sexta-feira, abril 2

na noite das barricas bentas – parte 4



Em metade do tempo que lhe fora concedido, o padre José trouxe a resposta da Igreja, comunicada a todas as autoridades de Poço Fundo, em reunião que se pretendia secreta, realizada no salão nobre da Câmara Municipal. Infelizmente não é possível, senhores, reconhecer Satanás por sua aparência. O nosso bispo foi enfático e me pediu que os lembrasse que Lúcifer foi o primeiro dos querubins, que permanecia na presença do grande Criador, e os incessantes raios de glória que cercavam o eterno Deus, repousavam sobre ele. Recomendou-me também que lhes lesse Ezequiel 28:12 a 15: “Assim diz o Senhor Jeová: Tu és o aferidor da medida, cheio de sabedoria e perfeito em formosura. Estavas no Éden, jardim de Deus; toda a pedra preciosa era a tua cobertura… Tu eras querubim ungido para proteger, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. Perfeito eras nos teus caminhos, desde o dia em que foste criado, até que se achou iniqüidade em ti.”. Os senhores entenderam? Está suficientemente claro?

Matemos-os. Matemos-os todos. Era a voz tonitruante de Adolfo rompendo o silêncio sepulcral que se estabelecera e ecoando entre os santos da nave, arrancando entusiasmados aplausos de uns e discretos apupos de outros.


Acalmem-se, senhores. Ouviu-se peremptório o vozeirão de Apolônio Pitomba, investido da autoridade do pomposo cargo de Secretário Extraordinário Para Assuntos Extraordinário. Deixemos que o padre José conclua a sua douta alocução.


Obrigado Dr. Apolônio. Retomou a palavra o pároco. Não, Sr. Adolfo, não é tão simples assim. Primeiro porque não poderíamos tomar medida tão radical sem certeza absoluta, depois, e mais importante, porque a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana já não é aquela da Inquisição. Somente a Deus, Sr. Adolfo, é dado o poder de vida e de morte. Se Deus, onipotente, onisciente e onipresente permitiu a Lúcifer o Reino das Trevas, não o exterminou simplesmente, ele tinha os seus motivos. São insondáveis os desígnios divinos, Sr. Adolfo. Da mesma forma devemos considerar os acontecimentos que nos têm inquietado.


Um fio anônimo de voz interrogou: - E não faremos nada?


Contudo, senhores, a Igreja não lavará as mãos como Pilatos. O bispo comprometeu-se a arregimentar centenas, milhares de padres que virão acompanhar os partos e batizar as crianças no exato momento em que nascerem. A prefeitura recenseara todas as grávidas e se incumbirá de providenciar uma barrica para cada, de modo que os padres possam mergulhar as crianças em água previamente benta.


Aqui preciso interromper o diálogo para lhes dizer que imagino o brilho no olhar de Apolônio Pitomba, o titular da SEPAE − Secretaria Extraordinária Para Assuntos Extraordinários, pois, enfim, sua entidade teria uma tarefa a cumprir e, mais importante, motivo relevante para solicitar uma boa suplementação orçamentária, afinal, além das barricas, pensou, será necessário acomodar e nutrir toda a leva de sacerdotes, além de jornalistas e outros curiosos. Não posso provar, nada há documentado, mas é de se supor que tenha rolado uma boa comissão de toda esta dinheirama. Os valores eram vultosos, o município pobre, socorreu-o o governo do estado em cujo ralo uma parte deve ter escoado, mas isto é um mero, corriqueiro e insignificante detalhe que não vem ao caso.


Agora ouço a voz de Adolfo exultando: Isto sim, isto sim, nós os afogaremos.


- Pelo amor de Deus, Sr. Adolfo. Não os afogaremos, será apenas um batizado coletivo, se alguns morrerem será por desígnio divino e não por nossas mãos. Retrucou o padre José.


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