quarta-feira, novembro 26

quem conta um conto...




Um Cruzamento


Franz Kafka


ilustração: Ken Merfeld


     Tenho um animal singular, metade gatinho, metade cordeiro. Herdei-o com uma das propriedades de meu pai. Contudo, apenas se desenvolveu ao meu tempo, pois anteriormente possuía mais de cordeiro que de gatinho. Agora participa das duas naturezas igualmente. Do gato, a cabeça e as unhas; do cordeiro, o tamanho e a figura; de ambos, os olhos, selvagens e acesos; o pêlo, suave e bem assentado; os movimentos, já saltitantes, já lânguidos. Ao sol, sobre o parapeito da janela, faz-se uma bola e ronroneia. No prado corre como enlouquecido e mal se pode alcançá-lo. Foge dos gatos e pretende atacar os cordeiros. Em noites de lua são as telhas o seu caminho preferido. Não pode miar e tem repugnância pelos ratos. É capaz de passar horas inteiras à espreita diante do galinheiro, mas até agora não aproveitou nunca a ocasião de matar. 

     Alimento-o com leite doce; é o que melhor lhe assenta. Bebe-o sorvendo-o a longos tragos por entre seus dentes ferozes. Naturalmente, é um espetáculo completo para as crianças. No domingo pela manhã é hora de visitas. Ponho o animalzinho sobre os meus joelhos e as crianças de toda a vizinhança detêm-se ao meu redor. 

     Então são formuladas as perguntas mais maravilhosas, essas que nenhum ser humano pode responder: por que existe apenas um animal como este, por que eu o tenho, exatamente eu, se antes dele existiu outro animal assim e como será depois de morto, se se sente muito só, por que não dá cria, como se chama, etc. 

     Não me dou ao trabalho de responder, e contento-me em mostrar, sem mais explicações, aquilo que possuo. Ás vêzes, as crianças vêm com gatos e uma vez, até trouxeram dois cordeiros. Mas contrariamente às suas esperanças, não se produziram cenas de reconhecimento. Os animais olhavamse tranqüilamente com olhos animais e consideraram, sem dúvida, reciprocamente, sua existência como uma obra divina. 

     Sobre os meus joelhos, este animal não conhece nem o medo nem desejos de perseguir ninguém. Acocorado contra mim é como se sente melhor. Está apegado à família que o criou. Isto não pode ser considerado, por certo, como uma demonstração de fidelidade extraordinária, porém como o reto instinto de um animal que na terra tem inumeráveis parentes políticos, mas talvez nem um só consangüíneo, e para o qual, por isso, lhe parece sagrada a proteção que encontrou entre nós. 

      Às vezes me faz rir quando me fareja, desliza-se por entre minhas pernas, e não há modo de afastá-lo de mim. Não satisfeito em ser gato e cordeiro, quer ser quase cachorro. Aconteceu uma vez que, como pode ocorrer a qualquer um, não encontrava solução para meus problemas de negócios e para tudo o que se relacionasse com eles, e pensava abandonar tudo; em tal estado de espírito enterrei-me na cadeira de palha, com o animal sobre os joelhos, e ao olhar para baixo percebi casualmente que dos longuíssimos pelos de sua barba gotejavam lágrimas. Eram minhas? Eram suas? Tinha também aquele gato com alma de cordeiro ambição humana? Não herdei grande coisa do meu pai, mas esta herança é digna de ser mostrada. 

     Tem ambas as inquietações em si, a do gato e a do cordeiro, por diversas que sejam uma e outra. Por isso a pele lhe é estreita. Às vezes salta sobre o assento, ao meu lado, apóia-se com as patas dianteiras em meu ombro e põe o focinho junto ao meu ouvido. É como se me dissesse algo e então se inclina para diante e olha-me cara a cara para observar a impressão que a comunicação me fêz. E para ser complacente com ele, faço como se tivesse compreendido algo e confirmo com a cabeça. Então salta ao solo e começa a bailar ao meu redor. 

     Talvez o facão de açougueiro fosse uma libertação para este animal, mas como o recebi em herança devo evitar isso. Por isso terá de esperar que o alento lhe falte por si, apesar de que, às vezes, me olhe com olhos humanamente compreensivos que incitam a agir compreensivamente.

5 comentários:

Anônimo disse...

Maravilha!!!

Vc sabe escolher.

Bjs e prema

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Fred Matos disse...

Obrigado, Lick.
É pra apertar o quê?
Beijão.

Anônimo disse...

Licko lindo do meu coração, PREMA é AMOR en sânscrito

shanti, prema e jyoti!

Paz, amor e luz!

Fred Matos disse...

É nisso que dá casar com mulher poliglota. Mas se é amor é também coisa de apertar (risos). Pode deixar, eu te dou um aperto quando chegar em casa.
Sendo assim: shanti, prema e jyoti pra você também.
E um beijo imenso.

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