quarta-feira, setembro 30

covardia



ilustração: Jan Saudek



Amanheço e a manhã passa fagueira,
mas canso ao esperar passar a tarde.
Que venha logo a noite, quando arde,
em versos graves, minha vida inteira.

Só à noite escrevo, pois sou covarde
e, à luz do sol, minha sina feiticeira
é recolher, para lenha da fogueira,
sonhos, dores e anseios. Sem alarde.

Somente à noite me é dado confessar
os pecados de uma vida sem razão
e desejos, a ferro e fogo sofreados.

Assim tem sido, pois não posso magoar
os que me amam, mas não vêem a solidão
que lhes oculto com sorrisos ensaiados.




Fred Matos
publicado em "Anomalias".
Editora Kelps
Setembro/2002

16 comentários:

Lara Amaral disse...

A gente se esconde da luz e se revela na poesia. Defende-se e protege os outros. Lindo soneto!
Obrigada pelo comentário, adorei.
Beijos.

Adriana Godoy disse...

Essa covardia faz bem, como a entendo, como são belos esses versos dignos de um grande poeta como você. Como a noite nos protege e incentiva. Lindo, Fred e vai fundo na alma. Beijo.

Tila Waltz disse...

Olá, a pior solidão é aquela que experimentamos mesmo estando rodeados dos que nos amam, entendo ser isso falta de alcance na pessoa que somos, sei lá, já experimentei isso e foi muito ruim, porém, hj vejo o quanto me beneficiei, entendi que nem todos podem responder às nossas expectativas. Abraços!
Adorei o Soneto.

Úrsula Avner disse...

Belo soneto Fred ! À noite, muitas vezes, o que está velado se expressa... Bj.

Ianê Mello disse...

Linda poesia! Quanta sensibilidade expressam esses versos que revelam alma do poeta!
A noite nos revela os desejos escondidos,nos possibilitando o real encontro com nós mesmos.
Obrigada pela visita e um grande abraço.

Unknown disse...

Oi Fred!

Solidão é a minha companheira de estrada, a vantagem que levo é que não tenho quem a perceba.

Lindo poema!

Beijos

Mirse

Fred Matos disse...

Lara,
Apesar da poesia também se prestar como manifestação das angústias do poeta, vejo-a como um texto ficcional, o que implica em dizer que o que a poesia revela não é necessariamente o sentimento do poeta como indivíduo, mas os sentimentos que ele pretende causar no leitor.
Obviamente, porém, numa instancia mais profunda de análise, é obvio que, mesmo nos textos mais ficcionais, mesmo na mais alucinada fantasia, o poeta se revela através da escolha (nem sempre consciente) do tema e de cada palavra do texto.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

Adriana,
Quiçá algumas covardias sejam atos da mais extrema coragem: a coragem de abdicar de anseios individuais, quase sempre mesquinhos, cuja satisfação nem sempre é efetivamente possível, mas que pode causar grandes sofrimentos nos que nos amam. Por outro lado, reprimir estes desejos gera uma energia que tanto pode resultar em infelicidade quanto ser canalizada para a criação poética (sublimação) que possibilita a satisfação em uma outra esfera: a esfera da fantasia.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos

Graça Pires disse...

"Que venha logo a noite, quando arde,
em versos graves, minha vida inteira"
Como quem procura as sombras para encontrar a luz...
Um belo poema, amigo.

Fred Matos disse...

Tila,

Concordo com você: a pior solidão é aquela que chamo de “solidão compartilhada”. Tenho um poema que fala dela:

http://eumeuoutro.blogspot.com/2009/06/solidao.html

Apesar de não gostar de usar a palavra “culpa”, se ela existe deve ser atribuída a quem se sente sozinho apesar de rodeado por pessoas que a ama e às quais também ama, mas assim é a natureza humana: sempre insatisfeita. Insatisfação, porém, que é motor para a criação artística e desenvolvimento da espécie.

Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.

Beijos

Fred Matos disse...

É exatamente assim como você diz, Úrsula.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

Pois é, Ianê: a solidão e o silêncio, sobretudo no silêncio, são propícios para “o real encontro com nós mesmos” e é fundamental que tenhamos estes momentos nos quais podemos despirmo-nos de todas as máscaras.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Beijos

Fred Matos disse...

Mirse,
Se a felicidade existe, asseguro-lhe que não depende de sermos ou não solitários. Não depende sequer de sermos ou não amados. Depende do quanto temos de amor-próprio e de descobrirmos os mecanismos que nos possibilitem extrair sempre o melhor de tudo, mesmo das coisas mais amargas.
Deixam-me sempre contente a sua visita, leitura e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

"Como quem procura as sombras para encontrar a luz..."

Pode parecer paradoxal, mas não é.
Agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário.

Beijos, Graça

Cris Animal disse...

Nossa amada solidão!
Ficar sozinho, sentir-se só é tão necessário como a água em nosso organismo.
Acho que a alma se alimenta disso.

beijos

Fred Matos disse...

Concordo com você, Cris, e agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário.
Beijos

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