ilustração: Cândido Portinari
a chuva,
primeiro gota a gota,
depois tempestuosa,
transbordando o Vaza Barris,
sua água escarlate,
sanguinolenta,
escamando torrões,
coágulos da terra,
enlameando os caminhos,
lavando o pó das pedras,
inundando o Belo Monte,
inundando o império,
submergindo o mundo,
molhava os sonhos do Conselheiro.
da infância,
semente da loucura e da razão,
pouco se sabe,
quase tudo é suposição.
o sertão sabe da seca,
da fome,
da sede.
o sertão sabe de Deus,
da esperança,
da fé.
o sertão sabe da dor,
carpida sem lágrimas,
sem esperdício d'água.
o sertão sabe da estiagem,
dos horários da missa,
dos dias do padre,
da submissão.
o menino,
órfão de mãe,
do pai que bebia,
da madrasta maltratos,
criado descalço,
sonhava o mar,
e sonhava com Cristo,
que morreu na cruz para nos salvar.
sonhava com leite e mel
escorrendo dos veios da terra.
sonha ainda
e espera por Dom Sebastião
que sairá das ondas,
à frente do seu exército,
para a nossa redenção.
no Ceará,
aqui,
acolá,
foi professor e caixeiro,
foi rábula,
foi vaqueiro,
teve mulher e dois filhos,
que pelo sonho largou,
pois um dia,
quarenta dias,
iguais uns aos outros
de sua sina peregrina,
Antônio recebeu a revelação divina:
"vai meu filho,
ergue minha casa,
conduz meu rebanho à terra prometida,
que é teu sonho".
Antônio obedeceu,
plantou catedrais de pedra e adobe
para que dobrem os sinos da fé,
despertando a eternidade.
Antônio prega onde não há padre,
ensina a Lei,
leva o batismo
e o mito do Cristo.
Antônio é conselheiro,
é amigo,
meigo companheiro na última unção.
Antônio é pai,
é filho,
é irmão.
do Ceará à Bahia,
onde passou foi ouvido,
fez-se do povo querido
e do Capeta inimigo.
uns diziam que era jagunço
fugido do Ceará,
onde,
por crime da morte,
da mãe e da mulher,
não podia mais voltar
e que,
vivendo de esmolas,
vagava de casa em casa,
de arraial em arraial,
de Chorochó à Vila do Conde,
de Geremoabo à Itapicuru,
nos grotões do sertão baiano,
pregando a rudes ouvintes,
purgando pública contrição
do pecado do sangue;
para o qual não há perdão.
mas, um dia,
sem reação,
por ser a monarquia poder de Deus emanado,
em Itapicuru foi preso
pra Salvador foi levado,
inquirido,
torturado,
de lá pra Fortaleza,
depois Quixeramobim,
chegando,
então,
por fim,
na sua terra natal,
onde foi logo liberto,
que contra ele a lei nada tinha a cobrar,
mas a lenda ainda corre
nas mil bocas dos Barrabás.
foi um dia de festa,
ladainhas e foguetório
quando Antônio voltou e convocou sua grei:
era chegada a hora por todos ansiada
de reunir o rebanho na terra anunciada.
em cada grotão nordestino
a boa nova chegou.
quem tinha propriedade,
botou preço sem apreço
vendeu por poucos trocados,
na pressa de ser o primeiro
nas terras do Nosso Senhor.
nas terras miseráveis do Arraial de Canudos,
onde nada se plantava,
nem criação se fazia,
fincou enfim sua cruz,
plantou uma cidade
às ordens do Senhor.
para cá, diariamente,
demandam os desesperados,
pois sua palavra santa,
é a Lei,
é a Verdade;
e onde era deserto,
trinta mil vidas vinculam
ao dele seus destinos,
em santa felicidade.
trovejam das tropas
tropel de burros abarrotados
de trapos, tralhas velhas, nas trilhas
onde chocalham cascavéis.
é uma estranha procissão:
homens, mulheres, crianças, anciões,
ansiando vida nova na nova Canaã.
os coronéis do sertão,
mal refeitos da perda dos escravos recém-libertos,
vêem apavorados sumir,
como corisco riscando o céu,
os braços que os nutrem.
para eles é um mistério que tantas bocas
possam encontrar o de comer
em sítio tão inóspito.
somente com Deus a prover
é possível o impossível.
e a notícia voou,
nas asas do ódio e do medo,
da inveja e da infâmia;
chegou a Salvador,
ao governador e ao bispo:
"põe esse homem no hospício,
lá é que é lugar de louco"
disse fazendo pouco,
o de batina ao de fraque.
agora é a república,
há no trono do imperador,
um governo de anticristos
maçons;
desafiando a lei
que o beato Conselheiro ensina.
foi quando a guerra começou.
primeiro chegou a polícia,
facilmente escorraçada,
que em cada moita do mato,
em cada fresta de pedra,
em cada buraco do chão,
há um cabra nordestino,
armado de foice ou facão;
mais que isso,
armado de fé
e do amor no Santo irmão.
dos macacos decapitados
ficamos com as armas de fogo
e com toda munição.
alguns dos que chegam passam pra nosso lado;
preferem morrer com Cristo que viver com o diabo.
mas o tinhoso é teimoso
e manda pra esparrela
novas levas de praças:
são tantos os que matamos
que em cada arbusto da estrada
há uma cabeça espetada
e o sangue na terra vermelha
é aqui mais farto que água.
agora é o exército nacional,
soldado, cabo, sargento,
tenente, coronel, general,
até o Ministro da Guerra
vindo do Rio de Janeiro.
vem soldado do norte,
vem soldado do sul,
vêm com obus e canhões,
metralhadoras, granadas,
mas Canudos não se rende,
e em dois anos de batalhas,
aqui se cozeu a mortalha do exército brasileiro.
quem é da terra não verga,
faz de fagulha braseiro.
aqui da minha trincheira,
a boca cheia de terra,
os olhos molhados de sangue,
vejo uma túnica azul,
um chapéus de abas largas,
cabelos até os ombros,
barba inculta desgrenhada,
olhar de sóis nascentes,
numa mão o livro santo,
na outra, qual cetro, um porrete,
caminhando sobre nuvens,
pastoreando as almas
dos cadáveres insepultos,
Santo Antônio Conselheiro,
em cujos pés me agarro.
Fred Matos
publicado em "Anomalias".
Editora Kelps
Setembro/2002
17 comentários:
Persegui as linhas talhadas na História e fui seguindo cada palavra do teu Poema Épico.
Um pouco de rapsódia, romanceiro, cancioneiro... tudo nele cabe.
E fico a pensar, quão bom seria se fosse assim ensinada a saga do Conselheiro nas salas de aula.
Magistral. Parabéns!
Katyuscia.
Tenho fascínio e respeito por esse tema. Grandes escritores, poetas e músicos eminentes falaram da luta do sertão, tão antiga e inspiradora. Seca, fome, Canudos e esperança... Lembrou-me Cordel do Fogo Encantado e muitos outros grandes nomes que de um tema triste e difícil souberam destacar na poesia a beleza e a luta. E vc o fez muito bem.
Abraços!
Deixa-me muito contente que você tenha gostado, Katyuscia.
Obrigado.
Beijos
Obrigado, Lara.
É um tema que também me fascina.
Ótimo fim de semana.
Beijos
Muito bom, Fred.
Para o seu comentário sobre o conto de Joyce, respondi dizendo que também tenho a Antologia do conto húngaro e que, por sinal, foi de meu tio Flávio, amigo de seu pai. Li o conto que vc recomendou, "Médicos". Gostei, mas Aramis adorou. Achei muito perto da fronteira com a mera anedota, muito ao modo de Maupassant, mas sem o talento do francês. Valeu a dica. Vc sabe do meu afã por conhecer e ler tudo.
fascinate , sim, sempre venho ver teu blog, gosto tanto! e aqui para te dar um abraço, com um frio tremendo que caiu de repente...
Hermoso y desgarrado.
Todos mis seguidores tenéis un pequeño presente en mi blog :-)Puedes ir a recogerlo si quieres. Un abrazo muy cordial.
Que bom ver você aqui, Gerana! Pois é, no caso do conto "médicos" a minha opinião é mais para a do Aramis. E, enquanto você lia "médicos" fui reler "Os mortos", de Joyce, para tentar descobrir por qual motivo eu não conseguia me recordar, sequer do tema, de um conto que é escolhido como o melhor do século em uma lista importante. Reli e cheguei a conclusão de que é por se tratar de um conto absolutamente comum: bem escrito, sim, mas sem nada, seja do ponto de vista da forma, seja do conteúdo, com capacidade de fixar-se indelevelmente na minha memória. Este é o principal critério que uso para dizer se uma obra de arte (literária ou não) é fora de série ou não. Evidentemente que é um critério muito pessoal, mas é o meu, na falta de um melhor.
Deixou-me mesmo muito contente que você tenha me visitado.
Obrigado
Beijos
Fascinante mesmo é o seu trabalho, Myra.
Que o frio passe rapidamente.
Obrigado mais uma vez, sobretudo pela sua amizade, que me orgulha e comove.
Ótimo fim de semana.
Beijos
Ana,
Agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário, bem como pelo presente.
Ótimo fim de semana.
Beijos
Não, Marcos, assim como nem todos os assassinados são profetas, nem todos os profetas são assassinados. Ocorre, contudo, que as vítimas de assassinato adquirem maior notoriedade que os profetas que não são assassinados. Eu, por exemplo, ainda estou vivo (risos).
Também não creio que tudo que é bom tenha um dono: até onde eu sei ninguém é dono dos astros todos que há no universo, nem sei a quem pertence a música do canto dos pássaros, o azul do céu, o verde do mar, o odor das flores: coisas estas que me parecem melhores que as coisas que têm donos.
O imperador não era dono do Brasil, assim como a rainha Elizabeth não é dona do Império Britânico.
Já Antônio Conselheiro era monarquista e viveu na transição entre a monarquia e a república: a guerra de canudos ocorreu já na república. Pelo que sei, se o sistema monárquico ainda vigorasse, ele não reagiria, como não reagiu quando foi preso e levado para o Ceará, porque acreditava que a monarquia era uma autoridade de inspiração divina.
Agradeço-lhe pela visita, leitura, comentário e por passar a acompanhar o blog.
Grande abraço
Gosto de imaginar que o Conselheiro era meu parente: temos ambos Mendes no nome (aliás, um sobrenome judeu).
O Sertão vai virar mar!
Virou poesia.
Que dilúvio!
de dor, de tragédia humana, demasiado humanba.
(Ah, e quero me lembrar, quando vejo essa foto me lembro, de que tirei uma foto diante desse quadro, Pietro Maria Bardi e eu, ele premiado como autor de melhor livro de prosa do ano, velhinho simpático, e eu, de poesia. Nunca vi essa foto. 1983. Vou acabar ficando velho.)
Um abração, Fred.
Abraço grande, Zé Carlos, bom receber a sua visita, leitura e comentário.
Ótimo fim de semana.
Fred, este poema fica bem no cancioneiro do Sertão "o sertão sabe da seca,
da fome,
da sede.
o sertão sabe de Deus,
da esperança,
da fé."
É uma parábola cujo herói consideraram louco como são considerados todos os que sonham...
Beijos.
Nossa, Fred. Que bonito! Voltarei sempre aqui. Obrigada por disponibilizar seus versos gratuitamente na internet. Dá vontade de comprar o livro. É o efeito "Free", descrito no novo livro de Chris Anderson?
Bjs
Graça,
Fico contente que você tenha pinçando um dos trechos que mais gosto do poema. O outro que mais gosto é este:
"trovejam das tropas
tropel de burros abarrotados
de trapos, tralhas velhas, nas trilhas
onde chocalham cascavéis."
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Beijos
Valéria,
Deixou-me muito contente que você tenha vindo conhecer meu blog, que tenha gostado e comentado o poema.
Quanto a questão colocada, eu não conheço o livro do Chris Anderson, portanto não sei dizer se é, ou não, pelo efeito "Free" que publico meus textos na internet, mas o motivo é que, embora escreva pelo prazer de escrever, compraz-me também saber como os textos são recebidos e compreendidos, coisa para a qual a internet é bem mais eficaz que o livro, sobretudo quando, como ocorre comigo, não se está inserido no mercado editorial e cada livro publicado significa um buraco nas finanças, mais espaço da casa ocupado com caixas de livros que não se consegue distribuir, apenas em troca de uma fugaz satisfação do ego.
Espero que você volte outras vezes.
Ótimo fim de semana.
Beijos
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