domingo, janeiro 18

quem conta um conto


Prosseguindo com as traduções dos contos de Julio Cortázar, publico hoje "Profunda siesta de Remi", que é o quarto conto de "Plagios y traducciones" a primeira parte, de três, do livro "La otra orilla". 
As outras partes são "Historias de Gabriel Medrano" e "Prolegómenos a la Astronomía".

Traduções já publicadas no blog:





ilustração: "The Shelter, 1963"
Jan Saudek



A profunda siesta de Remi

Julio Cortázar

Tradução: Fred Matos
a partir do texto publicado nas páginas 49 a 51 de “Cuentos Completos/1” Decimoquinta reimprésión: junio de 2007, Editora Alfaguara – Buenos Aires – AR 


Vieram. Havia imaginado muitas vezes os passos, distantes e leves, depois próximos e densos, retendo-se um pouco nos últimos metros como uma última hesitação. A porta se abriu sem que ouvisse o familiar barulho da chave; tão atento esperava o instante de se juntar e enfrentar seus algozes.
A frase se construiu em sua consciência antes dos lábios do prefeito modularem-na. Quantas vezes havia suspeitado que somente uma coisa podia ser dita naquele instante, uma coisa simples e clara que tudo continha. Escutou-a:
- É agora, Remi.
A pressão nos braços era firme, mas sem excessiva dureza. Sentiu-se levado como para passear pelo corredor, olhou desinteressado algumas silhuetas que se prendiam nas grades e cobravam de repente uma importância imensa e tão terrivelmente inútil, apenas a importância de serem siluetas vivas que ainda se moveriam por muito tempo. A câmara maior, nunca vista antes (mas Remi a conhecia na sua imaginação e era exatamente como tinha pensado), uma escada sem apóio porque com ele subiam o apóio lateral dos carcereiros, e para cima, para cima...
Sentiu o laço redondo, soltaram-no bruscamente, e apenas por um instante se sentiu livre como em um grande silêncio cheio de nada. Então quis antecipar o que ia acontecer, como sempre e desde pequeno adiantava-se aos fatos em pensamento; meditava no instante de desânimo das possibilidades sensoriais que o galvanizaram um segundo depois que soltaram a escotilha. Cair em um grande buraco negro ou apenas a asfixia lenta e atroz ou algo que o satisfazia plenamente como construção mental; algo defeituoso, insuficiente, algo...
Cansado, retirou do pescoço a mão com a qual havia fingido a corda ensaboada; outra comédia estúpida, outra siesta perdida por culpa de sua imaginação enferma. Se endireitou na cama procurando os cigarros somente para fazer alguma coisa; ainda tinha na boca o sabor do último. Acendeu o fósforo, pôs a olhá-lo até quase queimar os dedos: a chama bailava nos seus olhos. Depois se estudou vaidosamente no espelho do lavabo. Hora do banho. Falar com Morella por telefone e encontrá-la na casa da senhora Belkis. Outra siesta perdida; a idéia o atormentava como um mosquito, afastou-a com esforço. Por que não acaba o tempo de varrer os restos da infância, a tendência de imaginar-se personagem histórico e forjar na sonolência de fevereiro grandes acontecimentos onde a morte o espera ao pé de uma cidade amuralhada ou no topo de um patíbulo? Criança: pirata, guerreiro gaulês, Sandokan(1), concebendo o amor como um empreendimento no qual somente a morte constituía troféu satisfatório. Adolescência: supondo-se ferido e sacrificado - sestas de revoluções, derrotas impressionantes onde algum amigo querido ganhava a vida em troca da sua! - sempre capaz de entrar na sombra por um postigo elegante de alguma frase póstera que lhe fascinava construir, recordar, listar... Esquemas já estabelecidos: a) A revolução onde Hilario o enfrenta da trincheira oposta. Etapas: tomada da trincheira, encurralamento de Hilario, encontro em clima de destruição, sacrifício dando-lhe o seu uniforme e deixando-o ir, balaço suicida para cobrir as aparências. b) Salvação de Morella (quase sempre impreciso); leito de agonia - intervenção cirúrgica inútil - e Morella tomando-lhe as mãos e chorando; frase magnífica de despedida, beijo de Morella em sua testa suada. c) Morte na frente do povo em torno do cadafalso; vítima ilustre, por regicídio ou alta traição, Sir Walter Raleigh (2), Álvaro de Luna(3), etc. Palavras finais (o redobrar dos tambores apagou a voz de Luis XVI(4)), o carrasco contra ele, maravilhoso sorriso de desdém (Carlos I(5)), pavor do publico novamente admirado de semelhante heroísmo.
Acabava de voltar de um sonho assim - sentado na beira da cama continuava se olhando no espelho, ressentido - como se não tivesse já trinta e cinco anos, como se não fosse idiotice conservar essas aderências da infância, como se não fizesse demasiado calor para imaginar semelhantes transes. Variações dessas siestas: execução particular, em algum cárcere londrino onde se enforca sem muitas testemunhas. Sórdido final, mas digno de saborear-se lentamente; olhou o relógio e eram quatro e dez. Outra tarde perdida...
Por que não falar com Morella? Discou o número, sentindo ainda o mau humor da sesta que não tinha dormido, somente imaginado a morte como tantas vezes desde criança. Quando atenderam do outro lado, pareceu a Remi que o “Alô” não era Morella que dizia, mas uma voz de homem e que havia um sufocado cochicho ao responder-lhe: “Morella?”, e depois sua voz fresca e aguda, com a habitual saudação apenas ligeiramente menos espontânea precisamente porque a Remi chegava com uma espontaneidade desconhecida.
Da rua Greene à de Morella exatamente dez quadras. De carro dois minutos. Mas ele não tinha dito: “Te verei às oito na senhora Belkis?”. Quando ele chegou, quase pulando do táxi, eram quatro e quinze. Entrou correndo pelo living, subiu ao primeiro andar, parou na frente da porta de mogno (a da direita vindo da escada), abriu-a sem bater. Ouviu o grito de Morella antes de vê-la. Estavam Morella e o tenente Dawson, mas apenas Morella gritou ao ver o revólver. Pareceu a Remi que o grito fosse seu, grito quebrando-se violentamente em sua garganta contraída.
O corpo acabava de tombar. A mão do carrasco buscou o pulso nos tornozelos. E foram testemunhas. 

1939.
   
                 
  

Notas do Tradutor: 

(1) Sandokan é um personagem criado pelo escritor italiano Emilio Salgari, nascido em Verona em 21/08/1862 e falecido em Torino em 25/04/1911. Desde muito sedo, Emilio, se interessou pelas viagens marítimas e decidiu ser capitão. Ingressou na Academia Naval de Veneza, alistou-se num barco mercantil e percorreu a costa Adriática. Regressou a Itália onde começou a ganhar sustento com as suas obras que começaram por serem publicadas em jornais. Mais tarde, casou-se com Ida Peruzzi, com quem teve quatro filhos. Com a morte da sua esposa, Emilio Salgari decidiu acabar com a sua vida, no alto do Vale de San Martino, cometendo harakiri.

(2) Sir Walter Raleigh, nascido em Hayes Barton, Devonshire, em 1552 ou 1554, falecido em Londres em 29 de outubro de 1618, decapitado por ordem de Jaime I da Inglaterra, foi um explorador, espião, escritor e poeta britânico que entre 1584 e 1585 fundou, na ilha de Roanoke, o primeiro núcleo de colonização inglesa na América do Norte. Núcleo que, entretanto, desapareceu, possivelmente destruído pelos indígenas.

(3) Álvaro de Luna - Nobre espanhol; duque de Trujillo e conde de Ledesma, nasceu em 1388 e morreu em 2 de junho de 1453. Teve forte influência na corte dos monarcas castelhanos, era o favorito de João II. Está enterrado na capela de Santiago, na charola da catedral de Toledo.

(4) Luis XVI - Rei francês (1774-1792) nascido em Versalhes, que criou (1789) o Estado-Geral, mas não desenvolveu as reformas prometidas o que provocou a revolução, um dos acontecimentos mais importantes da idade moderna. Ele e sua rainha, Marie Antonieta, foram executados na guilhotina (1793) na Place de la Révolution, depois Place de la Concorde, em Paris. Filho de Luís XV e de Maria Josefa da Saxônia, tornou-se delfim, herdeiro do trono (1765), com a morte do pai. Cinco anos depois, casou-se com a arquiduquesa austríaca Maria Antonieta de Habsburgo, filha da imperatriz Maria Teresa da Áustria. Assumiu o trono (1774), após a morte de seu avô Luís XV. Reconhecido como um rei de caráter fraco, perdeu sua força de governo para o Parlamento, dominado pela aristocracia, o que levou o reino à beira da falência. Devido à condições climáticas (1788), a produção de alimentos baixou, os preços aumentaram e houve fome, gerando descontentamento. Incumbiu o ministro Turgot de realizar uma reforma tributária, mas este sofreu forte oposição dos nobres e demitiu-se. Em busca de salvar a corte deixou-se dominar pelas facções mais reacionárias lideradas por seu irmão, o conde de Artois, e pela rainha Antonieta. O novo ministro Necker convenceu o rei a convocar a Assembléia dos Estados Gerais, que se reuniram em maio (1789) em Versalhes. O que se queria é que o Terceiro Estado pagasse os impostos que ambos clero e nobreza recusavam-se. A estratégia era que a votação fosse feita por Estado e não por indivíduos. Em 17 de junho daquele ano o Terceiro Estado reuniu-se em separado e proclamou a Assembléia Nacional, que em 9 de julho tornou-se Assembléia Nacional Constituinte. No dia 26 de agosto foi aprovada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Diante da criação da Assembléia Nacional e da recusa do rei em aprová-la e a massa parisiense invadiu Versalhes, a família real tentou fugir do país, mas foi capturada e obrigada a ficar em Paris. Tentou então fugir do Palácio das Tulherias (1791) para comandar do exterior a contra-revolução, porém foi reconhecido e preso em Varennes. Sua última esperança estava na Áustria, terra natal da rainha Maria Antonieta. O exército austro-prussiano invadiu a França, mas foi derrotado em setembro (1792) e, então, foi proclamada a República. O rei e a rainha julgados por traição, condenados à morte na guilhotina, a monarquia abolida (1792) e ele executado em 21 de janeiro (1793).


(5) Carlos I da Inglaterra e Irlanda (1625-1649. Nasceu em 1600, o segundo filho sobrevivente de Jaime VI da Escócia (que viria a ser Jaime I da Inglaterra em 1603) e sua mulher Anna da Dinamarca. Com o falecimento do irmão mais velho, Henry, tornou-se herdeiro do trono. Herdou do pai a crença no absolutismo. Após coroado rei, casou com Henrieta Maria, irmã de Luís XIII, rei da França. Os Puritanos dominavam o parlamento e queriam as razões da guerra com a Espanha. A Inglaterra entra também em guerra com a França por simpatia com os hunguenotes (protestantes franceses) e a briga por dinheiro com o parlamento torna-se pior. Carlos I dissolveu o parlamento e governou sozinho por onze anos. Para não precisar de mais autorizações de recursos, terminou a guerra com a Espanha e a França. Governou relativamente bem até 1639, quando entrou em guerra com os bispos escoceses que defendiam sua religião presbiteriana contra a anglicana que o rei desejava impor. O mal resultado da guerra obrigou Carlos I a convocar o parlamento em 1640, que condenou seu governo e mandou decapitar o ministro Straffor em 1541. Carlos foi à Escócia reunir apoio contra o parlamento, para isto liberou o culto presbiteriano naquele reino. O Parlamento negou-lhe recursos, a rainha foi à Holanda empenhar jóias da coroa, e Carlos equipou seu exército ao mesmo tempo que o Parlamento montava o seu e começaram as escaramuças. Inicialmente Carlos I foi bem. Instalou a corte em Oxford, no Christ Church Colege (monde viria a morar Locke). Ali juntou-se a ele a rainha, trazendo armas da Holanda. A rainha urgiu-lhe atacar os parlamentaristas. Este trouxeram um exército de reforço formado de anti-realistas escoceses 1644. A rainha fugiu para a França e, no ano seguinte, também o príncipe herdeiro Carlos (filho mais velho). Mais disciplinado, o exército do parlamento começou a vencer as batalhas, primeiro comandado por Thomas Fairfax e depois pelo seu auxiliar Oliver Cromwell. Oxford foi tomada (1646) e Carlos I fugiu disfarçado procurando o acampamento dos escoceses que o acolheram em Newark onde ficou um ano. Mas quando dos "convenanters" se retiraram de volta à Escócia, entregaram-no a comissários do Parlamento. Em uma tentativa de fuga mal sucedida, Carlos e seus dois filhos Henry e Elizabeth foram capturados e retidos na ilha de Wight, cujo governador era parlamentarista. Carlos teve aí oportunidade de tentar negociar com os escoceses prometendo-se implantar por três anos a presbiterianismo também na Inglaterra, e com os parlamentaristas, com quem não chegou a termos. Em 1648 o último partidário escocês de Carlos I foi derrotado e terminou a guerra civil. Carlos I foi julgado e executado em 1649. Foi implantada a república. Cromowell proclamou-se Protetor da Inglaterra e dissolveu o Parlamento. Poder absoluto até morrer em 1658

2 comentários:

Anônimo disse...

fred:
passei para me atualizar.
um abraço.
romério

Fred Matos disse...

Agradeço-lhe a visita Romério.
Tenho visitado o seu, embora sem registrar a visita.
Abraços

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