sábado, junho 19

cenas urbanas - primeira parte



ilustração: Klimt


Fernando acordou atordoado, com a sensação opressiva da presença de alguém ao seu lado. A cabeça doía, zumbindo ainda os sons estridentes da noitada. A língua amarga e a ânsia de vômito eram os sinais mais evidentes do álcool que consumira excessivamente do fim da tarde até o início da madrugada, quando tomou um táxi e voltou para casa. Apesar de chumbado, tinha certeza que aquela era a sua cama e que voltara sozinho para o pequeno apartamento no vigésimo oitavo, na West 60Th Street, em Upper West Side.

Ana era uma mulher magra de cerca de trinta anos, mas à tênue luz matinal que incidia sobre o seu corpo de compleição infantil, parecia mais moça. Dormia deitada de lado, com aparência angelical. O aspecto tranqüilo não permitia supor que era uma mulher capaz de invadir o quarto de um desconhecido, e menos ainda que, sub-repticiamente, se deitasse para dormir com o estranho.

Fernando deixou-se ficar estendido uns instantes tentando pôr os pensamentos em ordem. Não queria despertar a desconhecida antes de esgotar todas as possibilidades de compreensão da situação. A mulher não tinha qualquer característica marcante. Morena, cabelo liso, cerca de um metro e setenta de altura: um tipo comum. Ele tinha certeza que não a conhecia. Estava seguro que não a trouxera consigo. Não sabia como explicar a presença dela. Isso contribuía para aumentar a dor de cabeça e a sensação de enjôo.

Levantou-se lentamente para não fazer barulho. Pôs-se ao lado de Ana observando-a como se a uma obra de arte. Como se deitada na sua cama estivesse uma das suas estátuas de mármore que misteriosamente houvesse transformado em carne humana a sua bruta essência mineral. Ana não era uma dessas belezas que levam os homens a cometer loucuras, mas tinha traços suaves. Era uma bela mulher e dormia.

Ainda aturdido e sem explicação para o insólito, Fernando deslizou as pernas bambas para o toalete. Lavou a cara com água fria. Os olhos intumescidos ardiam. Pelo espelho podia observar a mulher dormindo na sua cama. Não fora um sonho nem uma ilusão que pudesse submergir com a água pelo ralo da pia. Pensava em como a acordaria e ensaiava mentalmente as palavras para inquiri-la quando viu no espelho que ela acordava espreguiçando-se.

Você já se levantou, querido?

O banheiro estava frio como um frigorífico. Voltando para o quarto, Fernando acendeu um cigarro e aspirou a primeira baforada do dia.

Você está fumando? Voltou a fumar, meu bem?

Eu nunca deixei de fumar. Respondeu como se esquecido que ali estava uma estranha tratando-o com uma intimidade desconcertante, como se fossem amantes. Mais desconcertado ainda ficou ao vê-la tirar a roupa e convidar:

Apague o cigarro, venha para a cama, estou morta de saudades.

Mas...

Nem mais, nem menos, não diga nada. Apague este maldito cigarro e venha cá.


Fred Matos




22 comentários:

Hercília Fernandes disse...

Fred, adorei as anotações... imagino quão boa virá a segunda parte deste romance urbano. Parabéns!

Estou pondo as leituras em o Nas horas e horas e meias em dia. Soube de sua viagem à Itália e, pelo o que aqui leio, vejo o quanto foi-lhe expressiva. As (foto)grafias assim demonstram.

Desculpe-me a ausência em seu precioso celeiro. Vivencio mudanças e algumas delas não foram lá inspiradoras... mas as coisas tendem à equilibração, assim almejo e creio.

Muito obrigada por seu carinho solidário. Cada expressão dos amigos contribuiu para eu recompor o ânimo e prosseguir a caminhada.

Um forte abraço a você e a sua família

da amiga Hercília.

Emilene Lopes disse...

Interessante Fred, mas fiquei curiosa. Que será que aconteceu a Fernado pra não lembrar da mulher? Me parece que ela é esposa dele...ai, deu curiosidade, rs
Bjs
Aguardo o continuar da história.
Mila Lopes

myra disse...

o que escreveu vai continuar? espero que sim, achei otimo!
como escreve bem, meu querido amigo!
beijos para um bom domingo!

ja tenho um quarto episodio no expressodalinha:)))

Fred Matos disse...

Eu espero continuar, sim, Hercília. Deixa-me contente vê-la de volta porque significa que você está superando o episódio dramático em que se viu envolvida.
Agradeço-lhe pela visita e comentário.
Ótimo domingo

Fred Matos disse...

"Que será que aconteceu a Fernado pra não lembrar da mulher? Me parece que ela é esposa dele...ai, deu curiosidade, rs"

Será que ele está com amnésia? É uma possibilidade, mas eu ainda não sei, Mila. O seu comentário me diz que é bom prolongar a curiosidade, manter o suspense por mais algum tempo.

Grato por vir e comentar.
Beijos

Fred Matos disse...

Espero que venha alguma boa idéia para continuar, Myra.
Estou acompanhando a biografia.
Grato por vir e comentar.
Beijos

Unknown disse...

Muito bom, Fred!

Se amnésia ou porre, o que interessa é que ela está ali.


Em alguma hora ele despertará.

Vou aguardar o próximo capítulo.

Beijos

Mirze

nina rizzi disse...

apaguei!

versas bem, camarada. boa tua prosopoéica.

beijos.

Lai Paiva disse...

Fred, adoro vim aqui, mesmo vindo pouco... Adoro sua escrita. Bj

Fred Matos disse...

Agradeço-lhe vir e comentar, Mirze.
Beijos

Fred Matos disse...

Apagou?
O quê?
Você versa melhor, Nina.
Obrigado.
Beijos

Fred Matos disse...

Então venha mais vezes, Lai. Deixa-me contente que venha e comente.
Obrigado
Beijos

Adriana Godoy disse...

Gostei do ritmo da narrativa e da história com um toque surrealista. Dá vontade de ler mais...Beijo, Fred.

Leci Irene disse...

Oi! Chegando agora. Conhecendo o recanto. Gostei!!!!!!!! Voltarei para conhecer teu canto um pouco mais e para saber como vai se desenrolar o conto....
Abraços

Unknown disse...

e me beije porra

Fred Matos disse...

É bom saber que dá vontade de ler mais, Adriana. Comecei a trabalhar no segundo capítulo (que já tenho na cabeça), mas ainda não encontrei um fluxo de narração que me deixe satisfeito.
Grato por vir e comentar.
Beijos

Fred Matos disse...

Volte sim, Leci. Ficarei contente. Grato por vir e comentar.
Beijos

Fred Matos disse...

Talvez Ana não tenha chance de provar dos beijos de Fernando, CeliaAlma, pelo menos não creio que tenha no próximo capítulo. (risos).
Grato pela visita e comentário.
Beijos

Bruna Mitrano disse...

Nossa, Fred, Muito bom. Me lembra "Os três nomes de Godofredo".
Aguardo a continuação.

Ah, o blogue tá bonito.

Fred Matos disse...

Quanto tempo, né dona Bruna?
Sua presença também significa (quase sempre) que você reapareceu no seu blog: logo mais passo para conferir se se confirma a profecia.
Fico contente por você vir, gostar e comentar.
Beijos

Márcia Luz disse...

Sei que urge uma continuidade... mas eu até gosto das coisas assim, sem término... o leitor que seja fantasioso!

Fred Matos disse...

Concordo com você, Márcia, e por concordar é que não me esforcei para concluir a continuação que estava escrevendo.
Grato pela sua vinda e comentário.
Beijos

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