lhe dar chance de atuar sobre eles. São muito ilustrativas, neste aspecto, suas definições da vida de um político, mais preocupado com os donos dos currais eleitorais do interior da Bahia do que com as grandes crises mundiais - a que pode funcionar nos tempos de relativa normalidade, mas é fatal nos momentos óbvios da História, como ele próprio vem a descobrir ao fazer o elogio de Franco, na Guerra Civil espanhola, pensando estar agradando a Getúlio.

Mas não é, o retrato de Tonio Petrucci, um foto em preto e branco. A compaixão, marca do criador, está sempre presente na criação de Ariovaldo Matos. Sim, o senador é corrupto, oportunista, venal, mas tem consciência disso, e estas, são as armas de que vale para sobreviver e, se possível, vencer num mundo em que estas são as regras. E o mundo em que o jovem professor entra, ao passar a vida adulta, é o das trevas da década de 30, quando Getúlio enveredava pelos caminhos de aprendiz de Hitler e Mussolini.

Em tudo isto, porém, ele tenta manter sua dignidade, um mínimo que seja, e chega mesmo, às vezes, à temeridade. É no fim, diante da perplexidade causada pelo golpe de 1937, não se entrega - de todo. É uma pena que o romance se encerre ai, pois fica dito, no início, que o senador chegou até quase o fim da década de 60. É pena, também, que as transas do editor com a datilógrafa não sejam melhor exploradas, restringindo-se a bilhetinhos trocados pelos dois entre os capítulos podados - algo muito esquemático. Mas talvez, quem sabe, tenha sido este o último tributo que o autor não pôde deixar de pagar ao formalismo. Uma pena.

Artigo publicado no "Jornal do Brasil", em 1979.



Ari, um jornalista
Othon Jambeiro

Enquanto vivemos, temos muitos modelos de comportamento. Na infância e adolescência, o pai, algum tio ou irmão mais velho, amigos bem-sucedidos com as garotas ou bons jogadores de futebol, e assim por diante. Na juventude, a natural e progressiva reformulação de nossas referências sociais trazem ao palco outras figuras. São atores, intelectuais, artistas, que passam a conviver com pelo menos parte dos modelos anteriores no nosso imaginário. Recortados aqui e ali, em pedaços de conduta que usamos para nos construir, estes modelos aos poucos se esvaem de nossas mentes. Usados no que nos convém, são depois jogados no esquecimento, descidos do Olimpo, banalizados.

Há, contudo, os que não sucumbem à cruel cirurgia de extinção que reduz quase todas as personagens desimportantes, restos imprestáveis. Os que ficam, ainda que mutilados num ou noutro aspecto, são os modelos verdadeiros, consistentes, que nossa engenharia humana não consegue dividir em partes. Guardam uma integridade que resiste ao desmonte. Exibem uma articulação moral, psicológica, profissional, cultural, social, política, ideológica, que impossibilita separar o homem do que faz, do que pensa, de como age, do que produz. São unos.
Ariovaldo Matos era um destes seres humanos indivisíveis. Se tomado como modelo vinha por inteiro. Não importa se quem o admirava preferisse o político, ou o escritor, ou o teatrólogo, porque logo concluiria que o comportamento político, os livros e contos, as peças teatrais traziam a mesma compreensão da vida, da sociedade, dos homens. A expressão do teatrólogo estava na política, assim como a expressão do escritor estava nas peças teatrais, e assim como o político se esparramava às vezes nas linhas, às vezes nas entrelinhas de tudo que produzia.

Ari foi um dos mais intensos modelos de comportamento que passaram na minha vida. Capturei-o para o meu imaginário no dia-a-dia da redação do semanário Folha da Bahia*. Era um sujeito com vocação inegável e consolidada para o jornalismo, um editor na acepção plena do termo, um líder intelectual, um formador de profissionais. Corrigia os erros usando ora a crítica franca, dura mesmo, ora a lógica implacável da relação entre os fatos e de seu referencial político, econômico, social e cultural. Dominante, impunha-se pelo saber fazer e pelo saber pensar. Era um jornalista, em primeiro lugar, e um chefe de redação em segundo. Um chefe que decidia, que tinha a última palavra quando necessário, que assumia ser ponto final no comando do jornal.

Na Folha da Bahia ele era um misto de redator-chefe, copy-desk e chefe de reportagem. Havia vários profissionais de alto valor sob seu comando, mas repórter mesmo, durante boa parte da vida do jornal, havia somente um: eu. Que além disso, estimulado por Ari, também acompanhava a composição, a revisão, a montagem e a impressão na gráfica. Uma espécie de secretário gráfico capenga, porque meu poder decisório era rigorosamente nenhum. Mas ele praticamente me obrigava a isto, tão forte era sua insistência, porque acreditava - e explicitava freqüentemente - que o verdadeiro jornalista tinha de entender como o jornal era feito, isto é, todo o processo produtivo, desde a reportagem até a distribuição. Quando, mais tarde, entrei para o curso de jornalismo, na Universidade, confirmei que tinha razão.

Fechada a Folha da Bahia pelo Exército, em 1964, voltei a trabalhar com Ari, em 1967, por três meses, como secretário da redação do IC Shopping News. Ele era o redator-chefe. Aperfeiçoei ali, com ele, meus conhecimentos de diagramação. Exatamente aqueles conhecimentos que eu tinha adquirido acompanhando a composição e a montagem das páginas da Folha da Bahia na gráfica onde era impresso. Sob seu comando, escrevia também pequenas notas, mas basicamente cuidava do aspecto gráfico do IC. No outro turno trabalhava - também aplicando o que tinha aprendido com ele - como correspondente da Folha de São Paulo.

Convivi com vários outros profissionais e tive bons professores no Curso de Jornalismo da Ufba. Deles tirei o que pude de conhecimento e de comportamento na vida privada e no exercício profissional. Ari, contudo, marcou-me definitivamente, por pelo menos duas razões fortes, que facilmente identifico ao olhar para o passado. Primeiro, pela clareza e objetividade com que tratava os assuntos, buscando a essência dos fatos para fundamentar suas análises. E segundo, pela convicção com que exercia o jornalismo. Enquanto profissional, era jornalista. E só. E isso lhe bastava. Tudo o mais que foi decorreu daí.

Sua herança intelectual emerge do jornalismo, exercido não apaixonadamente, mas politicamente, no amplo sentido de que esta atividade profissional, assim como a dos políticos, molda a vida em sociedade.

Nota
* Semanário que circulou em Salvador no período de 1963 a 1964, empastelado pelo golpe de abril de 1964.


Othon Jambeiro é jornalista, professor da Facom e vice-reitor da Universidade Federal da Bahia. Texto publicado em "A Ostra Azul", coletânea de contos de Ariovaldo Matos organizada por Guido Guerra, Ed. Artes Gráficas, 1999.



Um episódio
José Gorender

Em meados de 1963, julho ou agosto, talvez setembro, não lembro exatamente, realizou-se em Brasília um Congresso Nacional de Jornalistas. E lá estávamos nós, eu e Ariovaldo Matos, integrando a delegação baiana. Apesar de eventuais discordâncias e mesmo entreveros esporádicos, politicamente, e também profissionalmente, caminhávamos juntos, então jornalistas ambos do Jornal da Bahia, do semanário I.C. [Shopping News da Bahia] , que fundáramos no ano anterior, e ainda de um outro semanário, este eminentemente político, a Folha da Bahia.

O clima em Brasília mostrava-se tenso, já prenunciando a crise e o golpe de 1964, com debates acirrados na Câmara e no Senado, greves, manifestações sindicais e populares. Uma noite, já encerrados os trabalhos do dia, fomos procurados por uma comitiva de dirigentes sindicais e lideranças populares, vinha uma multidão de manifestantes. E atrás, um destacamento do Exército, dispondo-se os soldados, ameaçadoramente, lado a lado, empunhando suas armas e cercando o local. E nunca soube se integravam o já falado dispositivo militar do almirante Assis Brasil ou se viriam se incorporar ao movimento golpista.

Os dirigentes do Congresso, assim como da Federação Nacional de Jornalistas, já se tinham retirado, os poucos que ainda permanecíamos no local consideramos não estar autorizados a falar em seu nome. Mas Ariovaldo discordou, trabalhadores e povo de Brasília buscavam a solidariedade dos jornalistas brasileiros, que não lhes devia faltar. E enquanto ainda discutíamos a respeito, seguindo-se a um dos oradores locais ouvimos o próprio Ariovaldo, ele que não era orador, habituado a escrever, não a falar em público, afirmando o apoio dos jornalistas brasileiros.

O episódio expressa, em certa medida, o que foi Ariovaldo Matos, corajoso, às vezes chegando às raias da temeridade, freqüentemente avesso à disciplina, mas preservando dignidade e esbanjando talento, qualidades que evidenciava como homem, jornalista e ativista político. E que, obviamente, estão presentes e inspiram toda a sua obra literária, pois também presentes em sua atividade de escritor.


José Gorender é Jornalista e crítico de arte, texto publicado em "A Ostra Azul", coletânea de contos de Ariovaldo Matos organizada por Guido Guerra, Ed. Artes Gráficas, 1999.




Meu velho
Fred Matos


Caro Guido,

Por culpa sua vivo um dilema. Quando você me perguntou se gostaria de escrever alguma coisa para o livro, com que os amigos pretendem homenagear meu pai, respondi um não curto e grosso. Poucos minutos depois eu já estava achando que deveria ter dito que sim. Agora já não sei se devo, se sou capaz de fazê-lo e mesmo se o seu convite não decorre apenas da gentileza com que você sempre me tratou.

Penso que o meu depoimento pode apenas revelar fatos interessantes do "velho" no que concerne ao nosso cotidiano familiar e nada mais. De todos pinço três, entre tantos do mesmo jaez, que foram marcantes na minha formação moral.
Quando tinha 11 ou 12 anos, eventualmente, eu surrupiava alguns trocados na carteira de Ari. Ele não se dava conta do desfalque porque nunca foi de ficar contando dinheiro, mas um dia me pegou em flagrante. Não disse uma única palavra, mas, desde então, durante muitos meses, todas as noites quando chegava em casa me entregava a carteira para que eu tomasse conta. Eu sabia que ele não tinha o cuidado de verificar quanto havia, mas mesmo assim eu nunca mais tive coragem de roubar um único tostão.

Quando ingressei no curso ginasial e levei para casa o primeiro boletim escolar daquele ano letivo, Ari recusou-se a assinar como "responsável". No dia seguinte acompanhou-me ao colégio e comunicou ao diretor que eu era o meu próprio responsável e que estava autorizado a assinar o boletim. Disso não resultou um aluno brilhante, nem eu o seria se meu pai ou minha mãe assinasse o meu boletim, mas desde então tenho assumido com responsabilidade, para o bem ou para o mal, as decisões que tomo a respeito da minha vida.

A data exata não me recordo, mas foi entre os anos de 68 e 70. Meu pai e José Gorender foram a julgamento em um tribunal militar acusados de subversão. Eu estava presente quando da leitura da sentença em que Ari foi condenado a nove meses de prisão. Antes que ele fosse levado para a Casa de Detenção pude ter alguns minutos com ele. Nessa ocasião, visivelmente preocupado com os dias difíceis que ele sabia que iríamos viver, apesar da certeza que a sua família seria socorrida pelos amigos se necessário, me fez ver que na condição de primogênito havia chegado a hora de assumir, temporariamente, os encargos de "homem da casa". Como se em sagração colocou-me no pulso o seu relógio. Minutos após, o seu advogado* tomou-me de volta o relógio alegando que Ari talvez precisasse ter algo de valor com que comprar proteção na prisão, se lhe colocassem em uma cela comum. Lembro-me que, adolescente e ainda sem o pleno entendimento da cautela do advogado, doeu-me mais me sentir privado do relógio que a própria prisão do meu pai. Na primeira visita que lhe fiz, ele e Gorender, já instalados em sela especial na Casa de Detenção, Ari repetiu o gesto e, enquanto esteve preso, usei o seu relógio como um cetro.


Nota

* Jayme Guimarães foi o advogado de Ariovaldo Matos.


Fred Matos é poeta e contista, texto de mensagem eletrônica enviada para o escritor Guido Guerra e publicado em A Ostra Azul, coletânea de contos de Ariovaldo Matos publicada em Fevereiro/1999.




Cronologia Básica*

1926 - Nasce a 24 de agosto, no bairro de Nazaré, à rua da Poeira, Salvador.

1945 - Ingressa no jornal "O Momento", órgão oficial do Partido Comunista na Bahia, do qual seria redator-chefe na década de 50.

1955 - Publica seu primeiro romance, "Corta-Braço", que abordava o problema da primeira invasão na cidade do Salvador, tema de estudo do antropólogo Thales de Azevedo. Edições Seiva.

1956 - Assume a iniciativa de fechar "O Momento", em conseqüência do racha no PCB provocado pelo "Informe Kruschev".

1957 - Funda o semanário "Sete Dias", que circula até 1958, no qual revelaria dois nomes de projeção nacional: Gláuber Rocha e João Ubaldo Ribeiro.

1958 - Chefia a reportagem do "Jornal da Bahia", onde inauguraria a coluna "Olho Mágico", assinada sob o pseudônimo de João das Botas. Ainda no Jba., adotaria mais dois pseudônimos: Jean Vailant para artigos de política internacional e Carlos Silveira para questões de política nacional.

1959 - O romance "Corta-Braço" é traduzido para o romeno.

1960 - Publica, pela Editora São José, Rio, o volume de contos "A Dura Lei dos Homens", detentor do Prêmio Prefeitura Municipal do Salvador.

1963 - Desliga-se do Jornal da Bahia, estréia na Rádio Cruzeiro da Bahia o programa "Falando de Política" e funda o semanário "Folha da Bahia", que seria empastelado em abril de 1964.

1964 - Comparece ao Comando da Sexta Região Militar para protestar contra a invasão da sua casa e a destruição do seu jornal, "A Folha da Bahia". É preso e recolhido ao Quartel do Barbalho, em seguida ao 19 BC.

1965 - Publica, pela Editora São José, Rio, o volume de contos "Últimos Sinos da Infância".

1967 - Conquista o Prêmio Xavier Marques, instituído pelo Governo da Bahia, com a novela "As Aventuras do Senador Tônio Petrucci". Conquista o Prêmio Jorge Amado para Dramaturgia, instituído pela Fundação Teatro Castro Alves, com a peça "A Escolha ou O Desembestado", encenada no Teatro Santo Antônio, sob a direção de Orlando Senna, com Lourival Pariz, Vinícius Salvatori e Rita Maria.

1969 - Estréia de sua segunda peça teatral, "A Engrenagem", também sob a direção de Orlando Senna, com Lourival Pariz, Vinícius Salvatori e Paula Martins, no Teatro Castro Alves.

1970 - "O Desembestado" estréia em São Paulo, no Teatro Paiol, com Perry Salles, sob a direção de Orlando Senna. É condenado pela Justiça Militar e recolhido à Casa de Detenção, onde reescreve "As Aventuras do Senador Tônio Petrucci", com título definitivo : "Os Dias do Medo". Publica o volume "Teatro", com os textos das peças "O Desembestado" e "A Engrenagem".

1971 - "O Desembestado" é adaptado por Antunes Filho para a TV Cultura.

1974 - O conto "A Doce Lei dos Homens" é traduzido na Rússia e incluída numa antologia de contos.

1975 - A Censura Federal veta integralmente sua peça teatral "O Ringue". Publica o volume de contos "Anjos no Ringue", pelas Edições Estuário.

1978 - Conquista o Prêmio D. Martins de Oliveira, instituído pelo Governo da Bahia, com as narrativas que compõem o volume "Colagem desvairada em manhã de carnaval". É encenada sua peça teatral "E todos foram heróis, cada um a seu modo", vencedora do Prêmio Xisto Bahia, também instituído pelo Governo da Bahia, no Teatro Gamboa, sob a direção de Eduardo Cabús.

1979 - Publica o romance "Os Dias do Medo", pela Livraria Cultura, de São Paulo.

1980 - Estréia seu novo texto teatral, "Irani ou As Interrogações", na Sala do Coro do Teatro Castro Alves.

1981 - A Fundação Cultural do Estado da Bahia publica, em sua coleção Casa da Torre, o volume de contos "Colagem desvairada em manhã de carnaval".

1982 - Escreve o romance "Anjos Caiados" e a peça "Bibi Telefona", inéditos.

1983 - Escreve o romance "Quinteto de Ondina", inédito.

1984 - Inicia a redação de um novo romance: "Famílias em Fogo".

1986 - Interrompe o romance iniciado para desenvolver novo projeto de contos que ficaram inéditos até a publicação da Coletânea "A Ostra Azul" publicada em 1999 pela Editora Artes Gráficas.

1988 - Escreve a introdução à segunda edição do romance "Corta Braço", publicado um mês após a sua morte. Morre a 8 de julho.

* A adaptação do drama "O Gonzaga", de Castro Alves, não figura entre os dados do Autor: é que, por motivos de natureza política, ele não pôde assiná-la. O texto original encontra-se em seus arquivos: cada página está rubricada, a indicar ter sido o texto definitivo. A direção do espetáculo foi de Orlando Senna.




A DOCE LEI DOS HOMENS
(conto)

C´est la douce loi des hommes
De changer l´eau en lumière
Le revê en réalité
Et les ennemis en frères.

Paul Eluard


Era gostoso caminhar, os pés descalços sobre a areia úmida, espiando o sol que ia nascendo, bem longe, atrás das palmeiras e do farol de Itapuã. Estava como num encantamento, mais ou menos igual ao daquela tarde em que, na colina verde de Mont‘Serrat, senti o corpo trêmulo da primeira namorada. Ou quando, uma manhã, descobri o mistério e a maravilha de um sorriso, o sorriso do meu primeiro filho.

Assim eu caminhava.

Tudo desapareceu quando vi o homem sobre a areia. Esqueci o sol e o mar, as espumas que se desmanchavam na praia também esqueci; como se tudo desaparecesse. Como se a vida sumisse de repente e, substituindo-a, surgisse a morte.

Ele estava caído sobre a areia. Já não me recordo, exatamente, se andei ou se corri. Lembro que procurei socorrê-lo, mas logo o vi morto, ou melhor, tive a impressão de que estava morto. Voltei a ouvir o mar, e, de novo reparando nas espumas que se dissolviam a seus pés, imaginei que talvez fosse um náufrago ou um suicida. Estava vestido, dos sapatos à gravata.

Agora, tantos anos passados, já não lhe recordo a fisionomia. Relembro alguns dos traços essenciais. Mas, os detalhes configurativos, esses elementos tão definidores, eu os esqueci. Não era velho. Talvez uns 28 ou 30 anos. Um pouco magro, mas não o bastante para ser notado. Numa palavra: era um homem comum, sem nada de extraordinário, um desses homens que fazem a multidão e nela se integram. Sei, ademais, que era sereno, sem angústias aparentes. De sua serenidade jamais hei de esquecer.

Apalpei-lhe o peito, buscando o coração. Queria saber se estava morto. Ele, então, sorriu. Espantei-me. Devo ter revelado terror, porque procurou tranqüilizar-me:

— Fique calado!

Balbuciei qualquer coisa e ele, de novo, sorriu. Um sorriso calmo, espontâneo, um sorriso que seu rosto tornava necessário, um sorriso... Não sei bem explicar: direi apenas, sem temer exageros, que nenhum outro rosto poderia sorrir como o dele. Sem beleza, mas sereno, algo infantil, um pouco feminino talvez.

Ainda deitado, com os olhos no céu, pediu-me:

— Por favor, jogue fora esta caixa. Jogue no mar.

Em uma caixinha de pastilha. Fiz-lhe a vontade e ele suspirou. Depois, disse:

— O senhor nunca me viu.

Confirmei, batendo a cabeça.

— Talvez — acrescentou — o senhor nunca mais me veja.

— Depende...

— Não, o senhor jamais me verá novamente. Salvo...

— O quê?

Sorriu uma vez e disse com misteriosa certeza:

— De qualquer forma, o senhor jamais me esquecerá.

Levantou-se, sacudiu a roupa e pediu que eu o acompanhasse. Obedeci, e quando, na curva da estrada, um ônibus apareceu, ele falou com rapidez:

— Por favor, diga-me seu nome e endereço.

Mas uma vez obedeci. Atônito, voltei à praia e, ao chegar onde o tinha encontrado, vi-me com um embrulho nas mãos, um embrulho que ele me tinha dado.

Agora, o administrador do cemitério, as famílias dos que morrem, os médicos que são legistas, meus parentes, com exceção, apenas, de minha esposa — agora, talvez eles pensem que sou um louco.

Antigamente eu não lia, nos jornais, as notícias de crime. Sempre as odiei. Entendo que, apresentadas com sensacionalismo, mal escritas, desumanas pelos objetivos que perseguem, elas estimulam novos crimes. Sobretudo se se relacionam com suicídios.

Contudo, depois que o encontrei, eu devorava essas notícias, atento aos seus menores detalhes, e sempre que lhe presumia a participação, num crime ou suicídio, notadamente suicídio, eu ia pessoalmente verificá-lo. Ah! Quantas vezes me reencontrei, sofrendo terrivelmente nos espetáculos degradantes das necropsias! Quantas vezes senti, contra meus olhos, dezenas de olhos que me feriam, nos enterros a que compareci, intruso e desvairado, querendo encontrá-lo.

Nunca me disseram, jamais tiveram a audácia da menor alusão, mas eu sentia que os parentes tratavam-me como a um estranho, sem naturalidade, e, por cúmulo de azar, o administrador do cemitério veio morar em minha rua, a todos falando que eu, mais de uma vez pedira-lhe que abrisse os caixões de modo a permitir-me ver, com meus olhos, os rostos dos mortos.

É mesmo provável que meu filho mais velho ache estranho — ou melhor, achasse estranho — que eu lhe desculpasse tudo, até mesmo folhear meus livros, tudo enfim, menos tocar, sequer tocar, naquele embrulho. Foi como uma maldição. Agora, felizmente, já estou livre. Repito: reencontrei-me. De novo sou um homem tranqüilo, de novo compreendo o velho Gorki afirmar a nobreza da palavra homem, a beleza de seu significado.

Creio que, até agora, não me fiz entendido, como desejo. De modo que é melhor contar a história, passo a passo, tal como as coisas sucederam.

Já assinalei, que, quando ele partiu, no ônibus, fiquei de posse do embrulho que me havia entregue. Talvez não me tenha dito nada. Na realidade, tenho a certeza que não falou. Mas, dominou-me a convicção — de onde nasceu, não sei — de que eu não deveria abrir o embrulho antes que mo ordenasse. Assim decidi, não obstante estar igualmente convicto de que jamais o tornaria ver.

E guardei o embrulho como se fora um objeto sagrado, não o violando. Assumira, comigo mesmo uma obrigação natural, sem imposições, senão as que me ditavam a consciência e, talvez o coração.

Alguns anos se passaram, não sei quantos. A partir daquele fim de madrugada, quando o encontrei, perdi, em certa medida, a noção do tempo. As semanas foram dias, os meses foram os anos. Anos de angústia e desespero, dias e noites terríveis ao longo dos quais, sem razões que o conhecimento explicasse, transfigurei-me, perdi a tranqüilidade, o bom humor, entregando-me a prolongados momentos de solidão, essa solidão que nos conduz a olhar para dentro de nós mesmos, valorizando cada detalhe, cada minudência. Mas, não era a solidão calma que permite a análise ponderada, a valorização consciente. Era um exame turbulento, produzindo angústias, crescente intranqüilidade, porque, nada, absolutamente nada, explicava a mudança do meu comportamento. Não explicava porque aqueles rápidos minutos em que o conhecera tinham sido tão poderosos e tão significativos, exigindo-me tanto. Não explicava a certeza com que ele me falara (“... o senhor jamais me esquecerá”) e o motivo porque, como um tolo, obedecia; e, obedecendo, modificava completamente a minha vida. Às vezes exprobrava-me, tinha ímpetos de agarrar o embrulho e atirá-lo ao fogo, libertar-me. Mas eram ímpetos passageiros; e, logo após, a lassidão voltava, as angústias vinham em seguida — e eu me prostrava àquela incerteza, àquele estúpido desespero. Essa hesitação passou a marcar minha conduta, em tudo, durante dias, semanas, meses sucessivos, e eu tinha consciência de que minha esposa sofria comigo, sem saber da origem de tudo aquilo e mais sofria porque ignorava o remédio que me poderia salvar. Ela apenas sabia do embrulho, sabia que ali estavam os motivos de meus sofrimentos, nada mais. Quanto de tortura suportou, sem uma palavra de protesto, sem um gesto de recriminação! Presumo o que não imaginou, e, imaginando, o que não desejou fazer para ajudar-me, inutilmente.

Uma noite, a vi inteiramente mudada, como se soubesse de tudo, como se ela própria tivesse vencido a angústia. Surpreendi-me, sobretudo porque ela sorria com desvelo. Perguntei:

— Alguma coisa?

— Sim, uma carta — e de novo sorriu.

— Onde?

— É dele!

A princípio revoltei-me e quase gritei:

— Quem mandou abrir?

Muito calma, como um médico a convencer um enfermo, ela respondeu:

— Você sempre me autorizou a abrir suas cartas.

Veja: nada distingue esta das outras. O envelope comum, o seu nome e o endereço escrito a máquina, nada que...

Consegui dominar-me e pedi:

— Perdão...

Ela sorriu, seus olhos azuis brilharam de alegria. Caminhou em direção ao meu gabinete. Depois de entregar-me a carta, pretextou algo (não me recordo o que) e saiu. Com sofreguidão comecei a ler... A carta? Vou transcrevê-la:

“Amigo...

Você receberá, dentro de pouco tempo, notícias minhas. Não se inquiete. Pesa-me o remorso de ter transformado sua vida, tirando-lhe, talvez, um pouco, de calma, acrescentando, às suas preocupações cotidianas, uma outra preocupação. Vi-lhe os gestos, naquela aurora, junto ao mar. Vi-lhe o terror, mas não apenas o terror, nos olhos, quando você me julgou morto. Vi que você não procurou saber quem eu era, quem eu sou, para socorrer-me. Compreendi, então, que você vê no homem, antes de tudo, um semelhante. Não direi que pessoas como você sejam raras. Ao contrário: acredito, e minha experiência de vida o comprova, que todos os homens são bons. A vida — essa vida que vivemos — é que os modifica, por força de razões as mais diversas. A índole, como fenômeno próprio de cada pessoa, é uma ficção, desde que se isole essa pessoa do conjunto social. Na praia, o primeiro que me encontrou — era noite ainda — apalpou-me o coração, não para senti-lo bater, para encontrar vida ou morte. Buscava-me o bolso, e no bolso a carteira. Levou-ma. Um outro, ao ver-me caído, murmurou — “um afogado!” – e correu, tomado de medo. Creio que não falou a ninguém. Depois, você apareceu. O primeiro, um ladrão; o segundo, um covarde; o terceiro, um homem.

Por isso eu lhe confiei o pacote. Não sei porque, tinha a certeza — devo continuar a tê-la? — que você não o abriria buscando seu conteúdo. Explico-lhe agora: são cartas. São cinco cartas. Repito: tenho certeza que você não as violou, não as leu, e essa certeza provém de uma suposição que me anima: a de que você e eu somos, de certo modo, iguais.

São cinco cartas de um suicida. O suicida fui eu. Será que você considera o suicídio como um ato de covardia? Creia-me: Existem momentos em que somente a morte salva, somente a morte remedia. Pensei ter vivido esses momentos, e busquei, na praia, a morte. Talvez deva dizer que sou um ex-suicida. Porque sobrevivi àqueles momentos. Imagine isto: um homem constrói toda a sua vida acreditando numa certeza, a ela se sacrificando, matando sentimentos profundos, sufocando desejos, justificando erros. E, de repente, todo o mundo que construía, no plano ideal, explode. A certeza era uma farsa. Talvez um cínico, diante de tal problema, dissesse: “bem, amanhã é outro dia...” Talvez um calculista frio, mestre na análise de sentimentos e imune a paixões, um a um, todos os aspectos do problema, considerasse suas causas e suas conseqüências, permitindo-se uma autocrítica percucientíssima, no fim do que se consideraria disposto a outra, repetindo Camões “muda-se o ser, mudam-se as substâncias...” Eu não. Porque sou como o poeta, eu sou todo coração!

Por que sobrevivi? Por que não caminhei águas adentro, atendendo ao que alguns dizem ser o chamado do mar?

Não me creia louco. Escute: quando eu buscava a morte no mar, no mar havia vida. Compreende? No mar havia jangadas, nas jangadas os pescadores, havia lua no céu, o vento batia nas folhas dos coqueiros, eu ouvi cantigas de crianças, de todas as crianças do mundo eu me lembrei, desejando que se dessem as mãos e cantassem a cirandinha... Foram momentos magníficos e eu renasci para a vida. Volvi-me todo para mim, apaixonado, apaixonado...

Compreenda: não era aquele o momento de morrer. Não era aquela a minha morte.

Não me quero alongar mais. Se, porventura, você for como eu — assim acredito — toda essa explicação será desnecessária. Você também se voltará para dentro de si e as coisas aparecerão claras, lúcidas.

Um abraço, um caloroso abraço. Recomende-me à sua esposa. Têm filhos? Se vocês os têm — desejo que sim — façam com que cantem rodas, cantem a história do cravo e da rosa, façam com que compreendam que a suprema alegria da vida é a de poder sonhar sem dormir, sonhar como eu sonhava, naquele começo de dia”.

A carta não trazia assinatura, senão um garrancho, um J imenso, seguido de um a ou um o. Não sei bem. O que é importante, todavia, é o seu PS. Assim:

“Queime as cartas, todas as cinco cartas”.

Queimei-as e, quando o fazia, minha esposa reapareceu. Ainda sorria, e como eu sorrisse também, olhando o fogo muito belo, ela perguntou:

— Ele parecia doente?

Respondi:

— Não! Ao contrário...

— Lembro-me daquela madrugada. Falei mesmo que você cometeria uma imprudência se saísse, para a praia, apenas de “short”. Recorda? Depois você voltou, trazia e embrulho, todo machucado. Não fizemos o nosso passeio...

Interrompi-a:

— Sairemos agora!

Os garotos — são três — dormiam. Andamos como namorados, de mãos dadas. A lua iluminava a praia, o mar cantava suas canções, o vento batia nas palmeiras e elas dançavam. Nem por um minuto ousamos falar. Belo é o mundo do silêncio, quando se ama. Os olhos libertam toda a sua riqueza de expressão, as mãos valorizam ao máximo os seus movimentos, um simples gesto substitui todo um poema. E, depois, a calma invade tudo, o mundo desaparece — apenas ficam os amantes, as águas, a noite, a natureza.

Ariovaldo Matos
Maio de 1957

Conto publicado no livro "A Dura Lei dos Homens". Editora São José. 1960, e em “A Ostra Azul”. Organização Guido Guerra. Salvador: Artes Gráficas, 1999.

8 comentários:

BAR DO BARDO disse...

A gênese permanece...

Fred Matos disse...

Com muitas diferenças, porém, Henrique.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Abração

Hercília Fernandes disse...

Fred,

grande a história de vida e literária de seu pai. Um enriquecimento para a memória cultural deste país, muitas vezes sem o devido cuidado de preservar o patrimônio cultural de seus filhos.

Esta é uma postagem que merece ser "impressa" para melhor leitura e (re)conhecimento. Obrigada por expandir a memória de seu pai entre nós.

Beijos, poetíssimo!
H.F.

Fred Matos disse...

Agradeço-lhe, Hercília.
Eu gostaria de ter tempo (ou de dinheiro para pagar quem pudesse fazer) para digitalizar a obra de Ari.
Beijos

Maurício disse...

Bonita homenagem, Fred. Destaco o soneto do Florisvaldo Mattos.
Abç

Fred Matos disse...

Eu também destaco, Mauricio. Comoveu-me muito este soneto escrito logo após a morte de Ari, bem como centenas de homenagens que tomei para mim como uma última lição do meu velho: nada há na vida mais importante que a amizade. Ari tinha adversários, mas não tinha inimigos.
Tanto era assim que, anos após a sua morte, a Prefeitura Municipal de Salvador, sob a administração da comunista Lídice da Mata, inaugurou a Sala de Imprensa Ariovaldo Matos. Para cumprir o protocolo, a prefeitura enviou convite ao governador do estado, Antônio Carlos Magalhães, inimigo declarado da prefeita: surpreendentemente, sem que ninguém esperasse ou pudesse prever, ACM apareceu para a inauguração. Até onde sei, foi o único encontro público entre ACM e Lídice.
Grande abraço

Belle disse...

Caro Fred, linda a homenagem ao seu pai.Trabalho com os textos dramáticos do seu pai aqui na Bahia, no mestrado da UFBA.Caso precise que alguem digitalize sua obra, estou a disposição. Seria uma rica contribuição ao trabalho que faço, pois eu poderia conhecer um pouco mais da escrita e da vida de Ari.

Fred Matos disse...

Belle,
Agradeço-lhe a visita, o comentário, e o oferecimento para digitalização dos textos de Ari.
Faz alguns anos que não moro mais em Salvador e os arquivos do meu pai ficaram com um dos meus irmãos.
Fico até constrangido, mas a verdade é que não sei em que estado estão e se ainda estão com este irmão que recentemente se mudou para o interior.

pesquisar nas horas e horas e meias