Ontem publiquei uma crônica de João Ubaldo Ribeiro, que encontrei na Internet, na qual meu pai é citado. Fiquei pensando que, embora apareçam muitas páginas na Internet citando Ari, há muito pouco texto dele. Sendo assim, na medida que o tempo e a preguiça permitirem, digitarei textos de Ari, sobretudo contos, para pôr aqui no blog, onde já publiquei, duas vezes, o conto "A Doce Lei dos Homens". Mas vamos ao conto de Ari, que optei por manter com a ortografia da época, como publicado no livro “A dura lei dos homens” – Editora São José – 1960:
Foto: Ben Goossens
"Late autumn walk"
Rosa tem febre demais.
Ariovaldo Matos
“Du fond du coeur de l’enfant jusqu’a la raison suprême”
P. Eluard
Espero a madrugada e visto minha roupa de sonho. Depois, sem que minha mulher desperte, ganho as ruas de silêncio e caminho passos de quem foge, aproveitando as manchas da escuridão, sombras que grandes árvores projetam.P. Eluard
Agora atinjo as avenidas centrais. Luzes ferem os meus olhos e por mim passam os boêmios e as prostitutas. Alguns param e olham minha fantasia de sonho - as longas barbas brancas, o vermelho manto bordado de arminho, as negras botas que confundem meus pés com o asfalto. Olham e seguem, e eu prossigo o caminho, e mais rápidos são os passos porque agora sou esperado e é hora de chegar. Mais além, no largo, antes da ladeira, estão os motoristas. Dizem coisas pornográficas, contam episódios de sangue, mas eu caminho e passo e e eles fazem silêncio quando me vêem. Alguns, os mais velhos, atiram moedas no asfalto e eu as recolho e seus olhos me acompanham enquanto, na outra esquina, encontro a ladeira e vou começar a descê-la. Então voltam aos temas de antes e eu terei sido um sonho rápido ou um rápido pesadêlo.
Na ladeira eu paro e meus olhos de sonho penetram todos os lares e levam luz para as águas do rio e do mar. Eu chamo os peixes mais belos e mando que façam leitos de conchas e algas e neles deitem tôdas as crianças. Desperto os pássaros e ordeno-lhes um teto de penas sôbre a terra, sôbre o rio e sôbre o mar. Às ondas peço silêncio, às pedras mando parar, peço à lua que se imobilize e peço às estrelas mais piscar. De longe chegam os pescadores, com seus fifós, suas rêdes, suas canções, suas velas, os olhos de suas amadas, o imenso desejo de amar. Suplico que façam rodas e cantem cirandas em louvor de Iemanjá. Peço lágrimas ao orvalho...
- Vem, nós te esperávamos.
A pequenina e escura mão é quente e firme e nela eu me equilibro, passo a passo a ladeira desço.
Na praia êles dormem e, agora, despertos, é a mim que esperam. Eu chego e êles pedem as bênçãos e fazem filas para minhas mãos beijar. Depois sentam-se e fazem roda e eu lhes aponto os grandes navios, pesados de mistério e silêncio.
- O mar é grande - eu digo - e não escolhe terras para banhar. É grande, amigo, igual ao céu só o mar.
São crianças, acreditam, e eu falo de minha intimidade com as coisas do céu e do mar. “Sou amigo de Deus, afirmo, e Êle um dia há de fazer o que eu mandar”.
De repente eu pergunto:
- Que pedido vocês fariam para eu a Deus ordenar? Vamos, digam, falem, que pedido fariam para eu a Deus ordenar?
Eles silenciam e eu insisto:
- Querem rosas ou outras flôres? Querem brinquedos, novos amores ou querem no céu caminhar?
Êles nada respondem, apenas me olham.
- Não gostariam - pergunto - de um imenso navio sobre o rio ou sôbre o mar? Seria um navio de mil côres, feito de nuvens e de flôres, feito de mirra, incenso e âmbar.
- Vem - diz-me o garoto - nós te esperávamos.
Agora a ladeira acaba e são as estreitas ruas que despontam. Liberto-me da pequenina mão e abraço o garoto.
- Hoje - falo - muito pouco pude trazer.
- Não importa - responde --não queremos teu dinheiro. Queremos tuas histórias, tuas cantigas de ninar. Rosa tem febre, não dorme, e ontem Neco fugiu.
- Rosa tem febre? - pergunto.
- Sim, Rosa tem febre demais.
Os passos são mais rápidos. Rosa tem febre demais, e à medida em que caminho tôdas as estrêlas me seguem, todos os peixes e as lebres, as cobnras e os pardais, todos caminham depressa, é preciso chegar a tempo, Rosa tem febre demais. Eu a encontro e ela delira, os lábios estão roxos, os olhos parecem de sangue e eu mando a morte parar. Chamo os ventos e mando que a erguam, chamo o mar e mando que limpe aquêle lugar, chamo os pássaros, chamo as flôres e chamo os anjos a cantar. Os ventos a embalam, os pássaros tecem uma rêde, uma rêde de penas e luar - e Rosa nela se deita, a vida tôda refeiota, sorrindo para a morte que morre a extertorar. E digo “Rosa filha” e ela ouve, seus olhos estão limpos, são outros olhos de Rosa a amar a nova vida que eu pude com a fôrça do sonho criar. Eu sorrio, então, e ela responde, o mat todo de gôzo se esconde e os ventos alegres vão passear. A morte ali fica parada, morta e eu caminho...
- Rosa tem febre demais.
De novo sinto as mãos pequeninas, agora é perto, é hora de chegar. Vejo Rosa, está deitada e em tôrno os outros garotos, em silêncio, estão parados a olhar. A febre queima e eu peço mas os ventos não me vêm ajudar. O mar continua quieto, os anjos para longe fugiram, fugiram os pássaros e as cobras, fugiram também os pardais. De Rosa a vida foge, eu imploro a Deus que venha depressa, venha a Rosa ajudar. Ninguém ouve, ninguém atende, os meninos me olham - têm medo - a febre de Rosa é demais. É noite e não conto histórias, não prometo navios de incenso e mirra, flôres e âmbar. Carrego Rosa nos braços, a vida não deve parar. Corro e arfo, gôsto de sangue na bôca, subo a ladeira de pedras e os garotos atrás. Um carro logo aparece, no largo, outro lhe vem atrás. Rosa carrego e corremos sôbre rodas, eu e Rosa, os garotos atrás. Agora a manhã vem chegando, no Hospital eu espero, a gente do dia passa e olha minha fantasia de sonho. Os meninos, em tôrno, me escutam e eu repito “Rosa tem febre demais”. O doutor vem e eu me levanto:
- Doutor, e Rosa?
- Já não tem mais febre. Sim, ficará boa.
Há espanto nos seus olhos, ao ver minha roupa de sonho, meus olhos de sono e sol, e com os garotos eu saio, cantamos pelos caminhos e de repente eu me imagino, distante, longe demais - eu e Rosa caminhando sôbre as nuvens, os meninos sôbre as estrelas, distantes a terra e o mar, as cobras e os pardais...
Agora é dia e eu volto, não há silêncio nas ruas da manhã que se faz. A mulher me espera, mas não briga. Arruma na mala a minha roupa de sonho, traz-me um café e mostra o relógio. Avisa:
- Dorme, depois te acordarei e ao trabalho em tempo chegarás.
Estarei feliz quando acordar. E sorrirei de verdade porque poderei contar, algum dia, para as crianças que me esperam, nas vésperas dos natais, a história de Rosa - menina que um dia teve febre demais.
Novembro de 58
16 comentários:
Gostei muito, Fred.
Seu pai escreve bem, muito bem.
Já sei de onde vem esse seu talento com as palavras.
Meu velho era ótimo cronista.
As vezes, penso em fazer um blog só com as crônicas dele.
São milhares.
Quem sabe...
Um beijo
rossana
Estou passando por aqui, para comunicar que estarei ausente por um tempo.Metamorfósica como sou, sempre em tempo de férias necessito fazer
algumas mudanças na minha casa, na minha vida, e meus Blogs não poderiam ficar de fora(rsrs).
Quando eu voltar ,estarei por aqui, com certeza, se Deus quiser!
Um grande abraço!! Rejane
P.S. O Blog da gula(receitas) permanecerá aberto.
Como filho sou suspeito pra falar, Rossana, mas muita gente concorda com a sua opinião.
Só que já não escreve, escrevia. Meu pai faleceu no dia 8 de julho de 1988.
Você deve, sim, fazer um blog com as crônicas do seu pai.
Quando eu tiver tempo, e disposição para datilografar, porque não tenho os textos do meu pai em mídia digital, é isso que pretendo fazer, mas será um trabalhão, principalmente por causa dos romances.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos
Estou de queixo caido! Belíssimo Fred. Parabéns.
Regina
Boas férias e que sejam sempre pra melhor as suas metamorfoses, Rejane.
Agradeço-lhe pela visita, leitura e aviso.
Beijos
Obrigado, Regina.
Seu comentário me deixa muito contente.
Beijos
Querido fred, tão bonito isso.
Fico feliz em conhecer um pouco do teu pai.
Se eu imaginasse que a publicação de um conto de Ari produziria o milagre do seu reaparecimento aqui no nas horas e horas e meias, eu teria feito isso há muito mais tempo.
Contente com vê-la aqui, Bruna, e também pelo comentário.
Obrigado.
Ótima semana.
Beijos
Haa seu pai escrevia maravilhosamente bem, me emocionei genuinamente com este texto, como emocionavam-se as crianças que neste conto habitam.
Beijos.
Emocionado fiquei, também, mas pelo seu comentário, Bah.
Obrigado.
Ótima semana.
Beijos
Fred Matos
Espero a madrugada e visto minha roupa de sonho...
Que coisa linda, este conto de
Ariovaldo Matos
é uma poesia em versos lindo, estava mesmo saudosa de vim neste recanto literário, meus cumprimentos a você, com admiração,
Efigênia Coutinho
É isso mesmo, Efigênia, é um conto com alto teor de lirismo poético. Há quem condene, mas eu gosto.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Ótima semana.
é, sim, tal pai tal filho...gostei imensamente do escrito de teu pai!!
sabe estou continuando a por trechos do livro de meu irmao, memoria Tumultuada, acho que um mais e depois vou por outras coisas, senao sou capaz de colcar o livro inteiro e nao, seria demias!!!
beijos grandes
Myra,
Francamente, não considero demais colocar o livro inteiro, talvez seja muito trabalho, se você não o tem já digitado.
Quanto ao seu comentário: deixa-me feliz que goste do conto do meu pai.
Obrigado.
Beijos
Ahhhh, mas que incrível! Tem gente que faz mágica com as letras!
É verdade, Sylvia. Você também tem o Dom.
Agradeço-lhe vir, ler e comentar.
Beijos
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