sexta-feira, abril 2

na noite das barricas bentas – parte 1





ilustração: Jan Saudek

The Reader of Dostoievsky, 2000



Nem rastro ficou. Só a notícia do estrago que nem se sabe se é lenda ou é fato de fato, conquanto aqui ninguém duvide, e contradição não se revele entre os relatos de uns e de outros que nem testemunhas foram, tanto tempo já passado, mas que nada omitem, contando tudo tintim por tintim. Maria Cachaça, cuja alcunha dispensa explicações e justifica o fétido bafo, como quem a tudo tivesse visto, arregala os olhos miúdos e confirma, atribuindo ao capeta o inusitado. A ciência não explica, nem se sabe se há relação de causa e efeito, mas se diz que aconteceu no dia em que o sol não nasceu, os relógios pararam e que, portanto, não consta do calendário daquele dezembro de 1900, vésperas de um novo século que se anunciava e de cuja ferocidade e desventuras não se podia então prever e é matéria de que aqui não tratarei.


Dia igual nunca houvera e não se sabe de viva alma que tenha tido coragem de pôr os pés além da porta. É bom que se diga que o fenômeno solar, apesar de circunscrito àquele povoado, já foi aceito pela comunidade científica, após exaustivos estudos, entretanto não conclusivos, mas referendado com base em depoimentos de alguns viajantes, que, tendo por lá passado, afiançaram o ocorrido, negando peremptoriamente a hipótese de coletiva alucinação, com o que concordam os peritos em anomalias psicológicas, em vista de que não estavam os forasteiros todos juntos, nem tampouco fora o mesmo o horário das suas chegadas a Poço Fundo, este fim de mundo onde agora me vejo estabelecido por transferência discricionária, imposta por perseguição política, para servir no posto de benefícios local. Vida de funcionário público tem dessas coisas, mas isto é também uma outra história.


Era um grito pavoroso, um grito humano, vindo de todo lugar e de lugar algum, um grito continuado como canto de cigarra e pungente como cio de gata, mas humano na sonoridade. Ecoava nas paredes o grito, único som audível capaz de romper a escuridão. Candeeiros eram inúteis. Velas, fósforo, nenhum lume, como se oxigênio não houvesse para nutrir as chamas. Inúteis também eram as palavras: nenhum som soava, exceto o grito absurdo vindo do nada. Homens, mulheres, crianças, choravam sem ruído, sem soluço, sem lágrimas. As orações, súplicas, arrependimentos, calavam nas almas beatas. É o fim do mundo, o purgatório, estamos mortos. Soube-se depois, quase todos pensaram. Até mesmo os bichos domesticados, os depoimentos relatam, sofreram conseqüências. Os cães, rabo entre as pernas, imóveis sob as camas. Os gatos, estes dormiram todo o tempo, nenhuma novidade. Dos pássaros, nenhum pio, imóveis nos poleiros das gaiolas. Os galos só cantaram quando no dia seguinte raiou a aurora e o sino anunciou a primeira missa do século novo. Nunca antes um culto congregara tanta gente em Poço Fundo, ocasião propícia e bem aproveitada pelo pároco para a conversão dos ateus e coleta de fundos para a reforma do templo. Pintura nova, novo telhado, paramentos limpos e engomados.


Os primeiros dias passaram, a rotina começava a se restabelecer, outros assuntos ocupando paulatinamente as prosas das comadres, foi quando as mulheres, absolutamente todas as mulheres, mesmo aquelas tidas como estéreis e as virgens, inclusive a carola que servia ao padre, Dona Mocinha, cabaço acima de qualquer suspeita, descobriram-se grávidas. Inconformado e ainda sem saber ser fenômeno coletivo, Amadeu, tio avô de Maria Cachaça, passou a esposa na faca e com ela o fruto do imponderável. A paixão tem seus desatinos. Sorte dele que o júri popular, todos os jurados também vítimas do inusitado, inocentou-o, mas não escapou da loucura, por divina condenação, e, desde então, maltrapilho, viveu perambulando as vilas da comarca.



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