sábado, janeiro 24

quem conta um conto


ilustração: Paul Jacques Aime Badry
"O Assassinato de Marat"


Continuando as traduções de Julio Cortázar


Puzzle é o quinto e último conto de "Plagios y traducciones" a primeira parte, de três, do livro "La otra orilla". 
As outras partes são "Historias de Gabriel Medrano" e "Prolegómenos a la Astronomía".


Traduções já publicadas no blog:





Puzzle
A Rufus King

Julio Cortázar

Tradução: Fred Matos
a partir do texto publicado nas páginas 52 a 56 de “Cuentos Completos/1” Decimoquinta reimprésión: junio de 2007, Editora Alfaguara – Buenos Aires – AR 


Você fez as coisas tão limpas que ninguém, nem mesmo o morto, poderia culpá-lo pelo assassinato.
À noite, quando as substâncias se submergem em uma identidade de arestas e planos que só a luz pode revelar, você entrou armado com uma faca curva, de lâmina vibrante e sonora, e se deteve ao lado da sala. Escutou, e não ouvindo nada mais que silêncio, empurrou a porta, não com a lentidão do caráter sistemático do personagem de Poe, aquele que tinha um olho para o ódio, mas com alegre decisão, como quando se entra na casa da noiva ou se vai receber um aumento de salário. Você empurrou a porta, e motivado por uma elementar precaução dissuadiu-se de assobiar uma melodia. Que, não é demais dizer, teria sido Gemendo por ti.  
Ralph costumava dormir de lado, oferecendo um flanco para olhos ou facas. Você se aproximou lentamente, calculando a distância que o separava da cama; quando estava a um metro, parou. A janela, que Ralph deixava aberta para receber a brisa do amanhecer (e levantar-se para fechá-la pelo simples prazer de dormir novamente até as dez) permitia o acesso aos letreiros luminosos. Nova York estava barulhenta e cheia de caprichos aquela noite, e causou-lhe graça observar a concorrência, sem quartel, entre as marcas de cigarros e diversos tipos de pneus.
Mas esse momento não era para idéias humorísticas. Havia que concluir uma tarefa iniciada com alegre determinação e você, afundando os dedos no cabelo e jogando-os para trás, resolveu apunhalar Ralph, poupando todas as preliminares e qualquer mise en scène.
Coerente com este princípio, você pôs o pé direito no tapetinho vermelho que indicava a localização da cama de Ralph (claro que um passo à frente), esquecendo os cartazes luminosos, virou o tronco para a esquerda e movendo o braço dele como se fosse para lançar uma bola de golfe, enterrou a faca no lado de Ralph, alguns centímetros abaixo da axila.
Ralph acordou no preciso instante de morrer, e teve consciência de sua morte. Isso não deixou de agradar a você. Preferia que Ralph compreendesse sua morte, e que a extinção de tão odiada vida tivesse outro espectador diretamente interessado na questão.
Ralph deixou escapar um suspiro e, em seguida, um grito, e depois outro suspiro, e depois um borborigmo, e nada pairou no ar que pudesse fazê-lo duvidar de que a morte tinha chegado com a faca e se abraçou à sua nova conquista.
Você desenterrou a lâmina, limpou-a no seu lenço, acariciou suavemente o cabelo de Ralph - uma ofensa premeditada - e foi à janela. Esteve um bom tempo inclinado sobre o abismo olhando Nova York. Olhava-a atentamente, com o gesto de um descobridor que se adianta visualmente na proa de seu navio. A noite era anti-poética e calva. Lá embaixo, silhuetas de automóveis regressavam à condição de besouros e lagartas dado o predomínio de cor, de hora e de distância.
Você abriu a porta, fechou-a novamente, e passou pelo corredor, com um doce sorriso de um anjo com os dentes de fora.


- Bom dia.
- Bom dia.
- Dormiu bem?
- Bem. E você
- Bem
- Quer o desjejum? 
- Sim, maninha
- Café?
- Quero, maninha
- Biscoitos?
- Obrigado, maninha.
- Aqui estão os jornais
- Já os li, maninha.
- É estranho que Ralph não tenha se levantado ainda.
- É muito estranho, maninha.

Rebeca estava na frente do espelho, empoando-se. Da porta do quarto, a policia observava seus movimentos. O agente com rosto de ave do paraíso tinha um modo desconfiado de olhar, presumindo culpas antecipadamente.
O pó cobria as bochechas de Rebeca. Maquiava-se mecanicamente, pensando o tempo todo em Ralph. Nas pernas de Ralph, em suas coxas lisas e brancas. Nas clavículas de Ralph, tão suas. No modo de Ralph vestir-se, com artístico desalinho.
Você estava no seu quarto, rodeado pelo inspetor e vários detetives. Eles perguntavam, e você respondia, afundando a mão esquerda em seu cabelo.
- Eu não sei nada, senhores. Ontem à tarde vi-o pela última vez.
- Crêem em um suicídio? 
- Eu o creria se visse o corpo.
- Talvez o encontremos hoje. 
- Não havia vestígios de violência no quarto? 
 Os agentes se maravilharam vendo você interrogando o inspetor, e isso causou-lhe um grande encanto. O inspetor, por outro lado, estava admirado.
- Não, nenhum vestígio de violência. 
- Ah! Eu pensei que poderiam ter encontrado sangue na cama, no travesseiro. 
- Quem sabe. 
- Por que você diz isso? 
- Ainda há de algo para fazer. 
- Que coisa, maninha? 
- Jantar
- Bah! 
- E esperar a chegada de Ralph. 
- Espero que ele chegue. 
- Chegará. 
- Você fala com muita convicção, maninha.
- Chegará.
- Convença-me
- Eu o convencerei
 
Foi então que você passou em revista alguns acontecimentos. Fez, tirando partido de uma interrupção no grande cerco policial.
Você recordou como pesava. Você disse que a perícia havia sido um fator importante na obtenção do resultado. O corredor, ao amanhecer. E o céu plúmbeo, cheio de cães errantes cor de manteiga.
Deveria em breve pintar uma gaiola de pássaros. Comprar uma pintura carmesim, ou melhor vermelhão, ou melhor ainda púrpura, mas talvez a cor por excelência seja a violácea. Pintar a gaiola de violácea, usando a calça e a camisa que agora repousam com uma coisa.
Segundo: Você pensou na necessidade de comprar areia, fracioná-la em grande quantidade de pacotes de cinco quilos, e levá-la para a casa. A areia serviria para contrariar referencias de ordem sensorial.
Terceiro: Você pensou que a tranqüilidade de Receba devia ter origens neuróticas, e começou a se perguntar se, afinal, não lhe havia feito um notável favor.
Mas, naturalmente, essas coisas não se podiam averiguar claramente.
- Adeus, sargento.
- Adeus, senhor.
- Feliz Natal, sargento
- O mesmo lhe digo, senhor.
A casa própria, e seus dois ocupantes.


Rebeca pôs a tampa sobre a panela de sopa. Pôs vagarosamente. Você estava na sala, ouvindo rádio, à espera para jantar. Rebeca olhou para a panela, para a travessa da salada, e depois o vinho. Você criticava mentalmente Vallée Ruddy.
Rebecca veio com a bandeja, e foi sentar-se no seu lugar enquanto você desligava o receptor e ocupava a cadeira da cabeceira.
- Ele não voltou.
- Voltará.
- Talvez, maninha.
- Por acaso duvidas?
- Não. Isso é, eu não duvido.
- Digo-te que voltará.
Você se sentiu atraído para a ironia. Era perigoso, mas você não se arredava.
- Eu me pergunto se alguém que não tenha ido... pode retornar. 
Rebeca olhava você com uma firmeza incrível. 
- Isso é o que eu me pergunto. 
Você não gostou nada dessa resposta. 
- Por que você está dizendo isso, maninha? 
Rebeca olhava você com uma firmeza incrível. 
- Porque não assumir que ele está desaparecido? 
Eriçavam-se os pêlos da sua nuca. 
- Porquê? Por que, irmãzinha? 
Rebeca olhava você com uma firmeza incrível. 
- Sirva a sopa. 
- Por que é que eu tenho de servir, maninha? 
- Sirva você esta noite. 
- Esta bem, maninha.
Rebeca lhe passou o pote de sopa, e você o pôs ao seu lado. Não sentia nenhum apetite, coisa que você mesmo havia previsto.
Rebeca olhava você com uma firmeza incrível.
Então, você levantou a tampa da sopeira. Levantou lentamente, tão lentamente como Rebeca a havia colocado. Você sentia um estranho medo de destampar a sopeira, porem compreendia que se tratava de uma trapaça dos seus nervos. Você pensou que seria bom estar longe, no térreo, e não no último dos trinta pisos, sozinho com ela.
Rebeca olhava você com uma firmeza incrível.
E quando a tampa da sopeira foi inteiramente erguida, e você olhou dentro e, em seguida, olhou para Rebeca, e Rebecca olhou-o com uma grande firmeza e, em seguida, olhou dentro da sopeira, e sorriu, e você se pôs a gemer, e tudo decidiu bailar diante dos seus olhos, as coisas foram perdendo relevância, e só permaneceu a visão da tampa, subindo lentamente, o líquido na sopeira, e... e...
Você não esperava aquilo. Você era inteligente demais para esperar aquilo. Sobrava inteligência de tal maneira a você que a inteligência excedente se sentiu incapaz de continuar vivendo no seu cérebro, e decidiu procurar uma saída. Agora, você faz números e mais números, sentado na cama. Ninguém consegue arrancar-lhe uma única palavra, mas você costuma olhar para a janela, como se esperando ver avisos luminosos e, em seguida, adianta o pé direito, gira o tronco como se fosse para lançar uma bola de golfe, e enterra a mão vazia no ar vazio da célula.

1938
  

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