quarta-feira, dezembro 24

primeira cicatriz


não sei quem é o autor da foto


Era vermelho o carro que o matou e sumiu chispando, cantando pneus. Fendida a cabeça no impacto com o meio-fio, o sangue brotava da base do crânio escorrendo na sarjeta, tingindo os veios imundos dos paralelepípedos e empoçava-se viscoso, refletindo o sol abrasante do meio dia. Transeuntes puseram-no em decúbito ventral, cruzaram-lhe os braços sobre o tronco, juntaram-lhe as pernas e cobriram-no com folhas de jornal, as pontas presas por pedras soltas do calçamento. A tudo assistira, da sua janela, uma anciã, levemente corcunda e muito magra, dessas cujos ossos parecem a ponto de furar a pele enrugada. Ela acorreu trazendo uma vela, ajoelhou-se, acendeu o lume, tirou um terço do bolso, e a Deus encomendou sua alma.

Mais curiosos chegaram, se aglomerando, se empurrando, formando um círculo compacto ao nosso redor. Um negro alto, espadaúdo, cabelo encarapinhado, ventas arreganhadas, olhos injetados, tirou-lhe os sapatos e, sob protestos e vaias da platéia, abriu caminho a socos e cotoveladas, levando ao chão os que se lhe interpunham e, nas mãos, triunfante, o seu butim. Um velho desavergonhado, magro, baixo, calvo, paletó puído nas mangas, levantou com a ponta do guarda-chuva a gazeta que lhe amortalhava o rosto, abanou a cabeça negaceando e foi embora. Foi a última imagem que vi de papai: a face já macilenta e os olhos negros arregalados, hipnotizados pelo terror.

– Coisa feia de se ver, menino — arrancou-me puxando sem ternura pelos ombros, uma balzaquiana gorda trajada de organdi, escandaloso estampado floral, hálito de alho e cebola.

Nas portas das lojas, vendedores e clientes se espichavam nas pontas dos pés para admirar o tumulto, cada qual especulando a versão que lhe vinha à cabeça.

Formara-se num átimo a algazarra.

Antes que alguém se desse conta de mim, de quem eu era, a maior vítima, afastei-me caminhando a esmo, pernas bamboleando, raciocínio embotado, um nó na garganta, olhos congelados perdidos no não sei onde.

Com a Avenida Sete de Setembro parcialmente obstruída pelo desastre, formou-se um grande engarrafamento e o buzinaço ecoou-me como escárnio da Praça da Piedade até à Rua do Forte de São Pedro, por onde caminhei até o Campo Grande.

As buzinas silvavam, intermitentes umas, persistentes outras, reboando no meu cérebro. Não mereceria meu pai o respeito do silêncio? Inutilmente tapei com as mãos os ouvidos, mas a estridência me invadia pelos poros, pelas frestas dos dedos, pelos olhos, pela boca e eu ouvia que as buzinas me acusavam: “você correu”, “você fugiu”.
Entorpecido e confuso, sentei-me em um banco de pedra próximo à fonte luminosa e, enfim, chorei.

Uma senhora perguntou-me se eu sentia alguma dor, eu disse que não. Perguntou se eu estava perdido, eu disse que não. Perguntou "então choras por quê?" Eu disse que perdera o dinheiro do ônibus para voltar pra casa. Ela me deu algumas moedas e seguiu em paz com a sua consciência.

Fiquei ali até anoitecer e foi naquelas horas de dor, choro, desespero, lembranças, autocomiseração e medos que decidi não contar a Madalena, minha madrasta, o que acontecera.

Começava a escurecer quando tomei o Campo Grande - Ribeira. O sol acabara de se esconder atrás da Ilha de Itaparica quando descemos a Avenida Contorno para alcançar a Cidade Baixa. Saltei no Largo de Roma, a cerca de meio quilômetro da minha casa, e fiz o resto do caminho a pé, maquinando o que diria quando chegasse. Talvez, pensei, a notícia me precedesse e, por dor mais dolorosa, o esquecimento apagasse em Madalena a preocupação com a minha ausência, poupando-me explicações.

Saíramos, eu e papai, os dois gozando férias, às dez horas da manhã daquela quarta-feira, para pedir na loja onde ele trabalhava, e em outras, aos seus camaradas de ofício, retalhos de tecidos, imprestáveis para o balcão, que sempre sobram das vendas natalinas. Retalhos para Madalena cozer "colchas de fuxico" e vender, de porta em porta, engordando o haver do nosso parco orçamento doméstico.

Recolhêramos uma boa quantidade quando papai foi atropelado, já quase concluída a travessia. Eu, saltitante de alegria pelo passeio, correra na frente, entre os veículos, livre das suas mãos enormes no meu pescoço.

Da calçada, ouvi o guinchar de freios, o som surdo da porrada do carro e o da cabeça de papai espatifando-se no chão. Virando-me vi-o já cadáver, a massa encefálica à mostra, o sangue jorrando e, rompidos os embrulhos de papel, os retalhos irremediavelmente perdidos.

A caminho de casa passei na de Guga, amigo de brincadeiras e colega de escola. Ele morava na melhor casa da rua, a única com quintal, quase um bosque mágico habitado por fadas e duendes, onde costumávamos brincar nos balanços atados aos galhos altos de uma frondosa mangueira. Balanços que transformávamos em trapézios como os do Circo Garcia, que armava a sua lona nos arredores por quinze dias a cada ano; ou que desmontávamos, retirando-lhe as tábuas, fazendo das cordas os cipós nos quais brincávamos de Tarzã, o homem macaco, herói e paradigma, meu e de Guga, invencível nas lutas contra leões, tigres, jacarés e homens maus.

Ainda na porta, Guga perguntou-me por onde eu andara a tarde inteira e me informou que Madalena me procurara. Menti-lhe que me perdera de papai na Avenida Sete de Setembro e que voltara a pé. Era a versão que preparara para Madalena e foi o que disse quando ela me inquiriu.

– Você não devia sair de junto dele, você é muito traquinas! Geraldo deve estar lhe procurando como um louco. — A notícia ainda não lhe chegara.

Tomei a sopa que ela me serviu e não saí para brincar com a molecada da rua, como teria feito se outra fosse a situação. Fui para o meu quarto de onde era perceptível a preocupação de Madalena: ouvia-a ir e vir, trilhando várias vezes o curto percurso entre a porta da rua e a cozinha, arrastando os pés no corredor e praguejando contra a demora de papai. Pela primeira vez, tive pena dela. Apesar de sempre me tratar com doçura, via-a, até àquele dia, injustamente, como um estorvo: uma mulher, que não era a minha mãe de verdade, me obrigando a cumprir horários e tarefas.

Passava pouco das nove da noite quando bateu à porta um policial perguntando se era ali a casa do Sr. Geraldo Freitas Alencar.

– É, sim, mas não está.

– A senhora é o quê dele?

– A mulher. — do quarto ouvi que a voz de Madalena sufocava ganhando um tom de pânico — Mas qual é o problema?

– Sinto muito, senhora, seu marido foi atropelado e está morto. Precisamos que a senhora nos acompanhe ao Nina Rodrigues para fazer o reconhecimento do corpo.

Atraída pelo carro de policia parado à nossa porta, a vizinhança foi chegando para assuntar a novidade. Do quarto, o som atravessando o compensado da porta, eu ouvia Madalena chorando convulsivamente e invocando o Nosso Senhor do Bonfim, esperançosa, ainda, talvez, que o corpo encontrado não fosse o de papai. Pela janela entrava o alarido da rua e logo as vozes de consolo invadiram a casa. Uma delas perguntou por mim, e Madalena respondeu que eu estava dormindo. Temendo que alguém se dispusesse a conferir, fiquei deitado, quieto, as costas voltadas para a porta do quarto e adormeci.

A bruxa vinha me pegar, eu queria correr, minhas pernas se moviam, mas eu não saía do lugar, papai ria um riso de som áspero como o do freio inútil, como o dos pneus cantando nos paralelepípedos, como os das vozes estranhas, como os das buzinas dos automóveis. Urubus dançavam em torno de mim e me bicavam. A bruxa, língua bipartida, mortalha de jornal negra e branca, já quase me pegando. Papai rindo, chamando e rindo, não corra, não corra, venha Júnior, não fuja...

Acordei no meio da madrugada, a casa silenciosa e totalmente escura, o coração pulsando aos trancos. Levantei-me para beber água e espantar o medo, acendi a lâmpada da sala e, no corredor, a porta aberta do quarto de papai, a cama do casal vazia, o lençol encardido espichado, indicavam que Madalena ainda não voltara da sua triste missão. Passei o resto da noite rolando na cama, conjeturando um futuro sombrio.

Amanhecia quando Madalena chegou. Ouvi o barulho da porta e continuei deitado, fingindo que ainda não acordara. Ela foi para a cozinha, coou o café e foi me acordar com um copo de café com leite condensado e o pedaço de pão seco de todo dia. Esperou que eu me alimentasse e, não conseguindo mais conter as lágrimas, comunicou-me a morte de papai.

Não sei por qual mecanismo da minha psique, chorei como se fora coisa não sabida, como se fora confirmação de algo que, até então, pertencia ao universo do talvez.


Fred Matos

14 comentários:

Anônimo disse...

o seu relato da morte um poema de de triste lembrança e trágica vivência e que ternura dele emana da mente e vida de uma criança, o pai indistrútivel tombado por mecânica indiferemça e cruel destino, contigo divido a tristea.
meu pai morreu de velhice desabou como uma carroça velha e gasta e eu já insensível a morte por ter assistido a tantas chorei a perda muitos anos mais tarde sem nenhuma ternura e pouca tristeza, a vida nos torna duros com os sentidos adormecidos por outros sofrimentos
mas sempre tem um uma janela por onde lamentamos a dor dos amigos
um grande abraço

Bruna Mitrano disse...

Não entendo a morte. Entendia menos ainda quando crinça.
Nem sei como elogiar esse texto, é perfeito.
Senti arrepio, quase senti lágrima, acho que senti a angústia do menino.
Tão cheio de detalhes, tão sem exageros, tão intenso.
Devo estar sendo repetitiva, mas seus textos são assim mesmo, completos, como um desenho de contornos precisos, traços firmes, cores leves. Esse texto foi meu presente de natal!rs
Bom feriado p'ra ti e escreva mais!

Elis Zampieri disse...

Concordo com o que a Bruna escreveu. Completo, tocante, perfeito!
Boa tarde Fred!

Branca disse...

Muito tocante mesmo, fiquei presa à leitura do início ao fim.

Feliz Natal!
Desejo que 2009 seja um ano de muitas realizações, tanto na vida pessoal como na vida profissional, sempre com muito amor, muita paz...
bjo carinhoso,
Branca.

Ariane Rodrigues disse...

Vejo na atitude do narrador a não-aceitação da dor, do vermelho que jorrava em seu interior como o sangue se esvaindo na calçada...

Abraço!

mariza lourenço disse...

Fred querido,
Iosif disse tudo o que eu gostaria de escrever e, por absoluta incompetência (impotência), não conseguiria.
um beijo enorme.

Fred Matos disse...

Querido Iosif,
Meu pai morreu de tristeza. Morreu aos poucos. Deixou-se morrer, em 1988, aos 62 anos, por múltipla falência dos órgãos, afogado em álcool, recusando tratamento. Morreu de tristeza porque já não acreditava na realização dos seus sonhos de um mundo mais justo para todos. Começou a morrer muito cedo: talvez em 1956, com a divulgação do “Informe Kruschev” denunciando os crimes de Stalin. Na época meu pai era redator-chefe de “O Momento”, órgão oficial do Partido Comunista na Bahia. Ele rompeu com o partido, fechou o jornal e iniciou um semanário, também de esquerda, mas desvinculado de partidos, independente. Continuou, mas agora sem “guias geniais”, um idealista que acreditava na solidariedade, acreditava numa sociedade baseada no princípio marxista "De cada um, conforme sua capacidade, para cada um, conforme sua necessidade". Daí em diante a realidade cumpriu a tarefa de fazê-lo ver que primeiro é preciso mudar o homem, para depois mudar a maneira como o homem se relaciona com os outros homens e com o meio-ambiente, e talvez ele tenha concluído que mudar o animo dos seres humanos só será possível quando a nossa civilização chegar ao fundo do poço. Mas isso é conjectura minha. Além disso, meu pai morria sempre que morria um amigo. Chorava sem lágrimas, eu sabia.
Se é verdade que inconscientemente o ficcionista coloca-se nos personagens, uma análise psicológica poderá dizer que o carro vermelho que o matou é metáfora da sociedade de consumo. Eu nunca havia pensado nisso.
Grande abraço.

Fred Matos disse...

Acho muito difícil mesmo entender a morte, Bruna. A espécie humana é, até onde sei, a única que tem consciência da morte e, paradoxalmente, a única que vive como se não fosse morrer jamais. Além disso, há quem acredite na possibilidade de viva após a morte, mas mesmo estes são apegados à vida e temem a morte.
Obrigado, querida, pela visita, leitura e comentário.
Beijos.

Fred Matos disse...

Obrigado, Elis. Fico contente que você goste.
Beijos.

Fred Matos disse...

Obrigado, Branca. Também para você meus votos de um 2009 maravilhoso.
Beijos.

Fred Matos disse...

Pois é, Ariane. Mesmo adultos têm dificuldades em lidar com as perdas. Quando meu pai morreu e, mais recentemente, quando morreu a minha mãe, eu me sentia um tanto quanto aéreo: com a consciência de que eles tinham morrido, mas com uma zona nebulosa do cérebro atuando para me fazer crer que não, que a morte era uma ilusão. Eu creio que nas crianças, sempre mais próximas da fantasia que os adultos, este “universo do talvez” atue com mais vigor. Isso eu tentei passar no texto, mas de maneira sutil, porque o narrador já está distanciado no tempo do episódio narrado. Fico contente que você tenha percebido.
Obrigado pela visita, leitura e comentário.
Abraço.

Fred Matos disse...

Querida Mariza,
Tome como para você a resposta que dei ao comentário do Iosif.
Beijão, amiga.

Alice Cezar disse...

Maravilhoso, Fred. Você consegui reunir coisas muito delicadas como a morte de um pai e a dor de uma criança em um texto de uma situleza espetacular. Eu gosto muito de detalhes, e ele está riquissimo, você me fez ver além destas palavras.

Beijos e um ótimo Ano pra você!

Fred Matos disse...

Obrigado, Alice.
Fiquei muito contente pela sua visita, leitura e comentário.
Que 2009 seja muito além dos seus melhores desejos.
Beijos.

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