sexta-feira, abril 2

na noite das barricas bentas – final





Não vou encher linguiça, nem as suas paciências, relatando pormenorizadamente os insignificantes eventos que transcorreram nos meses seguintes até aquele que ficou conhecido como “O dia do parto”.

Naquele dia Poço Fundo foi o assunto de todas as manchetes nacionais e precariamente abrigava trinta vezes mais almas do que a sua população. Eram tantos padres quantos os há no Vaticano e de tantas nacionalidades quantas há na ONU. Tantos jornalistas quanto havia jornais. Os maiores contingentes, porém, eram os formados por malucos, místicos, profetas, camelôs e punguistas.

Apolônio Pitomba, coitado, não dava conta de atender a tanta demanda. Meses de planejamento mostraram-se inúteis. Nas suas anotações lê-se que esperava que a população dobrasse naqueles dias e, homem prevenido e ganancioso, encomendara suprimento para o dobro do dobro, não somente para engordar a comissão, como também para apropriar-se das sobras, suponho. Um fulminante infarto do miocárdio viria a calhar para eliminar desta história um personagem tão desagradável, mas esta é uma estranha história na qual até agora só se registra um único óbito e se aguardam milhares de nascimentos. Apolônio era do tipo que transformava crises em oportunidades. Com público estardalhaço renunciou ao cargo acusando o prefeito de não lhe ter dado apoio suficiente e deixando subliminarmente entender que a máxima autoridade municipal desviara considerável soma dos recursos enviada pelo Estado ao município. Só não transcrevo aqui as anotações do diário do prefeito Nicolau Miranda alusivas ao fato porque não quero que o meu relato fira suscetibilidades e vá para o índex dos moralistas de plantão.

Batata quente nas mãos, Nicolau decidiu que era melhor ir acompanhar o parto de Dona Filomena e deixou acéfala a cidade. Mas com tantas novas cabecinhas prontas para apontar, não fazia, nem fez, como mais adiante se verá, nenhuma diferença. O caos estava formado, não havia mais nada que se pudesse fazer. Não havia comida para todos. O problema da água se agravou com a necessidade de encherem-se milhares de barricas e porque o povaréu emporcalhou a nascente do riacho com urina e fezes, na falta de lugar decente para cumprir as fisiológicas necessidades. Não havia um centímetro quadrado disponível sob qualquer teto para acomodar mais gente, e gente não parava de chegar.

Quem é do sertão sabe que não há coisa pior que a falta d’água. Nestas ocasiões é como se diz na roça: “filho chora e mãe não ouve”. Sendo assim deu-se o inevitável: o povaréu sedento e desesperado apoderou-se das barricas de água benta. Entre a água de benzer e a água de beber “quem há de negar que esta lhe é superior?”. Revelou-se, assim, também inútil o planejamento episcopal para o monumental batismo, quiçá afogamento, como desejava o Adolfo.

“De repente, não mais que de repente” “a cidade quedou paralisada”. Sem qualquer anúncio caiu sobre Poço Fundo um silêncio de sepulcro e fez-se noite ao meio-dia. Dia igual houvera apenas aquele, nove meses atrás, e o fenômeno in-solar testemunhas a dar de pau, conquanto, mais uma vez, a ciência não tenha sido capaz de uma explicação plausível. E, vindo de todo lugar e de lugar nenhum, ecoou um grito pavoroso, um grito continuado como canto de cigarra e pungente como cio de gata, mas humano na sonoridade. Ecoava nas paredes o grito, único som audível capaz de romper a escuridão. Candeeiros eram inúteis. Velas, fósforo, nenhum lume, como se oxigênio não houvesse para nutrir as chamas. Inúteis eram as palavras, nenhum som soava, exceto o grito absurdo vindo do nada. Homens, mulheres, crianças, choravam sem ruído, sem soluço, sem lágrimas. As orações, súplicas, arrependimentos, calavam nas almas beatas. É o fim do mundo, o purgatório, estamos mortos. Soube-se depois, quase todos pensaram. Até mesmo os bichos domesticados, os depoimentos relatam, sofreram consequências. Os cães, rabo entre as pernas, imóveis sob as camas. Os gatos, estes dormiram todo o tempo, nenhuma novidade. Dos pássaros, nenhum pio, imóveis nos poleiros das gaiolas.

Encerrado o encantamento as mulheres descobriram-se ocas, tal qual esta história dos que foram sem terem sido.



Fred Matos

4 comentários:

Carla Luma disse...

É um texto muito grande pra pôr em blog, Fredinho. Dividir em partes ajuda, mas não resolve. Apesar disso eu li todo e gostei, mas acho que dá pra você meter a tesoura e cortar uns bons pedaços sem nenhum prejuízo para a história nem para o fluxo narrativo, que pode até ficar mais ágil. Mas eu gostei mesmo neguinho, é só porque eu sei que se você quiser pode torná-lo ainda melhor.
Comecei a colocar umas coisas lá no meu blog. Espero que me visite e comente. Seja crítico, por favor, não me poupe.
Deixo um beijão pra Dila outro pra ti.

Fred Matos disse...

Pois é, Carlinha. Relutei muito, mas coloquei (na verdade recoloquei, porque já havia publicado antes) este conto porque apeteceu-me atualizar o blog.
Você tem razão: posso trabalhar mais o texto, mas é coisa que não pretendo fazer agora, pois estou envolvido em outros projetos.
Dila há de receber e, certamente, retribuir o seu beijo.
Beijão, querida.

Juci Barros disse...

Ufa, li todo. Muito bom, gosto de "causos". Beijo.

Fred Matos disse...

Que bom que você gostou, Juci. Espero que tenha valido o esforço de ler texto tão grande na tela do micro.
Obrigado.
Ótimo domingo
Beijos

pesquisar nas horas e horas e meias