sábado, janeiro 23

falta de assunto

Por falta de assunto, publico crônica, de João Ubaldo Ribeiro, com este título, na qual o meu pai é citado, datada do dia 12/10/1988, que encontrei no site Alma Carioca


Falta de assunto – João Ubaldo Ribeiro

Como talvez alguns de vocês se lembrem, tenho 57 anos, faço 58 em janeiro. Meu querido e falecido pai, que quebrou às bofetadas pelo menos dois pares de óculos meus, uma vez, quando eu estava com 17 anos, entrou em casa e me disse:

— Vista-se, porque vou sair com o senhor.

Vesti-me, não só porque não se discutia com meu pai, como eu também não sabia se ele queria ter a experiência inédita de me socar a cara e quebrar, por motivos que eu sempre ignorei, meus óculos em praça pública (nunca fez isso, era tudo no recesso de nosso sacrossanto lar) e saí com ele. Ele me levou à redação do falecido Jornal da Bahia, que ainda não estava saindo, mas se estava preparando. Foi um grande jornal, de cuja equipe inaugural não vou citar nomes para não ser involuntariamente injusto com grandes colegas e profissionais, mas apenas revelo, à guisa de curiosidade, que o chefe da página de polícia era Gláuber Rocha. Naquela época, não havia cursos de comunicação e jornalista, como eu, era formado na marra. Foi o que meu pai, Deus o tenha, embora eu não faça questão, explicou aos amigos que tinha no jornal que estava vindo me empregar. “Ele acha que sabe escrever”, disse meu pai. “Botem ele aí, para eu saber se ele sabe mesmo.”

Entrei para o jornal, onde um dos meus mestres foi o grande Ariovaldo Matos, que até hoje me traz lágrimas aos olhos, quando lembro dele. Não era nenhum anjinho, Ariovaldo, era só um homem bom e um profissional do maior valor, a quem sempre deverei muito do que sei e me sustenta. Eu não sabia nem escrever à máquina e me lembro que não achava a letra T, por mais que a procurasse. Levei cerca de cinco horas para escrever minha primeira matéria. Mas fui indo, fui indo e hoje sou aquele tipo de chato que diz no boteco que já fiz tudo em jornal, e é verdade, só não fiz linotipia, que hoje não existe mais, a não ser, possivelmente, em Zimbábue.

Um belo dia, Ari, como era conhecido Ariovaldo, me chamou à mesa dele.

— Tou com um buraco aqui — disse ele. — Não tenho como encher esse buraco, porque não acontece nada aqui. Escreva aí uma crônica. Lauda e meia, 60 batidas.

— O quê?

— Cale a boca, sente o rabo ali e escreva uma crônica. Lauda e meia, 60 batidas.

— Ari…

— Cale a boca, sente o rabo ali e escreva uma crônica, lauda e meia, 60 batidas.

— Escrever uma crônica sobre o quê?

— Problema seu. Eu estou lhe dizendo que sente o rabo ali e escreva uma crônica, lauda e meia, 60 batidas. A página fecha daqui a duas horas. Sente o rabo ali, não encha meu saco e escreva uma crônica!

Sentei o rabo suando, escrevi uma crônica, lauda e meia, 60 batidas. Desse dia em diante, já lá se vão 40 anos, escrevi crônicas suficientes para encher a Biblioteca Nacional. E, por um orgulho certamente besta, jamais fiz o que acho que a maior parte de meus sofredores colegas cronistas já fez: escrever sobre a falta de assunto, que nos assola sadicamente, todas as vezes em que sentamos o rabo para ganhar a vida desta forma inglória. Ontem mesmo (ontem, não ontem para os que me lêem agora, mas ontem para o dia em que escrevo), eu estava almoçando com um amigo, quando passou uma senhora que me cumprimentou e me disse:

— Gostei muito de sua última crônica. Geralmente eu detesto, mas dessa eu gostei.

Por que ela me disse isso? Haverá sido porque ela me julga famoso e, por conseguinte, imune ao insulto do semelhante? Haverá sido por ser mal-amada? Por que um sujeito igual ou, mais possivelmente, pior do que vocês, terá de ser ofendido e sua digestão malferida, quando o que ela deve fazer, já que não gosta, é não ler e escrever para os jornais que me publicam, pedindo ou exigindo que deixem de me publicar? Por que eu não posso almoçar sossegado, na companhia de um querido amigo, que, cheio de gripe, febre e mal-estar, fez o sacrifício de sair da cama para me dar o consolo de seu amor fraterno?

Estimados poucos leitores, eu não estou escrevendo sobre falta de assunto. Aliás, estou, porque os assuntos que povoam minha cabeça hoje só os deprimiriam e eu não tenho, nem quero, ter esse direito. Não é esta a razão por que estou infeliz, quero até que vocês todos sejam muito felizes com o presidente que acabam de re-escolher. Quero mesmo que ele próprio seja feliz, embora não vá com a cara dele e quisesse assinar tudo, se tivesse competência pelo menos comparável, e mais do que o Verissimo escreveu contra ele. Mas ele não é um canalha e certamente é um patriota, que gostaria de nos fazer um país feliz. Deus, em que ele não acreditava e hoje diz que acredita, o ajude. Boa sorte, presidente, a maioria o escolheu e o senhor foi abençoado. Deus, em que sempre acreditei, o assista em todas as horas, parabéns pela sua extraordinária vitória, Deus — digo isto com toda a sinceridade — o assista e abençoe. Deus o faça, como o senhor talvez já seja, muito melhor do que eu. Eu não estou infeliz com a sua reeleição, foi feita a soberana vontade do povo, Deus o guie, presidente. E eu não estou infeliz hoje porque o senhor foi reeleito, acho até que é uma festa. Eu estou infleiz por razões particulares, que não tenho o direito de impingir aos outros e só quis escrever uma crônica explicando que jamais falarei sobre falta de assunto. Assuntos há muitos, em minha cabeça adoentada, mas não vou falar neles, porque, repito, não tenho este direito. Mas, de certa forma, acabei achando assunto. Terminando esta crônica, bem maior do que a que Ari me ordenou, eu digo ao senhor: Deus o guie, presidente, suas mãos são livres.

12/10/1998

8 comentários:

Anônimo disse...

Oi Fred,

Foi um "achado" e tanto prá você, não?!

Beijos,
Ana Lúcia.

Fred Matos disse...

Foi sim, Ana.
Bem verdade que eu já conhecia esta crônica do Ubaldo, desde quando fiz o meu extinto web site no "terra".
O João é uma das amizades que "herdei" do meu velho.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Ótimo fim de semana.
Beijos

Ju Fuzetto disse...

Bem legal!!!

abraço

Sandra Gonçalves disse...

Não conhecia esta cronica, te confesso que me diverti, um pouco de humor negro ...
Mas a maneira que ele fala do que o enfurece é comica.
Bjos meus.

myra disse...

ah, como gostei!!!!!!!superotimo!!!
eu tbem hoje estava sem ideias, assim que coloquei, copiei umas linhas que ja estavam escritas em 98!!!
ve se gosta!
beijos

Fred Matos disse...

Obrigado, Ju.
Deixa-me contente por sua vinda, leitura e comentário.
Ótimo fim de semana.
Beijos

Fred Matos disse...

Humor negro, Sandra? Eu não percebo assim. Mas que João estava mau-humorado não tenho dúvidas. A crônica foi escrita logo após a reeleição de Fernando Henrique Cardoso, e este já seria motivo suficiente, mas, se a memória não me trai, naquela época ele enfrentou sérios problemas de saúde.
Agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário.
Ótimo fim de semana.
Beijos

Fred Matos disse...

Que bom que você gostou, Myra.
Passo logo no parole para ler-te.
Ótimo fim de semana.
Beijos

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