ilustração: Ricardo Zerremer
estranho eu, justo eu,
estar aqui neste tempo,
neste dois mil cristão,
estiolado neste interstício.
exangue
entre a loucura e o estame,
entre a farsa e a infâmia,
neste espaço, neste susto,
final de século, de milênio,
começo de novo período
de trevas que adivinho
no apocalipse das consciências.
justo eu
que estive,
nas cavernas úmidas
hominídeo rude
justo eu,
que no vale do Nilo sucumbi
ao peso das pedras das pirâmides
para a glória de Amon
e eterno repouso
dos seus filhos ungidos faraós.
justo eu,
que testemunhei
quando o anjo do senhor trucidou
cento e oitenta e cinco mil assírios
poupando da conquista o reino de Judá.
justo eu,
que estive com Moisés
nas hordas do êxodo
exausto e morto
carregando as tábuas
da Lei de Iavé.
justo eu,
que de Tróia
resgatei a formosa Helena
erigindo a lenda do cavalo oco.
justo eu,
que vi na Grécia
florescer as filosofias.
justo eu,
que senti na carne
os cravos
que me pregaram na cruz
Jesus.
justo eu,
que em Roma
assisti nascer, crescer
e ruir o grande império.
justo eu,
que presenciei o espraiamento
do cristianismo
e o advento do papado
com a primazia do Bispo de Roma.
justo eu,
que de Meca acompanhei Maomé
na Hégira para Yathrib,
Medina, para a fundação do Islã.
justo eu,
que na Europa feudal
lavrei com mãos nuas
as terras do meu nobre
quando a fome a peste
e as guerras dizimavam-nos
cobrando em cadáveres o preço
da ignorância, da superstição,
da sufocante credulidade.
justo eu,
que conduzi Carlos Magno
à Igreja de S. Pedro
para receber do Papa Leão III
a coroa de Roma.
justo eu,
que estive cinzas
nas fogueiras da inquisição.
justo eu,
que naveguei os sete mares
e encontrei continentes.
justo eu,
que com um quipo
contei em Cuzco as vidas
ceifadas pela espanhola
lâmina de Pizarro.
justo eu,
que chorei no Arraial de Canudos
tinto do sangue absurdo
das crianças sacrificadas
à sanha estúpida.
justo eu
que segui para Machu Picchu
pelas pênseis pontes
sobre os desfiladeiros dos Andes
e lancei-me ao reino de Hades
nas asas da desesperança.
justo eu
tenho que agora, ainda,
testemunhar o fim das idades?
não.
ainda não me apetecem palavras
que firam meu estranhamento.
não.
ainda não quero poemas,
quero uma lágrima,
apenas uma
onde espelhe minha pena.
Fred Matos
Publicado com o título 2001
em "Anomalias"
Editora Kelps
Setembro/2002
2 comentários:
Fred,
Na primeira leitura achei estranho você usar “justo” (adjetivo) onde me parecia mais adequado a utilização da locução adverbial “justamente”, com o sentido de exatamente (por que eu?). Numa segunda leitura o “justo” me pareceu ganhar acepção substantiva (o homem virtuoso que está de acordo com a justiça), além da acepção adjetiva de “apertado”, alguém que não se sente confortável com a situação. É um bom poema. Onde é possível encontrar os seus livros em São Paulo? Por que você não usa o blog como canal de venda?
Maurício,
Você percebeu bem o uso ambíguo do adjetivo.
Quanto a adquirir meus livros, escreva-me por e-mail.
Vender pelo blog? É uma hipótese, caso Dila (minha mulher) esteja disposta da assumir a parte comercial, porque não me sinto bem vendendo. Sei que é frescura, mas sou assim.
Obrigado pela visita, leitura e comentário.
Abração
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