prelúdio
foto: Zoran Simic
fall into the creek
"Não há ausentes sem culpa,
nem presentes sem desculpa."
antigo brocado latino
nem presentes sem desculpa."
antigo brocado latino
Entre outras asneiras que integram os provérbios atribuídos à sabedoria popular, um, muito citado com acepção metafórica mais pertinente que o significado literal, diz que todos os rios correm para o oceano. Quis a natureza, porém, que o Tietê, nascido na serra do mar, corra do leste para o oeste.
Em alguns trechos é um rio largo e manso, como naquele no qual corta a chácara, próxima de Arujá, onde nasci e vivi meus primeiros anos. Em outros trechos o Tietê estreita-se e serpenteia violentamente entre os rochedos, despencando-se cachoeiras abaixo. Não o conheço todo, longe disso, mas sei que tem, no linguajar do povo de lá, mais de 150 léguas de sesmaria, e que, no seu singular curso do litoral para o interior, atravessa grandes cidades, das quais recebe esgoto e lixo.
Quando eu era menino, havia na chácara, à margem do rio, um caminho, com largura um pouco maior que a de um carro de bois, livremente usado pelos tropeiros, dos quais exigia-se apenas que não deixassem abertas as cancelas. Talvez o caminho ainda exista, mas não acredito que continue-se usando-o como passagem de viajantes. Certeza não tenho de nada, porém, porque quando papai morreu, faz mais de trinta anos, vendeu-se a chácara e mudamos para uma cidade do sertão da Bahia, onde moravam os parentes de mamãe, e, até poucos dias atrás a chácara, papai, o rio, Arujá, a infância, eram apenas esmaecidas lembranças de episódios e situações que agora voltam nítidas como coisa acontecida ontem.
Eu caçava passarinhos na mata à beira do Tietê, no dia que vi surgir no caminho, em sentido contrário ao do curso do rio, um homem montado num burro. Vai para o Rio de Janeiro, pensei, repetindo mentalmente o que ouvia dos adultos. Vão para São Paulo, mamãe dizia quando a tropa passava na direção do curso do rio. E, sem me entreter com os pensamentos, me entoquei no mato, porque "antes que o mal cresça, corte-se-lhe a cabeça" , “peixe grande come peixe pequeno” e “macaco não enxerga o seu rabo, mas enxerga o da cutia”, conforme os ensinamentos proverbiais de mamãe, dos quais nunca duvidei e que atestam que há mais atinados adágios que parvos prolóquios.
Não sei se é defeito só meu ou se é coisa natural em crianças daquela idade não conectar acontecimentos, exceto quando é nítida a relação de causa e efeito entre eles. O fato é que somente agora, tanto tempo depois, me parece obvia a ligação que há na seqüência de eventos que viria alterar o curso da minha vida, talvez tão radicalmente quanto as escarpas da Serra do Mar impedindo o Tietê, que nasce a apenas 20 quilômetros do litoral, de correr para o mar, determinando um curso de 1.150 quilômetros, atravessando São Paulo de sudeste a noroeste até desaguar no rio Paraná.
Mas não é sobre o Tietê esta narrativa. É sobre o curso da minha vida, que, como o rio da minha infância, corre no sentido invertido. E, assim como todos os rios do mundo sofrem a influência da topografia, sofri, e continuo sofrendo, como todos os seres humanos, as influências das circunstâncias que pretendo lhes revelar.
Fred Matos
Em alguns trechos é um rio largo e manso, como naquele no qual corta a chácara, próxima de Arujá, onde nasci e vivi meus primeiros anos. Em outros trechos o Tietê estreita-se e serpenteia violentamente entre os rochedos, despencando-se cachoeiras abaixo. Não o conheço todo, longe disso, mas sei que tem, no linguajar do povo de lá, mais de 150 léguas de sesmaria, e que, no seu singular curso do litoral para o interior, atravessa grandes cidades, das quais recebe esgoto e lixo.
Quando eu era menino, havia na chácara, à margem do rio, um caminho, com largura um pouco maior que a de um carro de bois, livremente usado pelos tropeiros, dos quais exigia-se apenas que não deixassem abertas as cancelas. Talvez o caminho ainda exista, mas não acredito que continue-se usando-o como passagem de viajantes. Certeza não tenho de nada, porém, porque quando papai morreu, faz mais de trinta anos, vendeu-se a chácara e mudamos para uma cidade do sertão da Bahia, onde moravam os parentes de mamãe, e, até poucos dias atrás a chácara, papai, o rio, Arujá, a infância, eram apenas esmaecidas lembranças de episódios e situações que agora voltam nítidas como coisa acontecida ontem.
Eu caçava passarinhos na mata à beira do Tietê, no dia que vi surgir no caminho, em sentido contrário ao do curso do rio, um homem montado num burro. Vai para o Rio de Janeiro, pensei, repetindo mentalmente o que ouvia dos adultos. Vão para São Paulo, mamãe dizia quando a tropa passava na direção do curso do rio. E, sem me entreter com os pensamentos, me entoquei no mato, porque "antes que o mal cresça, corte-se-lhe a cabeça" , “peixe grande come peixe pequeno” e “macaco não enxerga o seu rabo, mas enxerga o da cutia”, conforme os ensinamentos proverbiais de mamãe, dos quais nunca duvidei e que atestam que há mais atinados adágios que parvos prolóquios.
Não sei se é defeito só meu ou se é coisa natural em crianças daquela idade não conectar acontecimentos, exceto quando é nítida a relação de causa e efeito entre eles. O fato é que somente agora, tanto tempo depois, me parece obvia a ligação que há na seqüência de eventos que viria alterar o curso da minha vida, talvez tão radicalmente quanto as escarpas da Serra do Mar impedindo o Tietê, que nasce a apenas 20 quilômetros do litoral, de correr para o mar, determinando um curso de 1.150 quilômetros, atravessando São Paulo de sudeste a noroeste até desaguar no rio Paraná.
Mas não é sobre o Tietê esta narrativa. É sobre o curso da minha vida, que, como o rio da minha infância, corre no sentido invertido. E, assim como todos os rios do mundo sofrem a influência da topografia, sofri, e continuo sofrendo, como todos os seres humanos, as influências das circunstâncias que pretendo lhes revelar.
Fred Matos
29 comentários:
Fred,
fiquei comovida com a "história invertida" de ambos:
rio e poeta.
Que a tua história seja menos infeliz que a do rio (história humanamente traçada, pois que, topograficamente, é linda!) - torço muito por isso.
Um grande abraço,
e dias-novos felizes, sempre que possível, pra vc.
Paz, poeta!
Talita.
Fred,
Bela comparação, afinal a vida não passa de um rio com topografia , altos e baixos e agora também com lixos.
Adorei os provérbios de sua mãe, talvez tenha nascido daí o poeta.
Beijos
Mirse
Feliz 2010
Fred,
Primeiro quero agradecer o carinho lá no blog e desejar pra vc e os seus, um grande ano de 2010. Que seja um rio, com toda adversidade que existe nele, mas nunca seco.
bj
Você prepara uma biografia, Fred?
Já me ajeitei pra ler confortavelmente, porque com certeza vale a pena, a julgar pela bonita amostra dessa - hum - introdução.
Beijo pra você.
meu caro fred,
obrigado pelo seu último comentário no on the rocks. te desejo muita sorte e felicidades pra você e pros seus neste novo ano e sempre!
abração
Talita,
Trata-se de uma peça de ficção, mas nem isso pode garantir que o personagem dê-se melhor que o Tietê, pois, tal como diz-se ter ocorrido com a criação divina, também na literatura ocorre amiúde das coisas fugirem ao controle do criador.
Ficarei satisfeito se (nesta ordem):
1. Eu levar o projeto até o fim.
2. O texto resultar "redondo" aos meus ouvidos.
3. Conseguir enxugar o texto de todos os excessos retóricos que ele adquirir no processo de criação
4. Puder publicar
5. Cair no gosto da galera.
Agradeço-lhe pela visita, leitura e comentário.
Beijos
"Adorei os provérbios de sua mãe, talvez tenha nascido daí o poeta."
Minha mãe tinha, sim, alguns provérbios, mas, francamente, eu não dava nenhuma atenção. "Entrava por um ouvido, saía pelo outro", como costuma-se dizer.
O poeta, Mirse, talvez seja conseqüência de uma herança genética somada à leitura, na infância, de poemas de Cecília Meirelles e de Manuel Bandeira, além de outros menos freqüentes nos livros escolares.
Feliz 2010 pra você também.
Beijos
Obrigado, Raiana, pela visita e mensagem.
Tudo de melhor pra você e para todos.
Beijos
"Que seja um rio, com toda adversidade que existe nele, mas nunca seco."
Beleza de mensagem, Ira. Sim, que 2010 seja assim, e todos os anos seguintes também.
Obrigado, pela visita, leitura, comentário e mensagem que me deixou muito contente.
Beijos
Ah!, Adelaide, a minha vida merece um Machado de Assis, um Shakespeare, um Flaubert, um Balzac. Um Fred Matos não saberia lidar com tantos detalhes sem tornar o texto um balaio de gatos.
Prefiro continuar inventando mesmo.
Agradeço-lhe a visita, leitura e comentário.
Beijos
Nem sempre comento, mas vez por outra eu visito o On the rocks , Tarcísio.
Agradeço-lhe por vir e pelos votos.
Ótimo 2010, compadre.
Abração
As horas e horas e meia, fizeram-me sentir melhor neste ano. Podendo ler maravilhas expressas...
Feliz Ano novo! Beijo grande!
Isso me deixa muito contente Essência e Palavras. Espero que em 2010 você continue gostando e que o novo ano seja o primeiro de muitos anos felizes nos quais se realizem os seus melhores sonhos.
Obrigado
Beijos
No aguardo do projeto, então,
Fred!
Boa empreitada!
Um bjo.
Fred!
Um bom texto faz com que imaginemos a cena claramente. É isso que acontece ao ler o teu blog.
Tenha um belo 2010!
Abraços!
E eu pretendo saber. E a julgar pelo início ja sei o resultado.
Ah como são boas as memórias, mesmo quando não são...
Bjo grande, Fred!
Pois é, Talita, até hoje não me aventurei em narrativas longas porque sofro da "sindrome do ponto final" (risos). Ou seja: gosto de começar e terminar meus textos sem grandes interrupções, e isso é impossível enquanto não me aposentar. Mas não custa tentar com este.
Obrigado.
Beijos
Obrigado, Sônia: é um elogio e tanto.
Ótima semana.
Beijos
"E a julgar pelo início ja sei o resultado."
Nem eu mesmo sei, Elis. (risos). E espero conseguir surpreender mesmo as mais férteis imaginações.
Obrigado, amiga, pela visita, leitura e comentário.
Beijos
Caro Fred,
parabéns pelo blog!
Também sobre a postagem anterior: Sim, não devemos nos calar nunca frente a injustiças!
E a poesia também tem esta função!
com carinho na poesia,
Fred,
" Ser como um rio que flui
Silencioso no meio da noite
Não temer as trevas da noite
Se há estrelas no céu, refleti-las.
E se o céu se enche de nuvens
Como o rio, as nuvens são água;
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades traqüilas".
Manuel Bandeira.
Que em 2010 sua vida possa ser um rio que flui, aprendendo a contornar os obstáculos.
Paz e Luz !
Beijão
Agradeço-lhe (ou lhes, não sei) pela visita, leitura, comentário e por acompanhar o blog.
Abraços
Este tal de Manuel Bandeira era "o cara", Celamar.
Agradeço-lhe por tão belos votos, por visitar-me e pela amizade.
Que 2010 seja além das suas melhores expectativas.
Beijos
Estou certa que esse romance vai ser editado.. e terei muito gosto em lê-lo.. pela originalidade e pela criatividade que lhe são peculiares... Achei muito interessante essa analogia com o percurso dos rios.. o facto da "inversão" existir vai trazer ainda maior mistério a toda a estória e a todos os "meandros" dessas vivências... por aqui... o Sado também contrariou o balanceamento da Península Ibérica resultante da orogenia Alpina para Ocidente.. para o lado do oceano Atlântico... e delineou o seu leito de Sul para Norte. Fenómenos interessantes com que a natureza nos presenteia.
Obrigada Fred.. pelos seus magníficos textos.. que sempre sigo atentamente
Um abraço e votos de EXCELENTE 2010
Maria
Espero não decepcionar a sua expectativa, Maria, bem como que se realize o vaticínio da publicação.
Agradeço-lhe os votos, a vinda, a leitura, o comentário, a amizade.
Que 2010 venha trazendo a realização de todos os seus mais belos sonhos.
Beijos
Não vai decepcionar.. tenho a certeza Fred..
Excelente Ano de 2010.. e que todos os seus desejos sejam uma realidade
Beijos
Maria
Sua certeza me alegra e dá confiança, Maria.
Obrigado
Beijos
Essa foi demais Fred
haahah
Fez me lembrar do tempo que o Rio Tietê era navegável pertinho ali do Clube Espéria e Clube Tietê e se praticava remo
hahahahaah
rindo muito aqui......
Abraço Apertado
Para ser bem franco, Deusa , eu não conheço muito bem o Tietê (risos), exceto o trecho no qual tem em São Paulo a avenida marginal, na qual já amarguei imensos congestionamentos no tempo que, morando em Campinas, precisava ir à capital. Porém, é obvio que já ouvi falar desta época do Tietê "navegável", bem como sei que ele ainda tem trechos aprazíveis, sobretudo antes de passar pela cidade de São Paulo.
Agradeço-lhe por vir, ler e comentar.
Beijos
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