quinta-feira, junho 25

tal qual meu pai – final



Foto: pôr-do-sol no Porto da Barra

Denisse Salazar


Começava a escurecer. No ônibus eu imaginava que àquela hora Lúcia estaria com a sua turma de alienados celebrando o pôr-do-sol com baforadas de maconha. Mesmo atrasado, por culpa do engarrafamento, cumpri as normas de segurança: saltei do ônibus no ponto anterior ao do local marcado para o encontro com André para receber instruções e dinheiro enviado pelo comitê estadual.

A barra estava pesadíssima, o DOPS, órgão policial militar da ditadura, vinha desmantelando todas as células da resistência. As notícias eram alarmantes, os casos de tortura, de prisões ao arrepio da lei, de pessoas cujas prisões eram sabidas, mas negadas pelas autoridades e das que desapareciam nos porões do aparelho repressivo só não eram de amplo conhecimento público porque a imprensa estava censurada.

Atravessei a rua para atingir a praça pelo lado oposto, ampliando meu raio de visão e a possibilidade de fuga. À minha aproximação, cerca de cem metros nos separavam, André me viu, desviou o olhar da minha direção para a de um fusquinha verde parado sobre a calçada. Com a mão coçando o peito deu o sinal combinado: sujou. Entrei em um boteco, pedi uma média e apesar de preocupado com o destino do companheiro deixei escapar um yes aliviado entre dentes quando vi o telefone público pregado nos azulejos. Ao alô da camarada Marta respondi com uma palavra apenas: caiu. Voltei ao balcão. Procurando não demonstrar pressa e controlando o cagaço, bebi o café com leite, comprei um maço de cigarros e fiz a pé o caminho de volta até o centro da cidade.

Entrei em um cinema que exibia um filme policial. Sentei-me na última fileira de poltronas. Sabia que naquele momento o apartamento já fora abandonado pelos companheiros. Dormi duas seções do filme. Sai do cinema à meia-noite encontrando a praça ocupada por prostitutas e pela fauna que elas atraem. Não tinha pra onde ir. Contei o dinheiro que tinha, era pouco, quase nada. Foi naquele momento que percebi que eu era um covarde, voltei pra casa, rabo entre as pernas, e tornei-me um filho da puta tal qual o meu pai.


FIM

4 comentários:

Unknown disse...

Terrível essa época da ditadura!

Lembro em relances, não participei, mas vi familiares torturados e presos.

Meu marido na época, usava estes termos, quando agia como o personagem narrado:

"Mil vezes um covarde vivo que um herói morto"

Como já nasci cantando poemas como os passarinhos, achei lindo a covardia, e a vi com outros olhos de menina, embora já mãe, mas com 16 anos.

Muito lindas as tres partes.

Muito bom estar aqui!

Parabéns e obrigada, Fred!

Beijos

Mirse

Fred Matos disse...

Mirse,

Diz-se que Gorki se tornou um grande escritor por seguir sem concessões o conselho de Korolenko: "Escreva apenas sobre o que viu".
Como não sigo esta regra e a minha literatura tem muito mais de imaginação que de recordação, nunca serei grande como Gorki.

Neste conto, contudo, há muito mais coisas que vi e vivi, que imaginação.

Agradeço-lhe a paciência da leitura, e pelos comentários.

Beijos

Devir disse...

Fred Matos

Covardia é uma etiqueta, que só não é preciso cortá-la nas vestes de nossas sombras. Estas, se andassem nuas por aí, nada alteraria, em média de resultados, contra e à favor,
à partir do naturalismo de Darwin.

Não se preocupe, etiquetas são sempre as mesmas, juizos de valores convenientes ao processo de seleção da espécie, e neste, outros juizos tem mais valia.

Aquele Abraço

Fred Matos disse...

Não estou preocupado com nada, Devir.
Talvez você não tenha percebido que é ficção, talvez sim e eu é que não tenha percebido o seu comentário.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Volte sempre.
Grande abraço

pesquisar nas horas e horas e meias