sexta-feira, abril 2

na noite das barricas bentas – parte 3


Aqueles que conhecem o significado da palavra gratidão hão de entender esta breve interrupção.

Antes que eu me esqueça e porque creio oportuno que aqui o faça, peço-lhes vênia para registrar minha gratidão a Bartolomeu Borges, o poeta de Poço Fundo, titular da sua Secretaria de Educação e Cultura, guardião da memória escrita da cidade, por me haver franqueado acesso aos arquivos públicos. Insisto, querido editor: este é o local apropriado, não em uma nota ao pé da página ou mesmo na página das dedicatórias que só é lida pelos que lá têm o nome grafado.

Afastada a ameaça de cassação do seu mandato, quase todos os homens já instruídos para o procedimento obstetrício, Nicolau Miranda informou ao governador que seria bastante mandar a Poço Fundo uma pequena equipe médica para atender os casos mais complicados

Enquanto os homens se ocupavam das providências óbvias, do ramerrame, do comensurável, as mulheres conjeturavam o insondável. Lembremos-nos que naquela época a ciência ainda não desenvolvera técnica capaz de predizer qualquer característica de um nascituro. Deus nos livre de parir demônios. Diziam-se, umas às outras, primeiro à boca pequena, depois, movidas pelo medo, boca no mundo, lágrimas nos olhos. De todas esta seria a maior calamidade. Pensou Nicolau quando lhe chegou aos ouvidos o terrível vaticínio e convocou reunião secreta dos mais doutos e íntimos confrades. Não me quiseram ouvir, bradou Adolfo, ouçam-me agora, matemo-los todos. Naquele instante nem o padre José protestou e um profundo silêncio paralisou-os constrangidos. Silêncio rompido por Genésio Brito, o boticário, que com um fio hesitante de voz materializou a dúvida nos demais adormecida: E que cara tem o demônio? Será possível identificá-lo pela aparência? Todos os interrogativos olhares fuzilaram o padre José, apenas ele, somente ele, exclusivamente ele poderia entre todos esclarecer a teológica questão. Terei que recorrer ao bispo diocesano, talvez seja assunto da alçada do Sumo Pontífice. Não sei, nada posso lhes dizer agora, peço-lhes serenidade

Hoje os imagino, mais de cem anos passados, aptos a quaisquer ânimos, menos à serenidade. Porém, prisioneiros de sentimentos inconciliáveis, resolveram dar ao padre um prazo de dois meses para solucionar o problema. Tempo maior impossível porque outros dois meses seriam necessários para a formação de uma comissão executiva de extermínio que se encarregaria de planejar e coordenar todas as ações necessárias para salvar o mundo das hostes demoníacas. Das mulheres os buchos avolumavam

Foram dias terríveis aqueles de dúvida, e outras questões os sobressaltavam: Deveriam trazer de volta as esposas e filhas que mandaram parir em outras cidades? Assunto de tamanha gravidade poderia ser decidido na província? E se mais uma vez a notícia vazasse, como lidar com a opinião pública, com as autoridades judiciárias, com a imprensa? As mulheres aceitariam ver mortos os filhos, sobretudo se aparentemente normais? O diário do prefeito é talvez o documento mais angustiante escrito em toda a história da humanidade, mas demonstra quão ladino pode ser um homem público: “Estou decidido, não vou segurar sozinho a batata quente. Amanhã chamarei o Pitomba para conversar a sós e oferecerei ao salafrário a presidência executiva da comissão municipal de extermínio. Se ao cabo tudo correr a contento ele tentará capitalizar para si o sucesso do empreendimento, mas pior será se tudo isto der em merda e eu não tiver a quem atribuir a desgraça.”. E, anotado na noite seguinte: “O Pitomba caiu como um patinho. É tão estúpido que me pediu para mandar à câmara mensagem propondo a criação de uma secretaria extraordinária para assuntos extraordinários, para a qual o nomearei titular . Amanhã segue a mensagem que será aprovada por aclamação.


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