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domingo, agosto 22

aretê não é virtude


Entrevista de João Ubaldo Ribeiro, a Ariovaldo Matos, publicada na Revista ViverBahia, edição 46, publicada em Janeiro de 1979



Esta entrevista, do jornalista e escritor Ariovaldo Matos com J.U Ribeiro, saiu sem que nada, antes, fosse ordenado. É possível, porem, que certas respostas do romancista contribuam para explicar por que "Sargento Getulio", já traduzido para o inglês e o francês, vá ganhar dentro de alguns meses, edições em espanhol, norueguês, chinês, alemão e outros idiomas, com o aplausos de uma critica internacional que, contudo, até agora, se limita a elogios calorosos.

A questão da virtude foi a primeira a ser tratada no bate-papo com Ubaldo e o leitor merece explicação. Nas edições em português, e já são três, diz o autor: "Nesta história, o Sargento Getulio leva um preso de Paulo Afonso à Barra dos Coqueiros. É uma história de arete." Vamos ao dicionário e encontramos "aretê"como significando virtude. Existe mesmo a aretologia, dita como parte da Ética que estuda as virtudes. "C'est une histoire de vertu", lê-se na edição (Gallinard) francesa. "It is a tale of virtue", na edição americana (da Hougton Mifflin Companany) Por que virtude?

J.U. Ribeiro - Eu não emprego a palavra virtude...

A.M. - É como está, eu li, nas edições em francês e em inglês.

J.U. - Eu vou lhe explicar. Inclusive na edição nacional, eu grafei aretê errado; devia ser areté, se você quiser fazer uma equivalência rigorosa com o acento grego. Dá areté, mas eu achei aretê mais bonito. Isso foi no tempo em que eu era "Paidéia", muito preocupado com o problema da transmissão social da cultura, essas coisas... Aretê ou areté é o nome que designa a virtude do herói grego, uma virtude diferente da virtude judaico-cristã. É uma virtude no sentido muito diverso da nossa, esta geralmente identificada com a candura, a brandura, o estender a outra face. A virtude do herói grego é diferente dessa. Era a virtude do melhor, quer dizer o valor, que é semelhante ao conceito de "vertú" de Maquiavel. Eu tenho a impressão que de até para virtude, como nós entendemos, houve um estagio intermediário que é a "vertú", o valor do herói, o denodo, a dedicação, o ideal acima dele etc. Eu botei aretê mas quando fui traduzir para o inglês...

A.M. - Você mesmo fez a tradução para o inglês?

J.U. - Fiz. Quando fiz a tradução para o inglês aí achei que era dose para elefante botar aretê e ai botei virtude, inclusive para curtir a ambigüidade da coisa com o americano, que tem uma formação protestante, e tal. Aliás, eles comentaram isso e aí foram ao dicionário e pegaram a raiz da palavra virtude que vem de viris, de homem, de virilidade, machismo...

A.M. - Mas, tem essa conotação de machismo?

J.U. - Não, não. Isso não, mas me aproveitei do fato de as palavras virtude e aretê serem as únicas de que dispomos hoje.

A.M. - Você pensou muito em autores gregos, histórias gregas, essas coisas, em função do "Sargento"...?

J.U. - Pensei. Eu já li ficção muito, mas hoje leio mais poesia e leio muito ensaios. E em matéria de ficção ou de uma obra que a gente pode enquadrar no limite inexistente entre poesia e prosa, como por exemplo a "Ilíada", eu dei para ler os mesmo livros, sempre. E já li umas 10 ou 15 vezes a "Ilíada", não sei. E realmente tem alguma coisa a ver, tem. E é intencional, mas eu não pretendi "chupar" a "Ilíada". Pretendi usar um patrimônio da Humanidade. Aí, quem não lê a "ilíada" não saca.

A.M. - Com que propósito?

J.U. - Há o fato de que nós somos herdeiros dos gregos. Nós brasileiros, somos uma espécie esquisita. Nós baianos, principalmente, porque, por uma serie de fatores, ainda não incorporamos a nossa herança negra como devíamos ter incorporado. Ou, não sei. Talvez não seja o caso de estabelecer regras sobre isso, não sei. De qualquer maneira nosso lado europeu é um lado grego. Então, toda a busca pela nossa transcendência, toda a busca do entendimento do papel do ser humano na terra, a finalidade da vida, e outras questões que poderiam até ser transformadas em filosofia de botequim, tudo isso, afinal, os gregos nos trouxeram: o humanismo, enfim. Então, como eu imaginei fazer um livro humanístico apesar de fazê-lo sobre um facínora, um criminoso do interior de Sergipe, a coisa aconteceu. Eu quis mostrar, talvez, não tenho certeza de ter conseguido, que o ser humano é muito vitima, é muito fruto das circunstancias. Como o Sargento é um personagem contraditório. A pessoa lê o romance e gosta do personagem. Ele é um facínora, um monstro, um criminoso, mas o pessoal gosta porque percebe que ele tem virtude, percebe que você poderia estar no lugar dele.

A.M. - Essa simpatia pelo Sargento não decorre do fato dele ter sido traído?

J.U. - Também. Eu imagino que sim. Mas, normalmente, um facínora mereceria ser traído, não é? Mas ele, apesar de ser um facínora, de dever ser traído em nome da moral e dos bons costumes, a pessoa torce a favor dele.

A.M. - E o filme? Você tem tido noticias?

J.U. - Tenho tido boas noticias, de modo geral. Noticias, inclusive de certos equívocos. Algumas pessoas falam de "meu" filme. Ora, eu escrevi o romance e só. Assim, não se trata de "meu" filme. Ele é de Hermano Pena e Flavio Porto. Pessoas das quais gostei muito.

A.M. - Jorge Amado, em geral, não se envolve nas adaptações de filmes a propósito de romances dele. Ele concorda que se faça a adaptação e tal. É esta a sua atitude?

J.U. - É, também é. Porque eu não quero me meter no cinema, não tenho nada a ver, não sei nada de cinema, não é minha transação. Eu não me meto. Nesse filme "Sargento Getulio", eu fiz duas "falas" que me pediram. Eles precisavam de uma costura. Lá na carpintaria cinematográfica deles foram necessárias duas "falas". Como eles não sabiam escrever "sergipês" eu fiz para eles.

A.M. - "Sargento Getulio" é todo em "sergipês"?

J.U. - Todo, todo. Um fenômeno interessante. Um fenômeno que nós podíamos curtir uma conversa de horas é esse da linguagem do "Sargento Getulio". Porque eu não inventei língua nenhuma. Eu vivi aquele negocio e ta lá, é um livro oral, se se pode dizer assim. Não inventei uma única palavra. Pelo contrario, eu busquei a reprodução possível da linguagem oral. Entretanto, houve duas reações representativas desse elitismo ao qual nos temos referidos nesta conversa. A primeira reação é a de quem não está acostumado a uma linguagem não literária. A linguagem literária é a das belas letras. A linguagem de gente que sabe escrever, de gente que tem educação, tem nível, não é essa porcaria que nós falamos no dia-a-dia. E segundo é a falta de habito do brasileiro de ver sua própria linguagem no livro. Eu tive exemplo de fazendeiros e tabaréus que viram aquilo e não gostaram de "Sargento..." porque estavam acostumados a ler coisas bem escritas e não aquele negocio que ele ouve todo o dia lá na fazenda dele.

A.M. - A linguagem usual, a do dia-a-dia, então afastou esse tipo de leitor, é isso?

J.U. - É, afasta. Há um caso de um coronel, pessoa ilustrada, meu amigo, que não entendeu nada. Ele esperava uma historia assim do tipo "era um peão rude, de fazenda. Daqueles que criados na dureza do trabalho do dia-a-dia, impedido ainda de participar da vida da mesma forma que nós outros", e tal e tal, essas coisas. Ele não gostou do "Sargento..."

colonialismo cultural


João Ubaldo Ribeiro já concluiu outro romance "Vila Real". E prepara um livro de contos, alguns publicados em revistas nacionais e estrangeiras, ainda sem titulo. Prefere falar sobre "Vila Real":

- É um romance a respeito do qual alimento algumas duvidas, não sei por que mas alimento. É sempre assim.

A.M. - A propósito de que, qual o tema?

J.U. - É a respeito de posseiros daqui do Nordeste. Um povo de posseiros que é desterrado constantemente e que acaba resolvendo brigar pelo direito de ficar nas terras.

A.M. - Grilagem, essa coisa?

J.U. - É, é. Mas só que nesse caso não é grilagem de latifundiário, é grilagem de uma companhia de mineração internacional. Uma multinacional. Não fica claro porque tudo é visto pela ótica do posseiro, mas é uma multinacional, até porque eles falam uma língua estrangeira. Você sabe que tem por aí, não é, você sabe. Pois é sobre isso.

A.M.- Alguma relação, de algum modo, com o "Sargento Getulio"?

J.U. - Sim, claro. Eu acho que só se escreve sobre a infância. Eu acho a única coisa possível, a ótica da infância, é como se escreve. A não ser que você queira escrever de obrinha. Negocio como "vamos fazer um best-seller aqui, me dê aí uma grana". Neste caso, quando você vira redator e não escritor, é diferente. Mas quando você esta sendo um escritor mesmo, um ficcionista, eu acho que você só escreve sobre a infância, de um forma ou de outra. Como minha infância é uma infância sergipana, eu acho que sempre vou escrever sobre ela. Sergipana ou itaparicana.

A.M. - Vila Real existe, é Bahia, é Sergipe?

J.U. - Não, não existe. Que eu saiba não existe uma Vila Real. Deve existir porque é um nome comum. Deve existir umas !0 "vilas reais", por aí. Mas, a área eu não imaginei nada especifico. Imaginei uma área do Piauí pra cá, até o sertão da Bahia. Não pensei em circunscrever nada.

A.M. - Certamente tem um riozinho no meio da coisa...

J.U. - Ah, tem. Tem rio. Tem vários rios. Tem o rio Japiau, tem o rio Triste-e-Feio. Alias, tem um rio Triste-e-Feio na Chapada Diamantina, mas não foi nele que pensei. Mas tem.

A.M. - Você se considera um lírico?

J.U. Não (rindo), me considero um épico! Não, estou brincando... No fundo é possível que você tenha razão, talvez eu seja um lírico como qualquer brasileiro é, qualquer tocador de violão. Um fenômeno observável na literatura brasileira em geral é que nós não temos realmente romancistas. Temos dois ou três romancistas. Temos, em geral, poetas. Temos elaboradores de palavras. Por exemplo, nós temos um grande romancista brasileiro, grande mesmo, um homem que morreu moço - e a gente pensa que ele é velho - que foi José de Alencar. Era um poeta. Ate hoje você pode verificar que as categorias lógicas européia não dão para entender José de Alencar. Você tenta e não consegue. Fala-se em Chateaubriand, em romantismo, fala-se nisso, naquilo, mas você aí escreva "Verdes mares bravios de minha terra natal" e isso emociona. Não importa se está mal escrita ou bem escrita. Emociona, pronto. Iracema é um mulher inexistente? É, tá certo, é. Ubirajara é um índio que não existe? É, não existe mas me fala na alma de alguma forma.

A.M. - Temos poucos romancistas?

J.U. - É, temos mais poetas. São poucos os ficcionistas. Um Henry Filds, o autor de "Tom Jones", "Moll Flandres", um Dickens, um Balzac, um incrível fazedor de enredos, é difícil de você encontrar no Brasil. Você encontra o fazedor de climas poéticos, até mesmo os mais secos, como Graciliano Ramos. Você veja "Angustia", "Vidas Secas", não são livros de enredos no sentido clássicos na narrativa européia. Não tem aquelas tramas retadas, aquelas coisas assim típicas do romance europeu, não, não tem.

A.M. - Talvez um José Geraldo Vieira...

J.U. - É, ele é. Eu ia falar nele. "A Túnica e os Dados", tal, é. "A Túnica e os Dados" é um romance que tem um enredo, uma transação complicada. Eu me lembro que assombrou minha infância um abscesso que uma personagem tinha, um abscesso na coluna, tal, e tal. "Vila Real" não tem isso. È um romance brasileirozinho. É muito mais para José de Alencar do que para Machado de Assis - e eu sou alencariano.

A.M.- Agora, vamos conversar sobre crítica e críticos. Como é que você vê a coisa?

J.U. - Críticos literários?

A.M. - Eles. Os de arte. Todos.

J.U. - Eu me lembro da frase de Salvador Dali que nós dois já curtimos juntos. Foi quando ele apareceu na tevê. Um sujeito perguntou: "Que é que o senhor acha dos críticos?". Ele respondeu: "Os críticos tem como missão especialíssima equivocar-se em tudo". E de certo modo é verdade, talvez. Eu não dou muita importância aos críticos. Inclusive eu acho que muitos críticos brasileiros são responsáveis pela manutenção da mentalidade colonizada e subordinada, elitista, na intelectualidade brasileira. O intelectual brasileiro metido a "esquerdinha", e porque é metido na verdade não é, se esquece de uma coisa básica: a "práxis" é o que define uma atitude de vida. É muito fácil você ficar professando determinadas posições popularescas e escrever de uma forma que acaba por levar o povo a detestar-se, a educar-se, se se pode dizer assim, contra si mesmo. Desde a sua aparência até as coisas que gosta, a comida, etc. Em fim, tudo.

A.M. - Você concorda, porem, com o fato de que a critica e os críticos já exerceram um papel positivo, na pratica?

J.U. - Ah, sim, claro que sim. Acho mesmo que temos responsáveis ignorados pela consciência nacional, heróis da consciência nacional, como Mario de Andrade. Temos ainda homens como José Veríssimo, João Ribeiro, como Silvio Romero, Tristão de Athaíde, mais recentemente, Álvaro Lins, homens responsáveis pela preservação de uma consciência nacional, ainda que de uma forma de certo modo vinculada à tradição lusitana, européia. Homens como Gilberto Freyre, a quem se pode fazer restrições, mas homens que são responsáveis dessa consciência brasileira que muita critica rasa, irresponsável, estruturalista, babaca, não identifica, não reconhece. Muitas vezes esses caras, as vezes uns cabeludos, chegam do exterior. É, de vez em quando chegam aqui uns catequistas, da Europa, de outros lugares. Claro que não estou dando uma de colonialista em cima do europeu, querendo reverter o relacionamento. Não quero ir lá converter o europeu. Mas, chega de eles chamarem os crioulos africanos e nós de selvagens quando eles é que atuam como selvagens, dizimam os crioulos, fazem guerras de 15 em 15 anos - e continuam chamando a gente de selvagens. Ora, chega! Nós selvagens, e eles lá com um Stálin de 15 em 15 anos, um Hitler...

A.M. - O que que esse pessoal do exterior mais assinala, assim, de representativo, no "Sargento Getúlio"? A critica, por exemplo...

J.U. - Na verdade, para mim seria até interessante assinalar alguma percuciência na critica americana que elogiou de forma unânime o meu livro. Eu gostaria de dizer que são críticos inteligentes e tidos por informados. Inteligentes eles são, até por terem atingido as posições que atingiram. Mas são desinformados. O livro, nos Estados Unidos, foi muito bem recebido por razões de modo geral que não tem a ver com nossa realidade. O problema é que no Brasil é uma cultura que não se afirmou, que não existe em relação ao mundo. Lá fora se tem uma noção extremamente vaga sobre o que existe aqui no Brasil. São aplicados à analise da realidade brasileira estereótipos e bobagens variadas. Isso em tudo, inclusive na literatura. Eles não dizem que é um livro tecnicamente bem executado, e tal, e tem um apelo humano que eles não entendem, mas apenas sentem. Então, eles tentam racionalizar isso de varias formas. Resultado é que escreveram muita besteira. Poucas vezes foi escrita tanta bobagem sobre um livro em função de um contexto cultural exterior quanto se escreveu sobre o "Sargento Getúlio" nos Estados Unidos.

A.M. - E na França?

J.U. - Na França eu só li um artigo que saiu no "Le Monde". Um comentário elogioso, tal, mas também de quem não está entendendo nada. É um negocio na base do "la bas". O pessoal fica aplicando categoria européia de pensamento... Porque, de fato, sobre o Brasil o europeu não sabe nada. Quer dizer, sabe as coisas que são boas para o europeu. Então, eles estão olhando para o meu livro como um produto interessante vindo de um colonizado. Inclusive a articulista do "Le Monde" fala que eu uso um estilo europeu de narração. Ora, que presunção dessa francesa! Ora, mas é natural. Eles pensam que são o centro do mundo. Que os outros comem comida podre e tal.

A.M - Vejamos mais a critica no Brasil. Você concorda em que houve um tempo em que a critica exerceu um papel importante, no Brasil. E que, não tão de repente, mas aos poucos, ela foi assumindo um papel...

J.U. - De distanciamento entre leitor e o escritor? Concordo.

A.M. - Em que medida a Universidade participa disso? Você já foi professor de Ciências Políticas na Universidade, deve saber melhor do que nós.

J.U. - Participa na medida em que a Universidade também é colonizada. Porque há muito tempo - e nós ainda não percebemos isso direito - à guisa de atualização cultural, de atualização tecnológica, tal, e eu sou um exemplo vivo disso, nossos programas de aperfeiçoamento universitário são conduzidos em moldes estrangeiros, a exemplo do que acontece agora com os programas de mestrado, de PhD, de doutorado, em bases estrangeiras. Então temos toda essa gente fora daqui se formando assim e daqui importamos padrões do exterior. Aí você pergunta: "Você é contra que se utilizem as conquistas obtidas lá fora?" e respondo claro que não, não sou débil mental. Mas, no momento em que você não dispõe de um suporte cultural que dê resistência à sua própria identidade, então você vai sempre importar algo de postiço, artificial, que é o que se vê hoje em todos os setores da vida brasileira.

A.M. - Os exemplos nacionais disso, dessa tecnoburocracia, são conhecidos. Dê um exemplo exterior. De Brasileiro assim no exterior.

J.U. - Temos um critico da maior dimensão, do maior valor no sentido acadêmico, e acadêmico porque no sentido utilitário ele não tem valor nenhum, Wilson Martins. Ele não tem passado em brancas nuvens, é um homem com quem eu não posso discutir uma porção de coisas. Agora, posso discutir todas porque ele não sabe de nada do que tem aqui. Ele é americano. Ele mora lá nos Estados Unidos algum tempo e virou americano. Sabe como quê, mas é americano. Então, ele não sabe nada a meu respeito. E fica dizendo besteira. Adotou, inclusive, uma atitude meio "passé"... É engraçado como a pequena burguesia e o consumidor são vitimas de si mesmos... Tentaram transformar Jorge Amado, que é um patrimônio da cultura brasileira, num objeto de consumo, "consumiram" Jorge Amado, passaram um ano inteiro - revistas paulistas e publicações como "Pasquim", você sabe disso - a esculhambar Jorge Amado pelas razões mais mesquinhas e equivocadas e agora já se voltou de novo, Jorge Amado está voltando de novo porque o que permanece tem mesmo de permanecer. E Wilson Martins que está fora daqui, assim como José Guilherme Merquior, que está na Europa, ficam a aplicar padrõezinhos engraçadinhos e a dizer completas tolices. Não sabem o que está acontecendo, são incapazes de avaliar, inclusive, que tipo de literatura está surgindo no Brasil.

A.M. - Você, como autor, seria um exemplo?

J.U. - Eu, inclusive, sou humilde para dizer: eu posso estar até fora da corrente, mas eu não sou critico literário, não tenho obrigação de saber. Estou escrevendo meus livrinhos. Eles é que teriam ou tem. Mas, um está ensinando na América, outro na Europa, a dizer bobagens, a fazer burrices, a incrementar todo esse negocio de "criticar" que no fundo é raiva estruturalista contra a literatura brasileira, a tratá-la como um objeto estranho que não tem nada a ver com suas vísceras. Enfim, a aplicação de categorias que não tem nada a ver com nossa realidade.

A.M. - Me diga uma coisa: você tem participação política...

J.U. - Restrita, sim, tenho. Escrevo umas coisas... Eu tenho uma preocupação política, ao invés de participação.

A.M. - Preocupação, certo. Isso atrapalha sua literatura, de algum modo?

J.U. - Não, pelo contrario. Porque eu acho que nenhuma pessoa tem o direito de se alhear do processo que afeta seu destino. Do contrário não tem o direito de se queixar. Então, é dever primordial, é tarefa básica de todo cidadão participar da vida política, ainda mais num contexto subdesenvolvido, no qual nós somos privilegiados. Queiramos ou não queiramos, queixemo-nos ou não nos queixemos da vida nós estamos muito melhor do que a maioria das pessoas aqui. Estamos tomando um uisquinho, comendo, vamos sair para jantar e tal, então eu não tenho direito - e acho que ninguém tem - de me alhear. Claro que eu defendo o direito do sujeito escrever sobre qualquer coisa. É outra coisa. Mas para que você possa escrever sobre borboletas, lírios e não sei-mais-o-quê é preciso que alguém, antes, tenha estabelecido a garantia desse direito seu. Do contrario você não escreve sobre borboleta não, você escreve sobre a mãe de Hitler e coisa e tal.

A.M. - Pensar politicamente, escrever a sério, etc., nada disso impede você, ou qualquer outro, de escrever apenas para divertir. Ou você não acha?

J.U. - Sim, claro, acho. Inclusive há mal-entendidos quanto a divertir porque no Brasil o escritor, o dramaturgo, enfim, os homens que fazem arte, têm uma certa idiossincrasia contra se divertir. Mas fazem bobagem, estão por fora, na medida que a Humanidade precisa divertir-se. Afinal de contas que merda é que distingue a humanidade do resto? Divertir não é necessariamente uma palavra gratuita. Você pode colocar a coisa numa formulação primaria, o divertir educado, essa coisa, mas no fundo há um pouco disso também. Porque os jogos da Humanidade, as coisas que a Humanidade tem feito, coisas que se disfarçam sob muitas capas, são a própria construção da especificidade da Humanidade, me parece. Afinal, nós não somos bichos.


Permanecem uns frescos a repetir tolice segundo a qual jornalismo e literatura são incompatíveis. No bate-papo de J.U. Ribeiro com Ariovaldo Matos essa questão foi também abordada. Como se segue:


J.U. - Começar a escrever, como?

A.M. - Com quantos anos você começou a publicar coisas?

J.U. - Se você chama publicar, editar, com 17 anos. Eu tinha 17 anos e foi o finado Flavio Costa quem me falou sobre se eu não teria um conto para o suplemento literário do "Jornal da Bahia", há exatamente 20 anos.

A.M. Não me lembro desse conto.

J.U. - Saiu. Chamava-se "Lugar e Circunstância", ilustrado por Lauzir e diagramada por Misael Peixoto. Eu me lembro que o conto ia sair num domingo e não saiu. Eu acordei às 5 horas da manhã, fiquei esperando a banca abrir, o sujeito me entregou o jornal, eu paguei e abri e não tinha o conto. Eu passei uma semana atroz, mas o conto saiu.

A.M. - O jornalismo empatou você em literatura?

J.U. - Não, não. Ajudou muito, ajudou muito. Claro, se você não for uma pessoa de estrutura excepcional tem a tendência a fazer mal uma das duas coisas. Porque você ou se obceca com seu lado jornalístico ou com seu lado escritor e tende a negligenciar um dos dois lados, principalmente se você tem um projeto qualquer, importante, ligado a uns dos dois lados. Mas, é muito melhor você ser jornalista e escritor do que você ser mestre-de-obra e escritor. Eu tenho certeza de que meu treino em editorial, que é um negócio difícil, você tem que vestir a roupa de terceiros para assumir um ar que não é seu, tem que se submeter a uma serie de restrições de estilo, foi um treino muito útil. É um treino de redação de primeira qualidade.

A.M. - na medida que o jornalismo abre o mundo para o profissional... Conhecer gentes, realidades...

J.U. - Claro, claro, claro! Eu sou por natureza, embora não pareça, uma pessoa voltada... Quero dizer, sou uma pessoa de poucos amigos, me dou com pouca gente, reconheço isso. Quando eu voltei à redação, depois de muito tempo fora da redação, voltei relutante, me foi muito útil. Inclusive, dá uma certa lição de humanidade, de relatividade das coisas, cuja noção você perde na medida que se afasta da vida de um jornal, qualquer jornal, onde você vive todo tipo de gente, de situações, todo o tipo de deformação profissional, todo tipo de vaidades. Dentro de uma redação você tem uma visão muito clara da humanidade e é bom, é didático, eu acho, para um escritor.



sábado, julho 3

Jorge Amado, entrevista a Ariovaldo Matos






Clique na foto para ler a entrevista de Jorge Amado a Ariovaldo Matos, publicada originariamente na Revista ViverBahia, edição Julho/Setembro de 1978, na qual Jorge Amado fala de literatura, Bahia, Turismo e sobre Charlie Chaplin, que, para ele foi a pessoa que, no século XX, mais contribuiu, "mais do que qualquer estadista, mais do que qualquer outro homem, para a Humanidade."

segunda-feira, março 15

sem justiça não haverá paz

Dom Hélder Câmara, entrevista a Ariovaldo Matos


não sei quem é o autor da fotografia

Realizada nos anos 70, em plena treva da ditadura militar, a entrevista concedida por Dom Hélder Câmara a Ariovaldo Matos esteve praticamente inédita. O material foi produzido para integrar o curta-metragem "Nordeste, Dom Hélder Acusa", de Rex Schindler, que nunca foi exibido. A conversa entre Ariovaldo Matos e Dom Hélder chegou a ser impressa na revista Porto de Todos os Santos, editada pelo Governo do Estado da Bahia, através do Departamento do Ensino Superior e da Cultura, a cuja frente estava o historiador e escritor Luis Henrique Dias Tavares. Mas os exemplares da publicação foram imediatamente confiscados pelos órgãos de segurança a serviço da ditadura. Seguem os principais trechos da entrevista, na qual o então arcebispo de Olinda acusa o mundo desenvolvido de injusto para com o Brasil e demais países do Terceiro Mundo. “A questão é de justiça. Há injustiça em escala mundial. Ora, como sem justiça não haverá paz, essas injustiças estão pondo em grave risco a paz no mundo”, afirmava então o religioso, com voz que repercute nos dias de hoje, quase 40 anos depois.

Ariovaldo Matos – Acredita que as grandes mudanças no caráter da Igreja encetados por João XXIII e Paulo VI bastam para uma ação dinâmica desta mesma Igreja, ou são apenas um início de uma tomada de posição muito mais radical?

Hélder Câmara – Respondo com a palavra do papa João XXIII. Conta-se que quando ele recebeu o genro de Kruchev, a conversa caiu na Bíblia e nos dias da criação. O genro de Kruchev estava muito interessado em saber se eram dias de 24 horas, se eram épocas. O papa procurou explicar que não se tratava de maneira alguma de dias de 24 horas; eram épocas. Mas o formidável é que aquele homem com mais de 80 anos de idade fez questão de dizer: “Mas o que lhe garanto é que ainda estamos no primeiro dia da criação.”

A.M. – Um marxista francês, Roger Garaudy, sustenta que é possível um diálogo, inclusive em certos aspectos filosóficos, entre os materialistas dialéticos e o pensamento moderno da Igreja. Que pensa disso Vossa Reverendíssima?

H.C. – Esse diálogo já está aberto, já existe. Já várias vezes, sobretudo na França, cristãos e marxistas têm diálogo. O difícil é estabelecer este diálogo em terras do Brasil, porque aqui se alguém tiver a audácia de descobrir pontos de contato entre cristianismo e marxismo, imediatamente é interpretado como adepto do comunismo, como simpatizante da Rússia Soviética, da China Vermelha ou de Cuba. Nunca vi primarismo tão grande. Há pessoas que não podem ver ninguém de barba que imediatamente se lembram de Fidel Castro e logo calculam que seja alguém ligado a algum esquema cubano.

Há, no entanto, quando se trata, vamos dizer, do marxismo, pontos de contato indiscutíveis; por exemplo, na crítica ao capital, na valorização do homem, o que não significa que o humanismo marxista se confunda com o humanismo cristão. Temos uma dimensão de integralidade e transcendência que, a meu ver, nos permite ir muito mais longe do que o humanismo marxista. Mas é possível dialogar.

Sinto-me à vontade para dizer isso, porque faço questão de deixar bem claro que quando, como homem do terceiro mundo, contemplo o mundo desenvolvido, noto que não só da parte do regime capitalista, representado, digamos, pelos Estados Unidos, como da parte do regime socialista, representado, suponhamos, pela Rússia Soviética, considero que Rússia e Estados Unidos, não só em Genebra na Primeira Assembleia das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, mas ainda há pouco em Nova Déli, na segunda Assembleia das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, manifestaram a mesma falta de visão, a mesma intransigência, o mesmo egoísmo.

A.M. – De acordo com previsão de um militar norte-americano, a América Latina seria em futuro próximo o que ele definiu como a Argélia dos Estados Unidos da América do Norte. Vossa Reverendíssima está de acordo em que esta possibilidade realmente exista?

H.C. – Não conheço esta passagem e não sei bem qual o alcance da comparação com a Argélia, não sei se ele queria significar a Argélia em comparação com a França. Se era para significar colônia, não era necessária comparação alguma. Não há nenhum mistério de que somos satélite dos Estados Unidos. Não me parece que haja nenhuma surpresa nisso, nenhum mistério, e aproveito para dizer meu pensamento todo a respeito da posição da América Latina. Eu, por exemplo, não desejo de modo algum, para o Brasil ou para a América Latina, apenas mudança de patrão. Não imagino que seja a solução deixar de ser satélite dos Estados Unidos para cair na órbita da Rússia Soviética ou da China Vermelha. Prefiro a América Latina sem patrão. Prefiro a América Latina independente e creio que no dia em que houver uma opção política dentro do continente, de tal modo que os vários países se decidam a não ser satélite de ninguém, se decidam a um período de austeridade, no sentido de não permitir que nenhuma matéria-prima parta daqui sem ser trabalhada; nesse dia – e se nós resolvêssemos nos completar mutuamente, se cada país da América Latina, em lugar da posição adolescente de querer tudo produzir, verificasse o que pode produzir de modo mais econômico, e o que de maneira mais econômica pode ser produzido pelos outros países, se nenhum país da América Latina, por ser um pouco maior, um pouco menos subdesenvolvido, pretendesse realizar aqui um mini-imperialismo sobre vizinhos menores – podíamos partir para uma integração continental que podia ser válida, sobretudo se dentro de cada país ela fosse precedida de uma integração nacional. Então, voltando à comparação que foi lembrada, desse militar que fala em Argélia a propósito da América Latina, digo que ele pode perder a cerimônia e dizer abertamente que nós somos satélites dos Estados Unidos, pois, infelizmente, somos.

A.M. – A industrialização no Nordeste está solucionando o problema do desemprego?

H.C. – Creio que a própria Sudene é a primeira a reconhecer que não. Não estou com isso, de maneira alguma, combatendo a industrialização. Um cristão não pode ser contra o progresso; nós temos é que enfrentar esse desafio, como optar pela industrialização, por um esquema competitivo, porque de fato o Nordeste está tendo que competir com o Sul e até com o estrangeiro. E ao mesmo tempo levar em conta que quando a Sudene começou seus trabalhos ela reconhecia que havia na área um milhão e meio de pessoas por empregar. Na medida em que as indústrias antigas, sobretudo açúcar e tecidos, se modernizam, elas, ao invés de empregar mais gente, tendem a jogar fora a metade e por vezes mais da metade dos seus trabalhadores. As indústrias novas já têm que nascer modernas e portanto admitindo um número pequeno de trabalhadores. Ainda há pouco tempo foi instalada no Nordeste uma grande empresa que só por conta dos investimentos de 34/18 recebeu 10 milhões e duzentos mil cruzeiros novos e, na realidade, contando todos os empregados, do gerente ao porteiro, ela está com 160 empregados. A meu ver o que há de grave é que até hoje a Sudene não teve possibilidades de enfrentar o mal na sua raiz.

Enquanto as estruturas sócio-econômicas permanecerem as mesmas, não adianta industrialização e não adianta qualquer recurso de desenvolvimento, porque o resultado será sempre o mesmo: os ricos se tornarão mais ricos e os pobres se tornarão mais pobres.

A.M. – Vossa Reverendíssima acha legítimo que a Sudene financie também a implantação de empresas estrangeiras no Nordeste?

H.C. – Este problema de participação de empresas estrangeiras poderia ser normal se de fato não houvesse esse fenômeno que as estatísticas estão aí para atestar. Nós sabemos que quando se compara o investimento vindo do exterior com o dinheiro que se retorna, vemos que com o dinheiro sai muito suor e sai muito sangue do Nordeste, aliás do Brasil. Eu bem sei que a gente pode apelar para o texto da lei, e de fato a lei está aí, mas também as estatísticas estão e são estatísticas oficiais que permitem ver e fazer sentir que o que retorna não tem comparação com o que entrou.

A.M. – Vossa Reverendíssima se considera um nacionalista? Em que sentido?

H.C. – Eu sou um partidário fervoroso da solidariedade universal. Nesse sentido me sinto muito cidadão do mundo. Mas precisamente porque sou pela solidariedade universal é que não acredito que seja possível chegar-se a este ideal desejado por Paulo VI, enquanto houver países extremamente ricos e países extremamente pobres. Esta aliança entre o extremamente forte e o extremamente fraco é impraticável. La Fontaine já lembrava que panela de ferro e panela de barro não podem caminhar muito juntas. Então, precisamente porque eu sonho com a solidariedade universal, é que eu sonho com um Brasil que se desenvolva, com uma América Latina que se desenvolva, com um terceiro mundo que deixe de ser subdesenvolvido.

A.M. – Quando o acusam de comunista como é que Vossa Reverendíssima responde?

H.C. – Há pessoas que quando ouvem falar em comunismo tremem de horror; então parece que a acusação de subversivo, de comunista é qualquer coisa de estranho, de diabólico. Eu sei por que é que me chamam de comunista. Chamam-me de comunista aqueles que estão de tal maneira contentes com a situação instalada na injustiça, que nem sequer podem imaginar uma mudança de estruturas e no entanto isso é inevitável. E se Deus quiser isto se fará. O que eu espero é que isto se faça com a compreensão daqueles que até hoje não resolveram abrir mão dos próprios privilégios, porque se não conseguirmos abrir os olhos dos poderosos, dos privilegiados, eu não acredito que se consiga salvar o continente da radicalização, da violência. Eu sou insuspeito porque cada vez mais quero que saibam que eu sou um homem de não-violência, eu me bato pela não-violência, eu sei o que nos arrastaria uma explosão de violência. No dia em que uma explosão de violência se realizar em qualquer parte do Brasil, imediatamente chegariam os grandes, Estados Unidos de um lado, Rússia Soviética do outro, China Vermelha e nós viraríamos um enorme Vietnã. Deus nos livre. Mas, por outro lado, e precisamente como condição indispensável para que a juventude não perca a paciência e não vá para a radicalização, para a violência, é que é necessário, com urgência, falar claro, batermos-nos pela justiça, exigir que cesse a marginalização das massas latino-americanas.

Não se trata de uma cisão, o que ocorre é que, graças a Deus, leigos, padres e bispos em face das questões dogmáticas, das questões fechadas, estamos absolutamente de acordo. Eu tenho dito e repito que se nós formos rezar o credo estaremos juntos desde a primeira palavra até a última na vida eterna, amém. Todos juntos. Agora, no tocante às questões abertas, graças a Deus há discordâncias entre nós. Por exemplo, eu sei que há bispos meus irmãos que, diante da interrogação a respeito do mais grave problema social do mundo de hoje, não vacilariam em dizer que se trata de comunismo. Eu não daria esta resposta, a meu ver muito mais grave do que o comunismo é esta distância cada vez maior entre o mundo desenvolvido e o mundo subdesenvolvido. Ora, o que vai acontecer se numa reunião de bispos aparece alguém com a preocupação de comunismo e apareço eu e vários outros com a preocupação de tentar aproximar os mundos, tentar evitar este fosso que cada dia se alarga mais. Desde que haja respeito mútuo e caridade fraterna tudo se resolve. Eu posso dar aqui este testemunho. Em julho, se Deus quiser, mais uma vez os bispos do Brasil estaremos reunidos. Hoje nós somos 250 bispos. Pois bem, cada dia é mais agradável o encontro dos Bispos do Brasil, porque nós nos respeitamos mutuamente. Cada um de nós pode dizer até o fim o seu pensamento na certeza de ser entendido, de ser ouvido, de ser respeitado e salva-se cada vez mais a amizade entre irmãos.

A.M. – Qual a sua opinião sobre a formação do terceiro mundo?

H.C. – Não é necessário formar o terceiro mundo; ele já está formado. Aconteceu que, um dia em Bandung, a Ásia e a África, premidas pelas necessidades de defender-se diante do imperialismo, imperialismo capitalista, imperialismo socialista, conseguiram superar as distâncias enormes que existem entre elas, no tocante às raças, línguas, religiões. Nesse tempo a América Latina não estava ainda caminhando com a África e a Ásia, mas já por ocasião da primeira Assembleia das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento em Genebra, a América Latina esteve presente e agora a prova que o terceiro mundo existe é que, quando o mundo desenvolvido se encontrou com o mundo subdesenvolvido em Nova Déli, a Ásia se tinha reunido em Banguecoque, a África na Argélia e a América Latina em Tequidama. A África, a Ásia e a América Latina se puseram de perfeito acordo ao redigirem juntas a carta da Argélia. Agora, infelizmente, em face deste terceiro mundo que é um mundo subdesenvolvido, o mundo capitalista e o mundo socialista representados sobretudo pela Rússia Soviética, pela China Vermelha e pelos Estados Unidos, manifestaram uma frieza, uma falta de visão, um egoísmo que deixam uma preocupação muito grande. O que o terceiro mundo insiste em dizer, é que nas relações entre mundo desenvolvido e mundo subdesenvolvido o problema não se reduz de modo algum a ajudas, não se trata de aumentar de 1% sobre o produto nacional bruto, 1% que aliás nunca foi dado, não se trata de ajuda, o problema é muito mais grave. Trata-se de injustiças em escala mundial. Nós acusamos o mundo desenvolvido de estar injusto para conosco; basta comparar o preço que é imposto a nossas matérias-primas com o preço que nos é cobrado pelas matérias-primas que nos são devolvidas industrializadas; basta eu comparar o dinheiro investido no mundo subdesenvolvido com o dinheiro que retorna. A questão é de justiça. Há injustiça de escala mundial. Ora, como sem justiça não haverá paz, essas injustiças estão pondo em grave risco a paz do mundo.


segunda-feira, março 1

mário cravo jr., entrevista


Abaixo trechos de respostas do escultor baiano Mário Cravo Jr., em entrevista a Ariovaldo Matos, publicada na revista VIVERBAHIA, edição 47, julho a setembro de 1979.

Leia a entrevista completa no bog “VIVERBAHIA”

“...o público está sempre relacionando uma escultura livre com uma forma descritiva, literária, de personagem ou personagens. E isso é quase um reflexo histórico”

“Decidi, assim, criar um personagem que fosse, ao mesmo tempo, um Cristo crucificado, um Oxalá, um deus da procriação. Então fiz aquele Cristo...”

“A pura e simples curiosidade para ferir certos cânones de ordem moral ou religiosa, não, isso nunca me preocupou.”

“A Bahia é uma das cidades mais reacionárias do Brasil e isso há 20, 30 anos passados, era ainda pior.”

“Eu fiz uma exposição, essa de que você falou, e coloquei lá um Cristo meio rebelde, em forma de cruz, com o sexo em ereção porque era um personagem fálico.”

“O homem de classe média, da pequena burguesia, vê nisso uma agressão de ordem moral e de ordem religiosa, uma espécie de grito iconoclasta. E o homem do povo só vê a simbologia com seu mecanismo africano, puramente.”

“...um iugoslavo, Ivan Mestrovic. Este homem, de origem humilde, era um pastor croata. Católico, cristão, católico praticante. Muito jovem, demonstrou talento e foi um dos discípulos de Rodin, em Paris. Rodin teve três grandes discípulos que se tornaram famosos: Maillot, Camille Claudel e esse Ivan Mastrovic.”

“Então, o Metropolitan, de Nova Iorque, que nunca houvera feito exposição de artista vivo, fez uma retrospectiva dele, também em 1945.”

“...o profissionalismo começa quando se assume uma responsabilidade social e cultural, o que equivale a uma independência econômica e financeira.”

“Essa senhora tinha uma casa freqüentada por grandes nomes da pintura contemporânea, na época radicados em Nova Iorque. Marcel Duschamps, Max Ernest, enfim uma dezena de pessoas, homens expoentes, europeus que viviam em Nova Iorque.”

“passamos meio ano percorrendo a Europa de carro, visitando museus, galerias, tentando tomar um banho...”

“Foi uma dessas coisas fantásticas que a Fundação Ford faz de vez em quando. Cerca de 26 artistas, desde críticos de arte, músicos, musicólogos, poetas, escultores, chamados a viver em Berlim Ocidental com a suporta intenção de dinamizar a vida cultural da cidade.”

“A maneira com que uma planta abriga o seu núcleo é uma vulva feminina, não tem diferença do ser mulher, maior ou menor. Uma planta pode ter o sensualismo das nádegas de uma mulher.”

“...é muito difícil a um artista que faz uma série de especulações em seu atelier, que não mostra isso sistematicamente ao público, tentar simplificar as coisas. A maioria das pessoas não pode entender e não é educada para isso. E não compete, por sua vez, ao artista, estar martelando questões assim...”

“Há uma tendência muito curiosa de as pessoas exigirem uma espécie de nomenclatura do objeto. É um fenômeno de ordem histórica: “o que significa?”. Pela utilização que as religiões fizeram dos artistas, que os poderosos fizeram dos artistas...”

“É como aquela escultura lá em baixo, defronte do Mercado Modelo, ali, na Rampa. Me perguntam: “que significa?”. Respondi: é qualquer coisa de sensual e aí interpretaram “sensual” por sexual, o que não tem nada a ver.”

As fotos são de Mário Cravo Neto

domingo, janeiro 31

sante scaldaferri - entrevista



Sante Scaldaferri,
entrevista a Ariovaldo Matos


publicada na edição 48, out/dez 79,
revista VIVERBAHIA






Com a mulher, Marina, e três ariscos cachorros dobermann, barulhentos mas definidos como inofensivos, "uns gatinhos", o pintor Sante Scaldaferri mora na avenida das Amendoeiras, em Itapuã. É possível que, ao ser impressa esta edição de VIVERBAHIA, Sante e família já se encontrem na Europa, que percorrem a partir de uma estada em Marrocos, na África. A casa das Amendoeiras, assim, estará entregue a familiares e/ou amigos, boa política, até para protegê-la. E o imóvel merece. É uma residência ampla, uns 400 metros construídos, e amplo é o atelier do pintor, cuja temática forte teria impressionado vivamente o escritor peruano Mário Vargas Llosa, que viu alguns trabalhos de Scaldaferri numa das salas de arte da Igreja de São Bento. E voltemos à casa que, como se diz na gíria, “ela merece”. Há uma piscina nos fundos, além da qual um terreno que Sante namora. Ali construirá, se possível, um atelier mais amplo, “porque há trabalhos - explica - que requerem maior espaço físico para que eu me movimente”. Um dos últimos trabalhos de Scaldaferri, neto de migrantes italianos, se encontra na agência do Iguatemi, do Banco do Estado da Bahia. Nas imediações da piscina, não raramente também procurada por turistas, Sante Scaldaferri fez construir “O Curral”, destacando-se, na parede maior, um mural pejado de ex-votos, carrancas, utensílios variados. É o “Mural de Chico Velho”. Nele a força de um artista plástico impregnado de misticismo e de profunda fé na capacidade criativa do homem nordestino. O que ele tem de coragem e medo, de aceitação e de revolta - e sempre a presença da esperança. Nos olhos e nos estandartes. Nos gestos e nas bocas. A beleza é áspera, mas não agride. O que Sante faz se move e nos imprime sua marca. A sua conversa com o jornalista Ariovaldo Matos:


uma cultura dura e fértil





A.M - Como você se definiria como pintor?

Sante - Realizo meu ofício, mas não gosto de rotular meu trabalho. E é trabalho que faço com amor. Desde criança queria ser pintor e consegui isso sem violentar uma convicção também antiga: só entendo arte aquela que emana do povo e que, para usar uma formulação de Jorge Amado, ao povo é devolvida.

A.M - De que modo você consegue se apropriar dos temas disso resultantes?

Sante - Basicamente, o inicio do meu processo criativo se dá no contato íntimo com as raízes fundamentais da cultura popular. Tento absorver, e não é fácil, uma cultura dura e fértil como um caroço que se faz semente.

A.M - Essa concepção de busca, digamos assim, leva você a recusar “escolas”, etc, essa coisa toda?

Sante - Me leva a ter espírito aberto. Não atendo a modismos, se é isso que você quer sugerir. Eu continuo acreditando, a menos que alguém me convença do contrário, que, por vezes, uma simples colher de pau do artesanato popular tem mais força, poder, do que certos esoterismos.

A.M - Isso significa desapreço ou pouca importância a coisas teóricas?

Sante - Não me entenda mal. O que afirmo, sempre afirmei, é que meu trabalho é fruto de um grande acúmulo de conhecimentos teóricos e de muita vivência pessoal nas fontes do povo do Nordeste. Isso não significa, é claro, desapreço, ou o que seja, a teorias. As coisas caminham juntas. Daí porque viajo muito. Me meto no carro com Marina, sempre que podemos, e saímos por aí, às vezes com programas determinados, às vezes em busca do que o acaso ofereça. E sempre oferece. Aqui, no Nordeste, por exemplo, a arte está presente em todo um artesanato incrivelmente rico no conteúdo e na forma.

A.M - Ia fazer uma pergunta sobre sua viagem à África e à Europa, mas amplie essa resposta. Sobre a riqueza, no conteúdo e forma...

Sante - Riqueza nordestina em termos de artesanato? Claro que é imensa. Ela está presente numa simples colher de pau, nos fifós, nas urupembas, nas formas e desenhos da cerâmica, nas roupas e apetrechos de couro, nos objetos de madeira. Você mesmo, em um conto, se referiu a um porrão e os desenhos neles contidos. Você poderia ter-se referido a qualquer outro recipiente de água, aplicável na sua história, mas você é baiano, você não esqueceu o porrão. O ilustrador do conto, Lage, também usou o porrão, quando poderia mostrar os dois personagens na praia, ou no bar, ou mostrar o rosto da mulher. Entendeu? A coisa fica no subconsciente ou lá como se chame e a gente tem que ir lá no fundo. Isso é importantíssimo. Não é por acaso, assim, que no processo de recriação esforço-me e procuro transpor para a minha pintura tudo o que diz respeito à arte popular do Nordeste.


minhas figuras são gente





A.M - Você sabe que Mário Vargas Llosa ao visitar a exposição permanente do Mosteiro de São Bento elogiou bastante os trabalhos que você tem lá?

Sante - Soube. Um amigo comum me transmitiu a impressão dele. Ainda não conheço, porém, esse escritor tão respeitado. Espero ter oportunidade de estar com ele, antes da minha viagem. Gostaria de ouvir as opiniões que já tenha sobre o Nordeste e, especificamente, a região de Canudos.

A.M - Como você definiria sua pintura, hoje?

Sante - Acima das injunções partidárias, às quais não me submeto, meu trabalho é, no mínimo, a minha contribuição para a melhoria das condições de vida do povo do Nordeste e, numa forma mais ampla, do Brasil e do terceiro mundo que hoje se acham experimentando importantíssimas transformações que vejo como favoráveis a todos os povos. Assim é porque, numa forma mais ampla, o interesse maior de minha pintura é o homem.

A.M - Mas a impressão que se tem...

Sante - Imagino o que você vai dizer. E repito, e tenho repetido isso em várias entrevistas, ou onde quer que a discussão surja, que o interesse maior de minha pintura é o homem e que este homem, muitas vezes, está representado pelo ex-voto. Não é a impressão que você ia transmitir?

A.M - Pelo menos nos trabalhos seus que tenho visto...

Sante - Mas, repare bem, não se trata de simples transposição, não o ex-voto simplesmente jogado na tela. Minha pintura, volto a insistir nisso, é a da gente com cara de ex-voto e não ex-voto com cara de gente. E a gente nordestina. Esta é a segunda grande preocupação: o povo do Nordeste. Aliás, é esse povo com uma capacidade de viver e de lutar que não impressiona apenas aos que trabalham, nas artes plásticas, nessa linha. E sim também inspira, usemos esta palavra, inspira grandes escritores brasileiros. O que é o romance Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro, senão a identificação do sofrimento e da luta e o elogio da esperança do povo do Nordeste? O livro, seja qualquer livro, eo quadro, seja qualquer quadro, desde que bons, com suas singularidades particulares e gerais, valem pelo todo e pelo que têm de específico. Você lê de um jato não? Porque prende. Mas, você, depois da leitura, tem necessidade de reler certas partes. Ou não é? Certas partes de uma beleza incrível. Mas é o que se dá com um quadro. Não basta olhar, é preciso ver. E ver sem preconceitos, sem apriorismos.

A.M - Essa sua preocupação com o homem nordestino não o limita no sentido de um regionalismo exacerbado? Não que haja esse regionalismo em “Vila Real”, é claro. Livros à parte, fiquemos em pintura. O tema o limita?

Sante - Não, muito ao contrário.

A.M - Explique,

Sante - A arte e sua linguagem são universais e este não é um problema simples. Vou tentar ser mais conciso. A missão do artista é muito ampla e diversificada. Não poderia deixar de ser, aliás, uma vez que a arte é uma virtude do espírito do homem. Os homens do mundo todo, que têm aspirações comuns, embora as manifestem de diferentes formas. O conteúdo nacional da arte, se efetivamente nacional no sentido de ser determinado por suas raízes populares, ganha uma significação internacional. A busca dessas raízes, sua identificação, seu estudo, têm uma importância essencial. É o que explica, me deixe voltar a argumentar com livros, o êxito internacional de Jorge Amado, apesar das diferenças de idiomas. O que é efetivamente popular projeta-se mundialmente. E não só o popular de origem rural. Assim, portanto, quanto mais nacional uma arte mais internacional ele é, em termos de resultados. Uma pessoa não precisa saber sobre a guerra civil espanhola, aquela coisa terrível, um milhão de mortos, para entender “Guernica”, de Picasso. Acontece, no entanto, que se essa pessoa souber sobre Guernica, o que aconteceu e porque aconteceu ali, o entendimento do trabalho de Picasso será muito mais rico.

A.M - Não é tão difícil de entender. Veja Villa-Lobos na música.

Sante - O exemplo é ótimo e vejo que você me arrasta de novo para área não livre... Tá bom. Veja Villa-Lobos e pessoas amigas minhas, que entendem de música, me asseguram que quem melhor cantou, até hoje, a quinta Bachiana, um negócio genial, brasileiro de fora a fora, foi uma norte-americana, Joan Baez, embora se fale muito numa interpretação de Elizete Cardoso.

A.M - É, mas não há o disco. Ou, se há, é fantasma.

Sante - O de Joan Baez existe. É a tal coisa: as grandes emoções não têm pátria, salvo no sentido de que formalmente se expressam de diferentes maneiras. Mas, a nível de apropriação têm pátria. É aqui que arte e ciência caminham juntas. Mas volto à questão que você colocou. Cada emoção requer, para ganhar universalidade, a mais autêntica tinta nacional. Ou prevaleceria o cosmopolitismo anódino, inconseqüente. É aqui que a forma ganha um significado especialíssimo, de primeiro plano.

Importância e limites do figurativismo



A.M - Você disse, no começo deste papo, que desde criança aspirava ser pintor. Vamos falar sobre isso?

Sante - Não se trata de uma coisa inata, aliás, não sei se existem, de um modo socialmente típico, as tais coisas inatas. Isso me cheira mal. E pode levar a conceitos desumanos sobre “povos superiores”, “povos inferiores”, “raça” isso, “raça” aquilo. Penso que você concorda comigo. Acontece que fui criado de um modo e num ambiente em que minhas tendências, vindas não sei de onde, encontraram oportunidade de ganhar estímulos. Inclusive estímulos materiais, concretos. Eu não precisava sair por aí, como criança pobre, e isso você vê muito, desenhando com lápis, carvão, qualquer coisa, nas paredes. Você ainda vê meninos desenhando balões, arraias (que não devem ser confundidas com as “pipas” lá do Sul), casinhas, essa coisa toda. De sorte que não precisei de paredes. Tinha papel, lápis, o que quisesse. E tinha o colégio, não é?

A.M - Você chegou a freqüentar a Escola de Belas Artes?

Sante - Freqüentei. Em 1957, ano em que terminei meu aprendizado lá, é que comecei, realmente, a minha pintura em forma criativa e profissional.

A.M - A Escola ajudou?

Sante - Ajudou muito, inclusive ensejando o convívio com professores e estudantes extremamente capazes e talentosos. Não é o caso de citar nomes, aquela história das omissões involuntárias. Mas, a Escola ajudou muito.

A.M - Pode-se dizer que é menos razoável o ensino de artes plásticas no Brasil?

Sante - Não se pode dizer isto. De modo geral o ensino de arte no Brasil é muito ruim, a julgar pelo que tenho lido e de acordo com opiniões que tenho ouvido. Acredito que as Escolas de Belas Artes - aliás, eu não gosto dessa coisa “belas artes” ... - são um aspecto do momento crítico em que vive a Universidade brasileira.

A.M - A crise é mundial. Faz alguns meses o Milton Santos deu à “A Tarde” uma excelente entrevista sobre isso.

Sante - Me falaram, mas não li. Devia estar viajando. No caso da Universidade brasileira, a crise que atinge as Escolas de Belas Artes, e esta é a minha transa, chega a ser dramática. Ou, pelo menos, tem aspectos dramáticos. Mas, tenho para mim que, no final das contas, toda escola tem pontos bastante positivos e é preciso valorizá-los adequadamente. Essa coisa de “fechar para balanço” é muito radical e com certeza não leva a nada. Os radicais são uns chatos.

A.M - Uma das conclusões que se pode chegar a partir da análise feita por Milton Santos é a de que a crise universitária é parte de uma crise geral.

Sante - Sem nenhuma dúvida, mas essa crise, as discussões em torno dela, já não se limitam aos gabinetes dos tecnocratas. É à luz do sol que, agora, as questões são debatidas e presentemente está em curso um processo de se repensar a Universidade brasileira como um todo e acredito que os resultados favorecerão, também, as Escolas de Belas Artes.

A.M - Falar em “à luz do sol”, você foi aporrinhado pela censura, alguma vez? Houve aquele caso de Minas Gerais...

Sante - A verdade é que a censura jamais interveio em meu trabalho e se houvesse eu teria botado a boca no mundo, como se diz. Aliás, vivemos um momento de redemocratização do país e isso parece assegurar que a censura, de um modo geral, se tornará menos burra e que a autocensura tende a desaparecer ou a ser minimizada. A autocensura a partir de condicionamentos políticos, quero dizer. Porque há pessoas que, no ofício das artes plásticas, se autocensuram, se autolimitam pensando na censura que existe em função das exigências do mercado comprador. Ou da parte dele que exige coisas bonitinhas, engraçadinhas, pitorescas, essa papagaiada toda. Você não ignora isso.

A.M - Pelo que me recordo você teve uma fase abstracionista. Por que?

Sante - De 1957 a 1960, por aí, no seu modo exterior, minha pintura apresentava três características principais: pesquisa da matéria, simplificação da forma e bidimensionalidade. Daí para o abstracionismo foi um passo. A pesquisa da matéria e a bidimensionalidade permaneceram. A simplificação da forma transformou-se em forma abstrata pura.

A.M - Um certo elitismo?

Sante - Não, creio que não. A forma exterior dos trabalhos deste período não representava o produto elitizado do que se convencionou chamar de “fatores existenciais”. na sua forma aerofotogramétrica, ela guardava coerência com meus conceitos teóricos, em parte forjados na Escola de Belas Artes, quanto à arte, no sentido da linguagem, ser a expressão de uma atmosfera nordestina.

A.M - Excursionando ainda, de quando em quando, no uso do abstracionismo, a exemplo do seu trabalho na agência do Baneb-Iguatemi, pode-se dizer que, em essência, você se voltou para o figurativismo?

Sante - Não se trata bem de uma excursão episódica, como pode parecer, mas não seria o caso de a gente debater isso. Ou seria?

A.M - A pergunta é: você se voltou, basicamente, para o figurativismo?

Sante - Felizmente não tenho, absolutamente, do que me arrepender. É bem ao contrário. Mas se trata, note bem, de um figurativismo mais consciente, mais elaborado, mais popular, com um desenganado e claríssimo empenho de denúncia e recusando qualquer tipo de alienação.

A.M - O que o faz voltar-se assim para o figurativismo?

Sante - Essa volta, esse retorno, deu-se por uma série de fatores. Eu passei a querer, com paixão, gentes, bichos, coisas nas minhas telas. Além da insatisfação pessoal, considerando as telas, ao verificar que a fase abstracionista não atendia à contribuição a que me propus, também verifiquei, como outros verificaram (disso, aliás, na época eu não tinha conhecimento), que aquela linguagem era inacessível às massas. Não tinha, a rigor, a seriedade que marca tantas realizações abstratas exigentes do maior respeito. Não se tratava e nem se trata, de elitismo, que é outra história, e sim se tratava de que eu e outros, antes, estávamos macaqueando formas, teorias e conceitos que nada tinham a ver com o povo brasileiro e, em conseqüência, não dispúnhamos de uma linguagem nacional de valor universal. Isso precisa ficar muito claro: fazíamos macaqueações. Como muitos escritores, e não só romancistas e contistas, ficam macaqueando o que vem lá de fora. Então, revi as posições que antes havia adotado e isso aconteceu em 1964. Mas, de outra parte, suponho que não é justo, não é real, não é verdadeiro, confundir elitismo, que também condeno, com macaqueações. Se tomarmos a literatura, para efeito de comparação, você não diria que Proust, com o elitismo dele, tenha macaqueado quem quer que seja...

A.M - Botando Proust de lado, ele não é o caso, lembro de você ter dito que suas figuras são gente com cara de ex-voto e não o contrário. Bem. Isto garante a universalidade de sua pintura?

Sante - Creio que sim, embora universalidade, aí, deve ser encarada com a necessária humildade artística. Como disse antes, este não é um problema simples. A pintura, para ser válida, tem de ter, necessariamente, uma linguagem universal. No meu entender existe uma pintura com temática brasileira, entre outras a minha. Mas, se considerarmos toda essa rica temática e a estudarmos em profundidade, veremos que só as formas exteriores, a ambiência, são brasileiras. Por exemplo: as origens dos ex-votos, das pinturas votivas, são universais, provindas do cristianismo. Existem em vários países e foram transpostas para o Brasil durante a colonização. É o que antes disse: o que dá caráter nacional a qualquer tipo de arte são os acréscimos específicos das peculiaridades de cada povo, de cada nação. Esses acréscimos, quantitativos e qualitativos, têm suas fontes nas raízes da cultura popular. A rigor, o que existe de mais puro e autenticamente brasileiro é a arte indígena, feita antes do descobrimento, principalmente a arte dos índios marajoaras.

A.M - Outro tema: como você se comporta diante da pintura mural?

Sante - Trata-se, no caso, de compor de acordo com a arquitetura, buscando-se perfeita integração do mural em si com a arquitetura ambiente e nesse caso tanto pode ser figurativo quanto abstrato. O importante é não haver discrepância entre o mural e o espaço a que vai integrar, tanto o interno quanto o externo. Como a pintura de cavalete, o entalhe, o alto relevo, etc... o mural tem características próprias como também suas técnicas. caso não sejam aplicadas, cai-se , inevitavelmente, no ilustrativo ou no anedótico. Naturalmente, existem o casos especiais e penso no espaço arquitetônico em que caibam quadros de grandes dimensões, painéis formados por diversos quadros, trípticos, etc. Como também a obra monumental a dividir o espaço arquitetônico. O mural, portanto, é um tipo de pintura com características próprias.

A.M - A Bahia é rica sob esse aspecto?

Sante - Começa a tornar-se. Por ser de custos elevados, somente o poder público e algumas empresas têm permitido, em Salvador, a execução de obras de arte monumentais e deve ser registrado que o interesse dos governos por obras de arte é cada vez maior. Haja vista as recentes iniciativas dos governos municipais do Rio e de São Paulo, colocando esculturas em praças públicas. Ou, igualmente da maior importância, as iniciativas do Governo ACM em mandar colocar obras de arte monumentais nos edifícios do Centro Administrativo. Existe, em Salvador, uma lei já aprovada pela Câmara de Vereadores, determinando que em cada edifício a ser construído, tenha, obrigatoriamente uma obra de arte. Esta lei, contudo, nunca entrou em vigor, de modo sistemático, por falta de regulamentação. Aí é que reside todo o problema?

A.M - Por que?

Sante - É que uma regulamentação mal feita seria catastrófica para a cidade. Entendo que a lei, em si, é uma faca de dois gumes, excelente quando abre um novo mercado de trabalho, mas, por outro lado, estaríamos sob perigo de maior poluição visual. Mas, não se trata de uma dificuldade insolúvel, desde que, repito, haja uma boa regulamentação.

A.M - Onde, exatamente, as dificuldades?

Sante - É que são necessários critérios estéticos e técnicos que, ao menos, minimizem as contrafações. Um grupo de trabalho que reunisse artistas, economistas, pessoas de reconhecido bom gosto, etc., poderia começar a trabalhar nessa regulamentação, cuidando de não impedir o acesso de jovens talentosos, sérios, etc. Ou então triunfariam as “panelinhas”, o que não aproveitaria a ninguém e prejudicaria enormemente a cidade.

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