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domingo, dezembro 27

anotações para um romance


prelúdio


foto: Zoran Simic
fall into the creek




"Não há ausentes sem culpa,
nem presentes sem desculpa."

antigo brocado latino




Entre outras asneiras que integram os provérbios atribuídos à sabedoria popular, um, muito citado com acepção metafórica mais pertinente que o significado literal, diz que todos os rios correm para o oceano. Quis a natureza, porém, que o Tietê, nascido na serra do mar, corra do leste para o oeste.

Em alguns trechos é um rio largo e manso, como naquele no qual corta a chácara, próxima de Arujá, onde nasci e vivi meus primeiros anos. Em outros trechos o Tietê estreita-se e serpenteia violentamente entre os rochedos, despencando-se cachoeiras abaixo. Não o conheço todo, longe disso, mas sei que tem, no linguajar do povo de lá, mais de 150 léguas de sesmaria, e que, no seu singular curso do litoral para o interior, atravessa grandes cidades, das quais recebe esgoto e lixo.

Quando eu era menino, havia na chácara, à margem do rio, um caminho, com largura um pouco maior que a de um carro de bois, livremente usado pelos tropeiros, dos quais exigia-se apenas que não deixassem abertas as cancelas. Talvez o caminho ainda exista, mas não acredito que continue-se usando-o como passagem de viajantes. Certeza não tenho de nada, porém, porque quando papai morreu, faz mais de trinta anos, vendeu-se a chácara e mudamos para uma cidade do sertão da Bahia, onde moravam os parentes de mamãe, e, até poucos dias atrás a chácara, papai, o rio, Arujá, a infância, eram apenas esmaecidas lembranças de episódios e situações que agora voltam nítidas como coisa acontecida ontem.

Eu caçava passarinhos na mata à beira do Tietê, no dia que vi surgir no caminho, em sentido contrário ao do curso do rio, um homem montado num burro. Vai para o Rio de Janeiro, pensei, repetindo mentalmente o que ouvia dos adultos. Vão para São Paulo, mamãe dizia quando a tropa passava na direção do curso do rio. E, sem me entreter com os pensamentos, me entoquei no mato, porque "antes que o mal cresça, corte-se-lhe a cabeça" , “peixe grande come peixe pequeno” e “macaco não enxerga o seu rabo, mas enxerga o da cutia”, conforme os ensinamentos proverbiais de mamãe, dos quais nunca duvidei e que atestam que há mais atinados adágios que parvos prolóquios.

Não sei se é defeito só meu ou se é coisa natural em crianças daquela idade não conectar acontecimentos, exceto quando é nítida a relação de causa e efeito entre eles. O fato é que somente agora, tanto tempo depois, me parece obvia a ligação que há na seqüência de eventos que viria alterar o curso da minha vida, talvez tão radicalmente quanto as escarpas da Serra do Mar impedindo o Tietê, que nasce a apenas 20 quilômetros do litoral, de correr para o mar, determinando um curso de 1.150 quilômetros, atravessando São Paulo de sudeste a noroeste até desaguar no rio Paraná.

Mas não é sobre o Tietê esta narrativa. É sobre o curso da minha vida, que, como o rio da minha infância, corre no sentido invertido. E, assim como todos os rios do mundo sofrem a influência da topografia, sofri, e continuo sofrendo, como todos os seres humanos, as influências das circunstâncias que pretendo lhes revelar.


Fred Matos



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