terça-feira, agosto 25

sem nexo


para Joeldo Holanda

ilustração: Caravaggio - a incredulidade de São Tomé



dos ébrios diálogos sem nexo
farei matéria-prima
para que não se oprima a minha sintaxe
ao ferro frio do que é aceito nos salões da elite
nos requerimentos e decretos
nos livros acadêmicos

terei talvez que me livrar da biblioteca
investir o tempo nos botecos
nos mercados populares
nos bancos das praças
nos braços das putas
no psy trance, no funk, no rap hip hop

ôôôôôôôôôôô

neste ponto o poema se interrompe

não ainda para configurar a ruptura

mas para evitar um final insosso

tentemos, então, uma feijoada

ou algo de igual sustança e alento

tentemos um copo de cachaça

uma roda de samba no morro

mas o final interrompido volta à tona

tal bosta que não tolera o fundo da latrina:

se eu sumir, não der notícia,
não me procurem
terei encontrado
mais que a sintaxe das ruas
as balas perdidas da policia
uma maca infecta no corredor do pronto-socorro
um empolgante tiroteio entre milícias
um traficante transtornado vestido de rambo
um rabo-de-saia que me armou uma cilada

ôôôôôôôôôôôô

três nós de dedos na madeira

toc-toc-toc
isola

é melhor não correr riscos
conformar-me à minha sintaxe oprimida
pedir outra dose de uísque on-the-rocks
ouvir uma valsa vienense
vestir um fraque alugado
ir a paris afundar no crediário
hipotecar a casa o gato o futuro
emitir três talões de cheques sem fundos
comer salada de chuchu tomate e alface
nem um grama de gordura
abaixo a picanha, o torresmo, o miolo de alcatra
olhe o seu colesterol

ôôôôôôôôôôôô

três nós de dedos na madeira

toc-toc-toc
isola

a vida não tem nexo, meu chapa


este poema...
ôôôôôôôôôôôô
é melhor não correr riscos

8 comentários:

Adriana Godoy disse...

Nossa, que delícia , que delírio, que poesia, que inspiração, que poema mais porreta. Adorei, Fred, vou ler de novo. beijo.

Maurício disse...

O poema começa com a promessa de uma ruptura: "dos ébrios diálogos sem nexo farei matéria-prima para que não se oprima a minha sintaxe..." logo interrompida por um breque, como se se tratasse de um samba no estilo de Moreira da Silva, retornando à toada anterior, "ôôôôôôôôôôô", na qual não consigo encontrar o cumprimento da promessa anunciada.
Mas o próprio poeta explica: "é melhor não correr riscos conformar-me à minha sintaxe oprimida".
Apesar disso e de ecos envergonhados de Álvaro de Campos, eu considero um bom poema.
Abç.

Sue disse...

Hoje ficamos sem o Aníbal Beça!

Bjs

Sue

Anônimo disse...

"sem nexo"?
mas em plena criação.

no reflexo da existência!

excelente!

abraço Fred
Vicente

Fred Matos disse...

Obrigado, Adriana.
Deixa-me contente que você tenha gostado.
Beijos

Fred Matos disse...

Muito atenta a sua leitura, Maurício. Agradeço-lhe a generosidade.
Grande abraço

Fred Matos disse...

É Su, perdemos. Foi uma perda imensa para a cultura brasileira.
Estou tristíssimo.
Beijos

Fred Matos disse...

Obrigado, Vicente.
A sua presença, leitura e comentário é sempre motivo de alegria.
Abração

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