Não sei quem é o autor da ilustração
cujo crédito vai para "nidhin.com"
Dr. Olavo,
Para ser honesto devo confessar que não é fácil a tarefa de relatar os episódios que resultaram no desenlace fatal de sua querida irmã. O Mário, que me contratou em seu nome, sabe que tenho dificuldade com as palavras, apesar da experiência adquirida em 35 anos de investigações criminais. Por isso contratei para redigir o texto, e assessorar-me na investigação, um jornalista aposentado de minha absoluta confiança.
Muito prazer Dr. Olavo, meu nome é José Abreu, o senhor fique tranqüilo, me comprometo a manter o sigilo imposto ao detetive Raimundo, a quem retorno a palavra.
Isso não lhe custará, Dr. Olavo, nenhum centavo a mais que o valor acertado através do Mário: contratei o José às minhas custas. Recebi, do Mário, a título de adiantamento, a importância de 10 mil dólares, e o endereço da caixa postal, em Paris, para onde enviarei este relatório.
Em trabalhos como este, não é usual que as conclusões precedam o relato das informações coletadas, contudo ouso afirmar que não encontrei nada que corrobore a tese de suicídio que me parece firmar-se nos meios policiais de Salvador. Acredito em homicídio e que, lamentavelmente, o seu cunhado foi o autor do crime.
Dr. Olavo, agora é o José quem fala para dizer que acha precipitada a opinião do Raimundo, sobretudo no que tange a concluir que o seu cunhado é autor do possível crime. É a minha opinião pessoal, apesar do respeito que tenho pelo “faro” do Raimundo, comprovado em investigações tão ou mais complexas quanto esta a que nos dedicamos agora. Entretanto, tendo como repórter policial acompanhado centenas de casos do mesmo jaez, posso asseverar que nem sempre o que parece evidente se confirma como fato.
Entrevistamos o Sr. João na porta do apartamento, pois ele não nos permitiu entrar, e o que dele conseguimos pode resumir-se nestas poucas palavras:
− “É o dom divino”. Foi o que ela disse esfregando no avental as mãos sujas de massa. Desinteressado da conversa, a seu pedido abri o forno onde coloquei a assadeira com uma fornada de pão. Voltei para o quarto para ver o jogo na televisão. Tudo o que tinha a declarar já o fiz na delegacia, os senhores, por favor, me deixem em paz.
Homem estranho o seu cunhado, não lhe notei traços de emoção.
O delegado franqueou-nos cópia do depoimento, do qual pinçamos o que nos pareceu mais importante e que relatamos mais adiante. Além disso, nos disse da conversa que tiveram após o depoimento propriamente dito.
Não, nada mais a declarar, disse ao delegado: tudo o que sei é o que contei. “É o dom divino”, foram essas, precisamente essas, as últimas palavras que ela me disse, não sei realmente sobre o que falava, não dei atenção e somente essas palavras ficaram na minha memória. Mas que importância tem isso? O doutor é casado? Sendo, sabe que mulher é assim mesmo, passa o dia falando a respeito de tudo e de nada e quase sempre está falando consigo mesma. Não dei importância. O forno estava aceso, coloquei a assadeira com os pães, ela ficou abrindo massa para outra formada. Posso fumar?
É proibido senhor, fumar em recinto público fechado, mas o senhor só precisa assinar o depoimento e pode ir embora, mas me comunique caso pretenda sair da cidade.
São os seguintes os trechos pinçados do depoimento do Sr. João Álvaro Moreira Neto:
Perguntado em que circunstância encontrou o corpo da esposa, respondeu que estava no quarto vendo um jogo de futebol na televisão quando sentiu cheiro de queimado, sabendo que a esposa assava pães não deu maior importância. Porém, constatando que após alguns minutos o cheiro de queimado se agravava fui ver o que estava acontecendo. Já na sala, à medida que se aproximava da cozinha, intui que algo de terrível ocorrera. “Nunca vi nada mais apavorante na vida, o forno estava aberto, ela com a cabeça enfiada, fedor de carne e cabelo queimado, o tronco sobre a tampa do forno, o resto do corpo no chão, tudo como a policia encontrou e fotografou. Desliguei o forno, senti enjôo, vomitei, liguei para a policia, não toquei em mais nada, saí do apartamento, tranquei a porta e só entrei novamente com os policiais que demoraram quase duas horas para chegar”.
Perguntado se encontrou alguma carta ou bilhete deixado pela esposa, respondeu que não encontrou nada.
Perguntado se sabe o motivo, ou se tem opinião para justificar um possível suicídio da esposa, respondeu que não. “Eu a acreditava uma mulher, se não feliz, pelo menos conformada. Tínhamos uma vida financeira equilibrada, sexualmente ela vinha mostrando algum desinteresse já há alguns anos, mas considero isso normal após 26 anos de casamento. Não tivemos nenhuma discussão, nenhum desentendimento. O único filho que tivemos morreu ainda criança. Ademais não acredito em suicídio, pois não me parece provável que uma pessoa seja capaz de queimar-se até a morte, poderia até tentar, mas ao sentir o calor... não, não acredito. Acho que foi morta ou que sofreu algum acidente ainda inexplicável”.
Perguntado se ouviu gritos ou qualquer outro barulho no tempo decorrido entre o momento em que a viu viva pela última vez e o em que a encontrou morta, respondeu: “como eu já disse, estava no quarto assistindo o jogo na televisão e com o volume alto, pensei ter ouvido a campainha da porta, mas isso não me preocupou, pois, estando ela na cozinha era natural que atendesse. Não ouvi nenhum grito ou barulho, o que é muito estranho, pois não compreendo como uma pessoa possa queimar-se sem gritar”.
Perguntado se sentiu falta de alguma coisa, respondeu que não, que nada de valor está faltando.
Perguntado se foi ele que matou a esposa, respondeu que não, mas que se estivesse investigando teria muita dificuldade em acreditar na sua inocência.
Como o pode ver, Dr. Olavo, tudo aponta para o seu cunhado.
Dr. Olavo, agora é o José, novamente, para dizer que acredita na possibilidade de uma terceira pessoa ter entrado no apartamento e narcotizado a sua irmã antes de enfiá-la forno adentro. Note-se que o seu cunhado pensou ouvir a campainha da porta, e que não há no depoimento referencia a se a porta estava trancada ou destrancada. Fiz esta pergunta ao seu cunhado e ele disse que não tinham o costume de trancar a porta por dentro, porque é do tipo de porta que só abre por fora com uso da chave. Ou seja, uma fechadura comum de porta da rua com maçaneta externa fixa, dessas que serve apenas para puxar e como elemento de decoração.
Retorno ao Raimundo.
Sendo assim, Dr. Olavo, solicito que autorize o Sr. Mário a pagar-me a segunda parcela contratada. A terceira, e última, espero receber quando enviar o resultado final da investigação.
Com as nossas sinceras condolências
Raimundo Pacheco e José Abreu
9 comentários:
OTIMO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
e obrigada pelo seu comentario, como eu gostaria de escrever assim de fantastico como voce!!!
beijos
Então, Sr. Fred, enveredou-se pelo conto policial. Pode saber que está muito bom, bem construído. Eu, que desde pequena, sou fã do Sherlock, posso dizer que é muito bom. Gostei desse outro lado seu. beijo.
Tinha escrito um comentário enorme, mas parece que deu problema. Então, vou resumir. Gostei bastanete desse conto policial. Desde pequena sou fã de Holmes e adoro esses mistérios. Seu conto está bem construído e o leitor que decida. Quem matou: o marido? um desconhecido? Muito bom mesmo. O desenho condiz perfeitamente com o texto. parabéns, Fred.Beijo
Que bom que você gostou, Myra.
Obrigado.
Beijos
Marcos,
Acho que seria exatamente esta a pergunta que o Dr. Olavo faria ao detetive Raimundo: e qual foi o resultado da autópsia? Já que, pela descrição da cena (do crime, ou do suicídio, sabe-se lá), parece que a parte inferior do corpo não se queimou, é possível saber se havia traços de alguma substância exógena nas vísceras, ou se o exame de sangue revela envenenamento ou substância dopante. Talvez o detetive Raimundo tenha sido omisso para receber a segunda parcela. De fato não sei. Foi apenas este relatório, assim como está aqui, que encontrei sob a minha porta ao retornar do carnaval.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Abração
Fico contente por você gostar, Adriana, mas bons mesmos são os contos policiais do meu saudoso amigo Iosif Landau, um mestre no gênero que consagrou Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Elmore Leonard, entre outros.
Agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário.
Beijos
Olha só, o meu primeiro comentário não saiu, então vieram dois meio assim...assim...não entendi, ficção? a autópsia ? tudo misterioso, mas acho que foi suicídio mesmo. Ela cansou de ficar à beira do fogão.beijo.
É possível que, sim, Adriana. Lembrou-me que o poeta Torquato Neto que voltou de uma festa, trancou-se no banheiro e abriu o gás.
Mas suicidas quase sempre deixam mensagens. A de Torquato dizia: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar". Thiago era o filho de dois anos de idade.
Agradeço-lhe mais uma vez sua visita, leitura e comentário.
Beijos
Vou confessar, Marcos, que era exatamente isso que eu tinha em mente quando comecei a escrever essa história, que faz muitos nos está adormecida no HD do micro porque, na época, me deu uma preguiça monumental e deixei como a encontrei agora, e achei melhor publicar porque continuo com preguiça para ela. Se você quiser, desenvolva daí em diante.
Abração
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