quinta-feira, novembro 19

o mundo é um moinho



“Preste atenção o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó”

Cartola, em “O mundo é um moinho”



ilustração: Jan Saudeck


palavras tais grossas negras grades - disseste-me:
todos os nossos melhores caminhos levam à cidade
todas as portas fechadas que abrirmos ao paraíso
poetas morrem miseráveis, tristes e tísicos

tens sempre muita certeza de tudo
do tempo exato da cocção do milho
do tempo exato da correta respiração
do tempo exato das coisas complexas

treze tempos teus depois descíamos descalços
o leito seco de um riacho em cuja margem
imaginávamos encontrar quaresmeiras
roxas e rosas - no tempo exato da floração

a mata atlântica dançou, neném, ardeu
caiu e ninguém derramou uma só lágrima - lágrimas
que obviamente estão guardadas para chorar
o destino da heroína da novela da televisão

dois quintos de tempo do teu tempo antes
época do início da metafísica midiática
especulavas o preço de uma viola de arco
para tocar o sexto concerto de brandemburgo

mas poupas-te bach - e felizmente aos meus ouvidos -
porque achastes que era um desmesurado absurdo
gastar numa viola o dinheiro que poupáramos
e que gastamos em um mês numa viagem a copenhague

foram depois dias alegres aqueles quando ganhei a loteria
e caminhávamos como crianças sorridentes e saudáveis
preocupados apenas com a escolha do vinho
e se encontraríamos ingressos para o teatro

para que não fossemos afetados por inúteis dramas de consciência,
convencemo-nos que o cinismo da humanidade é irremediável:
todos clamam por justiça social quando estão na merda
e quando se dão bem só lembram dela por hipocrisia ou marketing

um terço de tempo do teu tempo depois
época da dieta com abóbora e cereais integrais
convenceste-me a ingressar numa seita oriental
e fomos à índia estudar seus épicos em sânscrito

no tibet internamo-nos num monastério budista
onde nos convencemos da inutilidade de qualquer ação
mas a soma das tuas certezas com as minhas dúvidas
levou-nos a adotar uma criança vietnamita paraplégica

assim, com a certeza de que remíramos os nossos carmas
com tal força que livrar-nos-íamos do ciclo do samsara,
internamos o órfão em um bom colégio anglicano na suíça
fomos à frança, caímos na farra, torramos o resto da grana.

no tempo muito tempo anterior ao tempo teu - no meu -
tempo de poesia, sonhos, e quase sempre de barriga vazia,
eu jamais imaginaria que conheceria quase todo o mundo,
nem que conhecê-lo me tornaria este tipo triste e blasé

quando conhecemo-nos na travessia da velha balsa de niterói,
eu não tinha maturidade para compreender certas abstrações
que decorrem de subordinarmo-nos ao tic e tac das horas,
aos eteceteras que se entranham nas almas dadas às histerias

insistes em negar que lias um livro de auto-ajuda cujo título,
após tanto exato e inexato tempo, é natural que não me recorde,
mas que se destinava a ensinar, em rápidas e eficazes lições,
a capturar marido bonito, rico e, preferencialmente, obtuso

precisávamos achar meios de faturar quando a grana acabou
lembrei-me do livro que negas, escrevi em inglês um parecido,
colando trechos de uns semelhantes que mandei buscar no brasil
e, como dizias que não daria certo, só à sorte atribuis o meu êxito

jamais pude compreender porque torces contra o meu sucesso,
fato que evidentemente negas veementemente, lágrimas nos olhos,
mas do qual não tenho dúvida desde aquele dia em barcelona
no qual disseste-me, sem meias palavras, que sozinho sou um incapaz

é certo que tenho sempre muita dúvida acerca de qualquer assunto
dúvida do tempo exato da cocção do milho e da mandioca
dúvida do tempo exato da correta respiração
dúvida do tempo exato das coisas complexas e das simples

mas seja por sorte, competência, quiçá por proteção divina,
valeu-nos cada centavo investido no livro que ensina a catar marido,
termo-nos conhecido naquela tarde na travessia da balsa de niterói,
exatamente no dia que eu tinha decidido que seria o do meu suicídio.


Fred Matos




16 comentários:

Canto da Boca disse...

Forte! A única palavra que me ocorreu para chegar perto do texto e da imagem óbvia.
Sem falar na música do Cartola...

;)

cristinasiqueira disse...

Oi Fred,

Começou com Cartola e foi deslizando em minúsculas uma história grande e gostosa.Seria verso,vento na balsa de niterói,conversa em barcelona.
Escreveu um filme...Assisti.

Com admiração,

Cris

Apareça.

myra disse...

Cartola tem razao...pena que a letra esta muito pequenha para meus ohos e nao pude ler teu poema, mas estou por descontado que deve ser otima!
um beijo e um bom dia para voce,

Essência e Palavras disse...

Auto-exterminio cometemos aos poucos quando deixamos de realizar nossos desejos.rs

Adoreei!


Beeejo e boa sexta

Adriana Godoy disse...

Fred, nossa, que história, heim? Um poema assim há que se preparar antes. Gostei imensamente, embora, confesso, tenha tido dificuldade de chegar ao final. Mas cheguei, chegamos e tá tudo certo. Beijo.

Fred Matos disse...

Agradeço-lhe, Canto da Boca pela visita, leitura, comentário e por passar a acompanhar o blog.
Beijos

Fred Matos disse...

Deixa-me contente que você goste, Cris. Obrigado.
Claro que aparecerei: é sempre um prazer visitar o seu blog.
Beijos

Fred Matos disse...

Infelizmente fui obrigado a usar letras pequenas, Myra, para não comprometer a formatação dos versos, mas talvez você não tenha perdido nada por não conseguir ler.
Agradeço-lhe, amiga, pela presença e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

Eu também penso assim, Essência e Palavras, embora sabendo que nem sempre podemos realizar os nossos desejos.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

Eu não sei exatamente como definir, Adriana: parece-me um conto em versos. Entendo a sua dificuldade em ir até o fim, não apenas pelo tamanho das letras, mas porque não é confortável ler texto tão longo na tela do micro.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos

Moni Saraiva disse...

"(...)
Já anuncias a hora da partida(...)

Mas eis que vem a vida - a que nunca tem dúvida, sabe todos os tempos e medidas - e faz a sua parte. Sábia parte.

Aposto que ela ri de nós e da nossa pressa e talvez cante:

"Ainda é cedo, amor...Mal começaste a conhecer a vida(...)"

Adorei o evolvimento que você conseguiu fazer com a tua história em versos e os tristes versos de Cartola. Que bom, o seu, um final feliz...

Abraços, Fred!

Anônimo disse...

Fred,

Encontrei aqui um texto crítico e confessional ao mesmo tempo. A começar pelo prólogo...

Um grande abraço!

Obrigada por acompanhar meus Momentos...

myra disse...

meu querido Fred, perdi sim...:))))
beijos

Fred Matos disse...

Obrigado, Moni, pela visita, leitura e comentário.
Beijos

Fred Matos disse...

Eu que agradeço, Liene, pela sua visita, leitura, comentário e por acompanhar o nas horas e horas e meias .
Beijos

Fred Matos disse...

Se é assim, vou enviar para você por e-mail, Myra.
Obrigado.
Beijos

pesquisar nas horas e horas e meias